Violência obstétrica, políticas públicas e a legislação brasileira
8 de outubro de 2018, 18h04
Os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.”[1]
A violência obstétrica é um assunto invisibilizado no Brasil, considerando que as pesquisas revelam que uma a cada quatro brasileiras já foi vítima de violência obstétrica[2].
Entende-se por violência obstétrica toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia. Esse conceito engloba todos os prestadores de serviço de saúde, não apenas os médicos. Define-se, ainda, como violência obstétrica qualquer ato ou intervenção direcionada à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que recentemente deu à luz), ou ao seu bebê, praticado sem o seu consentimento explícito ou informado e em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos e preferências[3].
A violência obstétrica constitui uma grave violação à autonomia das mulheres, aos seus direitos humanos e aos seus direitos sexuais e reprodutivos[4]. Assim caracterizam a violência obstétrica atos como: violência exercida com gritos; os procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, e a falta de analgesia e negligência; recusa à admissão ao hospital (Lei 11.634/2007); impedimento de entrada de acompanhante (Lei 11.108/2005); violência psicológica (tratamento agressivo, discriminatório, grosseiro, zombeteiro, inclusive em razão de sua cor, etnia, raça, religião, estado civil, orientação sexual e número de filhos); impedimento de contato com o bebê; o impedimento ao aleitamento materno; a cesariana desnecessária e sem consentimento; realização de episiotomia de modo indiscriminado; o uso de ocitocina sem consentimento da mulher; a manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da gestante para empurrar o bebê); a proibição de a mulher se alimentar ou de se hidratar e obrigar a mulher a permanecer deitada.
O elevado número de cesáreas no Brasil, que se encontra em torno de 52% no setor público, podendo chegar a 88% no setor privado, contraria as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS)[5]. A taxa ideal de cesáreas, de acordo com a OMS, seria entre 10% e 15%. O que justifica um número tão elevado de cesáreas no nosso país? Por qual motivo as mulheres não são informadas a respeito das consequências de uma cesárea?
Outro aspecto da violência obstétrica consiste no desrespeito do direito ao acompanhante. O fato de não conferir à gestante o direito ao acompanhante, que é garantido por lei, também dificulta o controle da violência obstétrica.
Levando-se em conta todos os exemplos de atos de violência obstétrica acima referidos, chegamos à conclusão de que o sistema jurídico brasileiro já possui legislação genérica estadual, a respeito da violência obstétrica, embora não haja lei federal específica. O estado de Santa Catarina editou a Lei 17.097, de 17 de janeiro de 2017. O estado de São Paulo tem o Projeto de Lei 1.130, de 2017, de autoria da deputada Leci Brandão, que trata do tema da violência obstétrica. Todavia, os atos de violência obstétrica, independentemente de edição de lei específica, podem caracterizar fatos típicos e antijurídicos, já previstos no Código Penal, como os crimes de homicídio, de lesão corporal, de omissão de socorro e contra a honra.
Os projetos de lei 7.633/2014 (de autoria do deputado Jean Wyllys), 8.219/17 (de autoria do deputado Francisco Floriano) e 7.867/17 (de autoria da deputada Jô Moraes), em trâmite no Congresso Nacional, também dispõem sobre as diretrizes e os princípios inerentes aos direitos da mulher durante a gestação, pré-parto e puerpério e a erradicação da violência obstétrica.
Existem países que já editaram legislação específica sobre violência obstétrica, como a Argentina e o México. No âmbito internacional, a legislação da Argentina (Lei 26.485/2009) define violência obstétrica como: “Aquela exercida pelos profissionais da saúde caracterizando-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais”[6].
A Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade e dispõe sobre o direito à plena assistência à saúde. A Carta Magna enuncia de forma original o dever do Estado de coibir a violência contra as mulheres, que inclui, portanto, o dever de prevenir e punir a violência obstétrica. O artigo 5º dispõe o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Assim, as mulheres são iguais aos homens, tanto em direitos como em deveres. Prevê, outrossim, que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”, incluindo a assistência prestada às mulheres gestantes e no pós-parto. O artigo 6º determina que devem ser respeitados os direitos sociais: “A educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. No aspecto laboral, são garantidas a licença à gestante e a proteção do mercado de trabalho feminino. A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios têm como competência comum (artigo 23) cuidar da saúde e assistência pública; proporcionar meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a igualdade.
Em 2001, o Brasil concluiu a CPMI da Mortalidade Materna, que verificou que 98% das mortes maternas seriam evitáveis, e determinou uma série de políticas públicas para melhorar a condição de assistência ao parto — com certeza a prática de violência obstétrica contribui para os elevados patamares de morte materna no nosso país.
Enquanto nos países mais desenvolvidos as mortes maternas estão se tornando cada vez mais raras, no Brasil não observamos essa tendência quanto aos índices de morte materna, que chegaram aos vergonhosos 69 por 100 mil em 2013, sendo um patamar aceitável e sugerido como objetivo do milênio 35 por 100 mil.
Em pesquisa sobre o tema, verificamos que, embora o arcabouço legislativo seja suficiente e esteja caminhando na direção correta, identificamos alguns problemas quanto à efetivação de medidas práticas de políticas públicas para efetivar os direitos reprodutivos das mulheres: o número de serviços não está em consonância com a necessidade e o número de casos; há desigualdade regional na distribuição dos serviços e falta de capacitação contínua e número de profissionais.
Embora a morte seja um evento inexorável, muitas mortes maternas são evitáveis. Estudos apontam como causas de mortalidade materna: a hipertensão, as hemorragias, as infecções pós-parto e o aborto inseguro — muitas dessas causas são decorrentes de atos de violência obstétrica.
Se queremos melhorar a saúde materna, temos que combinar uma legislação moderna, com boas práticas obstétricas e com políticas públicas sérias. As mulheres brasileiras agradecem e têm esse direito, pois a violência obstétrica caracteriza-se por ser uma grave violação aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres, ainda sem resposta adequada.
[1] Artigo 12, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher.
[2] Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em 26 de junho de 2015.
[3] Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou, em 26 de junho de 2015.
[4] PICKLES, Camilla Obstetric Violence and Law,British Academy Post-Doctoral Research Fellow.
[5] Pesquisa Nascer no Brasil.
[6] Artículo 6, e) Violencia obstétrica: aquella que ejerce el personal de salud sobre el cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en un trato deshumanizado, un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, de conformidad con la Ley 25.929 (tradução livre da autora).LEY DE PROTECCION INTEGRAL A LAS MUJERES, Ley nº 26.485, Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales, Sancionada: Marzo 11 de 2009, Promulgada de Hecho: Abril 1 de 2009.
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