Ambiente jurídico

Medida Provisória não pode diminuir área de preservação

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  • é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

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15 de dezembro de 2018, 7h00

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Causou polêmica a atuação da Comissão Mista do Congresso Nacional, que no dia 12 de dezembro de 2018 aprovou a alteração e a diminuição de áreas de Unidades de Conservação, devendo o projeto de lei agora seguir para a votação no Plenário da Câmara dos Deputados. Cuida-se da modificação da poligonal do Parque Nacional de Brasília (Água Mineral) e da Floresta Nacional de Brasília, no Distrito Federal, além da redução do Parque Nacional de São Joaquim, no Estado de Santa Catarina.

É claro que a primeira crítica a ser levantada diz respeito à inclusão de novos temas, uma vez que a matéria original não versava sobre o assunto. De fato, originalmente a Medida Provisória n. 852/2018 dispunha sobre a transferência de imóveis do Fundo do Regime Geral de Previdência Social para a União, sobre a administração, a alienação e a gestão dos imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, extingue o Fundo Contingente da Extinta RFFSA – FC e dispõe sobre a gestão dos imóveis da União.

Contudo, existem outras questões que também podem ser levantadas no que concerne a esses espaços territoriais ecologicamente protegidos, especialmente levando em consideração o olhar do Direito Ambiental. Pois bem, o primeiro e mais óbvio questionamento diz respeito à existência ou não dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, previstos no art. 62 da Constituição Federal de 1988.

Realmente, ao menos em princípio não parece que a transformação de parte de uma área protegida em uma área menos protegida ou sem proteção atenda a tais pressupostos – embora somente a análise das peculiaridades do caso concreto é que pode permitir tal juízo. No entanto, o ponto central dessa discussão é mesmo o inciso III do § 1º do art. 225 da Lei Fundamental, segundo o qual somente lei pode suprimir espaços territoriais ecologicamente protegidos:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(…)

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.

A discussão acalorada é inevitável, pois se trata de mais um capítulo do velho e inesgotável embate entre ambientalistas e ruralistas, o que tende a se acentuar cada vez mais aqui no Brasil. Enquanto aqueles querem ampliar e consolidar as áreas protegidas, estes lutam por mais áreas para o desenvolvimento de atividades agropecuárias.

Paixões à parte, resta saber se é possível restringir os chamados espaços territoriais ecologicamente protegidos fazendo uso de uma medida provisória. Impende dizer que o debate é relevante porque o precedente pode fazer com que outros espaços protegidos sejam diminuídos ou até extintos pela mesma via, inclusive no âmbito dos demais níveis federativos.

O desiderato constitucional deixa claro é que é possível instituir tais espaços por meio de decreto ou até de outro ato normativo, mas só é possível desfazê-los por meio de lei. Esse entendimento está de acordo com o caput do art. 225 da Lei Maior, segundo o qual “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Essa é a norma-matriz do Direito Ambiental, a qual deverá fundamentar a interpretação e a aplicação de todas as demais regras constitucionais e infraconstitucionais sobre o assunto[1]. Tamanha é sua importância que esse dispositivo é apontado como uma espécie de mãe de todos os direitos ambientais consagrados na Constituição da República[2].

Eis o caso de aplicação do princípio da reserva legal, segundo o qual determinado tema só pode ser disciplinado por uma espécie normativa específica, que no caso é lei em sentido estrito. Por força do citado princípio constitucional nenhuma outra modalidade normativa pode dispor sobre o assunto, haja vista a determinação constitucional.

Isso implica dizer que o legislador constituinte originário procurou facilitar a criação de tais espaços, bem como dificultar a sua desconstituição ou flexibilização. Logo, a restrição guarda relação tanto com a diminuição quantitativa do espaço físico da área, o que consistiria na supressão parcial ou total do território protegido, quanto com a sua diminuição qualitativa, o que consistiria na manutenção do espaço físico protegido porém com alteração a menor do nível de proteção.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 519.778/RN, que teve como relator o Ministro Luís Roberto Barroso:

(…)

15. A Constituição, portanto, permite a alteração e até mesmo a supressão de espaços territoriais especialmente protegidos, desde que por meio de lei formal, ainda que a referida proteção tenha sido conferida por ato infralegal. Trata-se de um mecanismo de reforço institucional da proteção ao meio ambiente, já que retira da discricionariedade do poder executivo a redução dos espaços ambientalmente protegidos, exigindo-se para tanto deliberação parlamentar, sujeita a maior controle social.

16. Tal arranjo se justifica em face da absoluta relevância do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A dicção constitucional, que o considera um ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida’ (art. 225, caput), reforça o entendimento doutrinário de que se trata de um direito fundamental, vinculado a um dever de solidariedade de amplitude inclusive intergeracional, como já assentado pela jurisprudência deste tribunal.

Há outros julgados da Suprema Corte brasileira sobre o assunto:

A Constituição do Brasil atribui ao poder público e à coletividade o dever de defender um meio ambiente ecologicamente equilibrado (Constituição do Brasil/1988, art. 225, § 1º, III). A delimitação dos espaços territoriais protegidos pode ser feita por decreto ou por lei, sendo esta imprescindível apenas quando se trate de alteração ou supressão desses espaços. Precedentes.

[MS 26.064, rel. min. Eros Grau, j. 17-6-2010, P, DJE de 6-8-2010.]= RE 417.408 AgR, rel. min. Dias Toffoli, j. 20-3-2012, 1ª T, DJE de 26-4-2012.

