A desistência do adquirente na incorporação imobiliária
28 de maio de 2018, 6h53
A despeito das promessas de compra e venda firmadas no âmbito de incorporações imobiliárias serem, por força da lei, irretratáveis (artigo 32, parágrafo 2º da Lei 4.591/64), paradoxalmente o tema dos distratos ainda é um dos mais controversos no mercado de imóveis.
O objetivo deste artigo é oferecer quatro propostas, de lege lata, para compatibilização do Código de Defesa do Consumidor (CDC), da Lei de Incorporações (Lei 4.591/64) e do Código Civil sobre o tema. Tais propostas, concessa venia, permitiriam a evolução da jurisprudência do STJ, especialmente quanto ao enunciado 543 de sua súmula e mais particularmente ainda quanto à compatibilidade entre o parcelamento da restituição em caso de desistência e o CDC.
1. O consumidor pode resilir unilateralmente a promessa de compra e venda no mesmo prazo de carência em que o incorporador pode desistir da incorporação
O CDC prevê a nulidade absoluta de cláusula contratual que autorize o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor (artigo 51, XI).
Por seu turno, dispõe o artigo 34 da Lei 4.591/6 que o “incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência, dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento” (artigo 34).
A previsão deve ser interpretada como hipótese legal de resilição unilateral. Trata-se de direito potestativo do incorporador. Todavia, conjugando-se tal direito garantido pela Lei de Incorporações com a norma do CDC que comina de nula a regra que permite a desistência apenas ao fornecedor (artigo 51, XI), tem-se aparente antinomia. O direito do incorporador garantido por lei inserido no contrato seria ilegal por força do CDC, a menos que o mesmo direito fosse atribuído também ao consumidor.
Deve-se atribuir ao incorporador o direito legal de desistir da incorporação, não havendo nenhuma ilegalidade a priori de tal prerrogativa em face do sistema do CDC. Ao contrário, trata-se de garantia do próprio consumidor, que não se verá frustrado em sua expectativa de receber a unidade imobiliária contratada quando o empreendimento não se viabilizar economicamente no prazo de carência estipulado. Tal, de fato e não raro, pode realmente ocorrer, seja em razão de o lançamento não ter indicado boas expectativas de vendas, seja por força de fatos supervenientes, como a dificuldade da incorporadora em obter crédito, dentre diversos outros fatores1.
Ao mesmo tempo, em face do que dispõe o CDC, deve-se igualmente reconhecer ao consumidor o mesmo direito de desistir da promessa de compra da unidade imobiliária objeto da incorporação. Se não se pode afastar o direito do incorporador — porque previsto em lei, porque não revogado pelo CDC nem com ele é incompatível em razão da natureza do negócio —, não há como não atribuir a mesma prerrogativa ao consumidor, nos termos do artigo 51, XI.
2. A incorporadora pode parcelar a restituição em caso de resolução da promessa de compra e venda pelo adquirente (“desistência”)
Sem autorização da lei ou do contrato, não é dado ao consumidor desistir injustificadamente da promessa de compra e venda (artigo 473, Código Civil; artigo 32, parágrafo 2º da Lei de Incorporações). Se o faz, a desistência importa em resolução do contrato, devendo a incorporadora restituir os valores recebidos com as retenções decorrentes das perdas e danos causados pelo ato ilícito contratual do adquirente.
Na ausência de estipulação em contrário, a restituição deve ser paga à vista, em parcela única. Tal conclusão não impede, no entanto, que outros mecanismos de restituição sejam estabelecidos nas promessas de compra e venda. O parcelamento da restituição, por exemplo, não se revela abusivo. Uma cláusula com esse teor não poderia ser considerada iníqua, nos termos do artigo 51, IV, do CDC, porque, ao contrário, tem uma justa razão de ser: do ponto de vista financeiro, fazer o desembolso à vista do que se recebeu em parcelas impactaria gravemente o fluxo de caixa do empreendimento, com reflexos para todos os adquirentes.
Assim, desde que estabelecida cláusula com esse teor, o parcelamento não se mostrará despropositado. A adoção desse mecanismo será compatível com a função social do contrato, de modo a não permitir que a vontade individual de um contratante, mesmo um consumidor contratante, possa influir negativamente na situação jurídica dos demais consumidores que, como ele, se vincularam ao empreendimento objeto da incorporação.
Dadas as peculiaridades da incorporação, o parcelamento não raro é a alternativa entre o adquirente receber ou não a restituição do seu valor. Neste passo, a compatibilidade de uma tal cláusula com o sistema do CDC parece mais clara ainda quando se tem em vista que a própria legislação processual admite o parcelamento do pagamento em diversas oportunidades. Veja-se, por exemplo, o direito ao parcelamento das despesas processuais (artigo 98, parágrafo 6º, Código de Processo Civil), o parcelamento da compra de bem penhorado (artigo 895, parágrafo 1º, CPC) e, mais importante, o direito do executado pagar o débito exequendo em até seis parcelas (artigo 916, CPC).
No último exemplo visto, a parte executada poderá, no prazo para opor embargos à execução, reconhecer o crédito e requerer o seu parcelamento, acrescido o débito de custas e honorários de advogado. Aplicada a regra aos casos de desistência, tem-se que, se o consumidor ingressar com execução a respeito dos valores objeto de sua restituição decorrente da desistência, o parcelamento será cabível por força de lei. Dadas as peculiaridades da incorporação e a autorização já presente na legislação processual, não há que se falar, já de per si, em ilegalidade da cláusula de parcelamento, ressalvada a possibilidade de controle dos abusos.
