Prescrição da reparação do dano ambiental e o desastre de Mariana
21 de setembro de 2018, 6h49
O desastre ambiental de Mariana completa em novembro três anos. A data não envolve somente o marco crítico e avaliativo da situação dos estágios de reparação dos danos ambientais ocorridos. Um ponto angular que emerge é a situação dos danos individuais decorrentes do desastre ambiental. Embora ainda relativamente pouco abordado, o assunto pode desencadear a argumentação pela prescrição da pretensão de reparação dos danos individuais de todos aqueles que ainda não a postularam.
O Código Civil dispõe em seu artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, que prescreve em três anos o direito de ação para postular a reparação por danos decorrentes de responsabilidade civil. A aplicação do entendimento que atribui caráter amplo ao dispositivo, a abranger todos os tipos de responsabilidade civil, determinará a prescrição da pretensão de reparação por danos individuais de todos os atingidos do desastre de Mariana já em novembro.
Em face do entendimento que sustenta a prescrição, alguns juristas, a partir de uma leitura ilimitada do dano ambiental, sustentam a imprescritibilidade. A argumentação da imprescritibilidade em relação a danos individuais é frágil, pois olvida que o caráter intergeracional e fundado na dimensão difusa do dano é o núcleo que arregimenta a imprescritibilidade do dano ambiental. Não se pode confundir o dano em seu caráter ambiental difuso para com os prejuízos privados advindos do dano.
A tese consagraria um direito privado imprescritível. Por mais angustiante que seja do ponto de vista social cravar a prescritibilidade de danos individuais decorrentes de desastres, não há sustentação jurídica para caminhar em sentido inverso sem que disso resulte uma total distorção dos limites que separam a reparação do dano ambiental da reparação dos danos privados decorrentes de um desastre ambiental.
Assim, embora o delineamento da extensão da imprescritibilidade em matéria ambiental esteja ainda em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (Tema 999), decorrente do Recurso Extraordinário 654.833, há delineamento para diferir o dano ambiental em seu caráter difuso dos efeitos privados do dano. No julgamento que reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, há expressa referência ao REsp 1.120.117/AC. Neste último, o Superior Tribunal de Justiça firmou pela duplicidade de caminhos. Há fluxo prescricional para pretensão de reparação de danos individuais decorrentes da lesão ambiental, embora não haja prescrição de reparação do dano ambiental propriamente dito.
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3. Reparação pelos danos materiais e morais, consubstanciados na extração ilegal de madeira da área indígena.
4. O dano ambiental além de atingir de imediato o bem jurídico que lhe está próximo, a comunidade indígena, também atinge a todos os integrantes do Estado, espraiando-se para toda a comunidade local, não indígena e para futuras gerações pela irreversibilidade do mal ocasionado.
5. Tratando-se de direito difuso, a reparação civil assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de responsabilidade do degradador que é objetiva, fundada no simples risco ou no simples fato da atividade danosa, independentemente da culpa do agente causador do dano.
6. O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal.
7. Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer, considera-se imprescritível o direito à reparação.
8. O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental.
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(STJ – REsp 1120117/AC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 19/11/2009)
A linha que se consolida no ordenamento jurídico brasileiro é, portanto, de distinção entre o dano ambiental propriamente dito e os danos individuais decorrentes do dano ambiental, sendo estes últimos sujeitos à prescrição. Assim, a linha do marco prescricional para os atingidos pelo desastre ambiental de Mariana está por se encerrar. Ou melhor, estaria.
Em reação ao desastre socioambiental de Mariana, União, Ibama, ICMBio, Funai, ANA e DNPM (ANM), estado de Minas Gerais, estado do Espírito Santo e respectivas autarquias e fundações ambientais ajuizaram ação civil pública, que veio a desencadear Termo de Transação e Ajustamento de Conduta com as empresas responsáveis pelo empreendimento. Embora por vezes alvejado, o TTAC se firmou como a base para toda a sequência de ações visando a mitigação de efeitos, diagnóstico socioambiental e econômico, estabelecimento de programas de reparação e principalmente no estabelecimento de um modelo fundacional de gestão financeira, que possui claros liames com o modelo de operadores financeiros e fundos de desastre, existentes na Europa e no Canadá.
Em agosto, a Justiça Federal de Belo Horizonte veio a homologar Termo de Ajustamento de Conduta a envolver os órgãos públicos federais, representados pela Advocacia-Geral da União, os órgãos públicos estaduais, representados pela Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais e pela Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo, tal como o Ministério Público, Federal e estadual, a Defensoria Pública e obviamente as empresas responsáveis pelo desastre ambiental. O Termo de Ajustamento firmado reconhece explicitamente as bases fixadas no TTAC, não podendo deixar de ser lido e entendido como um incremento, como uma busca republicana de conjunção de esforços para aprimoramento do ajuste inicial.
Mas a assinatura e a homologação do TTAC não representam apenas um marco para a tutela de bens jurídicos ambientais em seu sentido difuso. Há produção de efeitos diretos nas relações privadas afetas aos atingidos, aos impactados pelo desastre ambiental em seus direitos individuais. Isso porque a remodelação do TTAC procedida com homologação pela Justiça Federal em Belo Horizonte acarreta interrupção do prazo prescricional para reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais implicados pelo desastre ambiental.
No julgamento do REsp 1.641.167/RS, o Superior Tribunal de Justiça veio a entender que o ajuizamento de ação civil pública interrompe o fluxo prescricional. O entendimento firmou-se no argumento de que deliberações procedidas em ações coletivas que venham a impactar na matriz de exercício das ações individuais configuram actio nata, ou seja, são ponto de partida para exercício do direito de ação individualmente posto em correlação com a matéria judicializada em plano coletivo ou difuso.
(…)
4. O dano ambiental pode ocorrer na de forma difusa, coletiva e individual homogêneo este, na verdade, trata-se do dano ambiental particular ou dano por intermédio do meio ambiente ou dano em ricochete.
5. Prescrição: perda da pretensão de exigibilidade atribuída a um direito, em consequência de sua não utilização por um determinado período.
6. O termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de indenização por dano ambiental suportado por particular conta-se da ciência inequívoca dos efeitos decorrentes do ato lesivo. Precedentes.
7. O ajuizamento de ação versando interesse difuso tem o condão de interromper o prazo prescricional para a apresentação de demanda judicial que verse interesse individual homogêneo.
8. Necessidade, na hipótese dos autos, da completa instrução processual.
9. Recurso especial conhecido e não provido.
(STJ – REsp 1641167/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 20/03/2018)
O TTAC firmado pelos entes públicos e agora reconfigurado em novo acordo de governança não produz efeitos somente em grau difuso, relativo à reparação e recomposição dos quadros socioeconômicos e ambientais lesados. Possui ele também caracterização como novo marco para exercício do direito de ação individual daqueles que foram lesados pelo desastre ambiental. A implicação interruptiva do prazo prescricional ocorre justamente em razão de modificações na definição e execução dos programas, projetos e atuações voltadas para a reparação integral dos danos socioeconômicos e socioambientais.
Há, portanto, um novo termo inicial. Embora estejam os danos individuais patrimoniais e extrapatrimoniais sujeitos à prescrição, ao contrário do dano ambiental propriamente dito, os atingidos não terão concretização de prescrição ao seu desfavor em novembro de 2018.
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