Os atos administrativos gozam da presunção de merecimento. (…) A criação de reserva ambiental faz-se mediante ato administrativo, surgindo a lei como exigência formal para a alteração ou a supressão – art. 225, III, do Diploma Maior. (…) Consulta pública e estudos técnicos. O disposto no § 2º do art. 22 da Lei 9.985/2000 objetiva identificar a localização, a dimensão e os limites da área da reserva ambiental. (…) A implementação do conselho deliberativo gestor de reserva extrativista ocorre após a edição do decreto versando-a.

[MS 25.284, rel. min. Marco Aurélio, j. 17-6-2010, P, DJE de 13-8-2010.]= ADI 4.218 AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 13-12-2012, P, DJE de 19-2-2013.

Ação direta de inconstitucionalidade estadual. Lei municipal que altera regime de ocupação do solo de zona de proteção ambiental. Lei municipal é a via própria para alteração do regime de ocupação do solo.

[RE 519.778 AgR, rel. min. Roberto Barroso, j. 24-6-2014, 1ª T, DJE de 1º-8-2014.]

Meio ambiente. Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225). Prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade. Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado da solidariedade. Necessidade de impedir que a transgressão a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeneracionais. Espaços territoriais especialmente protegidos (CF, art. 225, § 1º, III). Alteração e supressão do regime jurídico a eles pertinente. Medidas sujeitas ao princípio constitucional da reserva de lei. Supressão de vegetação em área de preservação permanente. Possibilidade de a administração pública, cumpridas as exigências legais, autorizar, licenciar ou permitir obras e/ou atividades nos espaços territoriais protegidos, desde que respeitada, quanto a estes, a integridade dos atributos justificadores do regime de proteção especial. Relações entre economia (CF, art. 3º, II, c/c art. 170, VI) e ecologia (CF, art. 225). Colisão de direitos fundamentais. Critérios de superação desse estado de tensão entre valores constitucionais relevantes. Os direitos básicos da pessoa humana e as sucessivas gerações (fases ou dimensões) de direitos (RTJ 164/158, 160-161). A questão da precedência do direito à preservação do meio ambiente: uma limitação constitucional explícita à atividade econômica (CF, art. 170, VI). Decisão não referendada. Consequente indeferimento do pedido de medida cautelar. A preservação da integridade do meio ambiente: expressão constitucional de um direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas.

[ADI 3.540 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-9-2005, P, DJ de 3-2-2006.]

O Superior Tribunal de Justiça também já se pronunciou sobre o assunto no Resp. 1071741/SP, que teve como relator o Ministro Herman Benjamin:

Ementa: ambiental. Unidade de conservação de proteção integral (lei 9.985/00). Ocupação e construção ilegal por particular no parque estadual de Jacupiranga. Turbação e esbulho de bem público. Dever-poder de controle e fiscalização ambiental do estado. Omissão. Art. 70, § 1º, da lei 9.605/1998. Desforço imediato. Art. 1.210, § 1º, do código civil. Artigos 2º, i e v, 3º, iv, 6º e 14, § 1º, da lei 6.938/1981 (lei da política nacional do meio ambiente). Conceito de poluidor. Responsabilidade civil do estado de natureza solidária, objetiva, ilimitada e de execução subsidiária. Litisconsórcio facultativo (…) Na sua missão de proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, como patrono que é da preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, incumbe ao estado definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (constituição federal, art. 225, § 1º, iii).

Aliás, o próprio Herman Benjamin também doutrina sobre o assunto:

Como nota Paulo Affonso Leme Machado, autor intelectual deste particular segmento da Constituição (inspirado na Convenção Africana sobre a Conservação da Natureza, de 1968), “a norma constitucional não abriu qualquer exceção à modificação dos espaços territoriais e, assim, mesmo uma pequena alteração só pode ser feita por lei”. Nesse ponto, mais do que alterações pontuais ou físicas no interior de uma Unidade de Conservação, o legislador teve em mente a modificação de status jurídico, quer pela redução física do espaço de aplicação do regime especial, quer pela descaracterização de seus elementos normativos de controle da fruição[3].

O fato é que somente uma lei formal tem o condão de alterar um espaço territorial ecologicamente protegido, ou parte dele, para um nível de proteção menor ou inexistente. Acontece que a Lei n. 9.985/2000, que regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Carta Magna e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, vai além e exige que somente uma lei específica possa desafetar ou desconstituir a área protegida:

Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.
(…)
§ 7º. A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.

Essa exigência guarda consonância com o art. 225 da Constituição da República, uma vez que visa dar concretude aos valores plasmados no caput, pois a impossibilidade de tratamento legislativo em comum com outros temas impede que os parlamentares aprovem a norma sem saber do que estão tratando. Isso serve para demonstrar a ilegalidade e a inconstitucionalidade formal da Medida Provisória n. 852/2018, ao menos no que diz respeito à flexibilização de parte das três citadas Unidades de Conservação, e assim certamente deverá ser declarado pelo Poder Judiciário quando provocado nesse sentido.


[1] “(…) dessa forma, está assumindo, constitucionalmente, no ordenamento jurídico brasileiro, o compromisso de sustentabilidade ambiental, qual seja, de conciliar a promessa da proteção ambiental, inclusive de forma diferenciada, com a ordem econômica, mesmo que baseada nos fundamentos do sistema capitalista de produção […]. Cabe ao Direito Constitucional Ambiental, por meio dos seus instrumentos jurídicos, orientar e promover, via regramento legal, o processo de transição social e econômica que incorpore, em suas atuações, a vertente ecológica, em respeito aos limites de equilíbrio do meio ambiente, propugnando um desenvolvimento baseado em princípios de sustentabilidade” (PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos do direito constitucionais do Direito Ambiental brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 223).

[2] BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 104.

[3] BENJAMIN. Antônio Herman. O regime brasileiro de Unidades de Conservação. Revista da Faculdade de Direito da UFF, vol. 5. Niterói, 2001, p. 53.

Autores

  • é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.

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