Sopesados, portanto, o interesse individual do desistente, os interesses coletivos dos adquirentes e a preocupação manifestada pelo STJ quanto aos prejuízos que um contratante possa impor aos demais que estejam em posição semelhante sua em face de um fornecedor comum2, como ocorre no caso dos consórcios, o parcelamento revela-se um caminho do meio justo e a adequado: nem se impõe às incorporadoras o pagamento à vista e imediato nem impõe ao desistente aguardar o fim das obras do empreendimento.
3. A cláusula penal deve se limitar a 10% do valor pago pelo consumidor
A resolução também poderá dar ensejo à incidência de cláusula penal, desde que esta tenha sido pactuada. A necessidade de interpretação sistemática do CDC, Código Civil e da legislação de incorporações recomenda a adoção do percentual de 10% como limite da cláusula penal por resilição, prevista no artigo 63, parágrafo 4º da Lei 4.591/64. O citado dispositivo trata das consequências do inadimplemento das parcelas do preço por parte do adquirente, no caso de construção em condomínio (artigo 48, Lei 4.591/64). Neste caso, autoriza a lei que a unidade do adquirente inadimplente seja levada a leilão, devendo o produto da venda ser revertido ao condomínio de construção, abatendo-se desta quantia, dentre outras retenções, “10% de multa compensatória”.
O percentual deve incidir sobre o valor pago pelo adquirente, e não sobre o valor integral do contrato, incluindo-se todas as parcelas vincendas. Esse limite é consentâneo com o sistema de normas que regem a relação incorporador/consumidor e não se revela de modo algum violador do CDC, nem oneroso ou excessivo. Ao contrário, considerando a natureza do negócio, mesmo na hipótese de condomínio de construção, em que não incide o CDC3, entendeu o legislador da Lei 4.591 que o percentual de 10% era adequado, mostrando-se, portanto, seguro e razoável a utilização do mesmo parâmetro4.
4. As arras podem ser prefixadas como indenização pelo prejuízo causado pela desistência e sua perda não pode ser cumulada com a cláusula penal
Tendo sido negociado o pagamento de sinal (arras), questiona-se se seria juridicamente possível a perda do valor pago juntamente com a imposição de cláusula penal. A dúvida surge em razão do parágrafo único do artigo 416 do Código Civil, que determina que, “ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente”; e do artigo 419 do mesmo diploma, que prevê que “a parte inocente pode pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valendo as arras como taxa mínima”.
As duas regras, em certo sentido, estipulam indenização mínima em caso de inadimplemento contratual. A cláusula penal compensatória, incidente na hipótese de inexecução da obrigação (tenha-se em mente a desistência do adquirente), prefixa indenização para a hipótese de inadimplemento contratual; as arras, caso negociadas, igualmente tem a função de prefixar o valor da indenização em caso de descumprimento contratual5.
Assim, é correto o entendimento a respeito da impossibilidade de cumulação, sob pena de bis in idem. Ajustado, no mesmo contrato, tanto sinal quanto cláusula penal compensatória, o inadimplemento impõe a perda do sinal apenas, mas não da cláusula penal ao mesmo tempo6.
Como corolário lógico, as arras podem ser ajustadas de modo a servirem de indenização prefixada em caso de desistência do adquirente. Pode a promessa de compra e venda, ressalvar que a retenção não exclui o dever de reparar outros danos que superem o valor do sinal (artigo 419, Código Civil). Esses danos que sobejem o valor das arras deverão ser provados.
1 “Esses pressupostos de formação, execução e extinção do contrato de incorporação, que identificam como fonte de alimentação financeira o produto da alienação do seu próprio ativo, explicam e justificam a faculdade legalmente atribuída ao incorporador de valer-se de um prazo de carência, no qual poderá aquilatar, com razoável grau de precisão, a receptividade do produto ofertado, podendo, então, confirmar ou desistir da realização do empreendimento” (CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, abr-jun/2016).
2 Para a hipótese de consórcios, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça fixou em rito de recursos repetitivos que “é devida a restituição de valores vertidos por consorciado desistente ao grupo de consórcio, mas não de imediato, e sim em até trinta dias a contar do prazo previsto contratualmente para o encerramento do plano” (REsp 1.119.300/RS, rel. min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, DJe 20/10/201, j. em 14/4/2010).
3 Seja consentido referir a FERREIRA NETO, Ermiro. Três hipóteses de não incidência do CDC na incorporação imobiliária. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-07/opiniao-hipoteses-nao-incidencia-cdc-incorporacao-imobiliaria>.
4 Em 27 de abril de 2016, a Secretaria Nacional do Consumidor, a Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, a Associação Brasileira da Incorporadoras, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção, a Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário e a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário firmaram o “Pacto para o Aperfeiçoamento das Relações Negociais entre Incorporadores e Consumidores”. A respeito das desistências, previa o pacto, no mesmo sentido do que aqui se defende, uma “multa fixa, em percentual nunca superior a 10% (dez por cento) sobre o valor do imóvel prometido comprar” (sic) ou “perda integral das arras (sinal), e de até 20% sobre os demais valores pagos pelo comprador, até então”. A despeito de sua assinatura, o pacto fora suspenso para ampliação dos debates junto ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC). Não se tendo alcançado consenso sobre exigências realizadas por entidades ligadas do SNDC, o pacto, que visava uniformizar cláusulas cuja legalidade era discutida em milhares e milhares de processos judiciais, não chegou a ter vigência.
5 “Da tradição histórica vêm as quatro funções cometidas às arras: a) confirmatória do negócio; b) de adimplemento (princípio de pagamento da obrigação estatuída); c) de efeito da resolução imputável e culposa; e d) possibilidade de lícito arrependimento do negócio, se assim ajustado” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, t. II: Do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 735).
6 Assim já decidiu o STJ, como se vê do acórdão do REsp 1.617.652/DF, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 29/9/2017.
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