Opinião

Implicações do dever de esclarecimento na valoração da prova

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13 de abril de 2018, 6h08

A parte final do artigo 7º do CPC/2015 impõe ao órgão julgador o dever de zelar pelo efetivo contraditório, que, em sua versão contemporânea, abrange, além da possibilidade de conhecer e reagir, a necessidade de participar do processo e influir nos seus rumos[1].

Contemporaneamente, o direito ao contraditório deixou de ser algo dirigido tão somente às partes, envolvendo direta e igualmente também o juiz[2].

Essa exigência, além de revelar outra faceta do princípio do contraditório, materializa, principalmente, o dever de esclarecimento do juiz, que se manifesta, de modo concreto, no artigo 489, parágrafo 1º, do CPC/2015[3]. O referido dispositivo deixa claro o dever de esclarecimento do juiz, no sentido de apreciar os elementos trazidos pelas partes, tanto para acolhê-los, quanto para rejeitá-los[4].

Teresa Arruda Alvim[5] observa, com acuidade, que o juiz, no momento de decidir, “como se fosse um último ato de uma peça teatral”, deve demonstrar que as alegações das partes, somadas às provas por elas produzidas, efetivamente interferiram no seu convencimento. “A certeza de que terá havido esta influência decorre da análise da motivação da sentença ou do acórdão.”

Nesse contexto, destaca-se que, no processo civil cooperativo, o juiz tem o dever de esclarecer os seus próprios pronunciamentos para as partes[6], de modo a deixar claro como formou suas convicções acerca dos fatos, das provas e do direito envolvido[7]. Isso porque, se as partes pudessem alegar e provar livremente, mas o juiz estivesse desobrigado de considerar as provas e manifestações ao julgar, não se poderia falar em contraditório efetivo, senão em princípio a impor forma, sem conteúdo[8].

Ocorre que, muitas vezes, o órgão jurisdicional, pautado em seu “livre convencimento”, não procede dessa forma, especialmente no que se refere à valoração da prova (objeto principal do presente artigo).

Infelizmente, no dia a dia forense, é comum se deparar com decisões que não analisam adequadamente todas as provas produzidas no bojo do processo, capazes de infirmar ou confirmar uma tese (seja do autor ou do réu).

Comumente, é possível observar sentenças, supostamente motivadas, apenas com base nas provas que evidenciam a “hipótese” que se sagrou vencedora. Tais decisões não se coadunam com o processo cooperativo, bem como importam inobservância do dever de esclarecimento, pois o juiz não pode deixar de demonstrar também que as eventuais provas produzidas pela parte perdedora não lhe convenceram[9], sob pena de violação ao princípio do contraditório e da igualdade processual.

Nesse sentido, destaca-se o julgado de relatoria do desembargador J. B. Franco de Godoi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, acertadamente, decretou a anulação da sentença, ao verificar que o juiz de primeiro grau levou em consideração (leia-se, valorou) apenas o acervo probatório produzido por uma das partes. Confira-se:

"Deve o magistrado analisar o acervo probatório de forma global, de modo a assegurar a prestação jurisdicional equânime. Ao analisar apenas o acervo probatório produzido por uma das partes, patenteou-se a violação ao princípio do contraditório material, pois ambas as partes têm direito de influenciar, de forma igualitária, o desfecho da lide. Trata-se de uma medida de Justiça e equidade!"[10].

A partir do referido julgado, fica evidente que o juiz não pode considerar e eleger apenas parte da prova produzida por uma das partes, uma vez que a função da motivação (dever de esclarecimento) não é apenas de demonstrar uma escolha, mas, sim, a de justificar porque foi feita uma determinada escolha. Além do mais, a prova requerida e produzida pela parte vencedora poderá, inclusive, favorecer a perdedora, ainda que em parte[11].

Ressalta-se também que no processo civil cooperativo a mera menção genérica de que a prova não serve à comprovação das alegações da parte não se coaduna com a exigência de uma fundamentação adequada, bem como importa inobservância do dever de esclarecimento, “visto que não há como se verificar se o conteúdo da prova fora efetivamente valorado, e se a ele fora conferido o sentido que realmente expressa”[12].

Assim, a fundamentação no processo cooperativo não pode se resumir tão apenas a um discurso retórico/persuasivo[13]. É necessário que o juiz avalie todo o conjunto probatório reunido no processo, explicitando as razões que sustentam racionalmente sua conclusão[14].

Revela-se, portanto, atentatória à plenitude da motivação a inferência parcial às provas[15], a conduta do juiz que se limita a mencionar apenas as que confirmam e corroboram com a sua conclusão, desprezando as demais, como se fosse possível uma espécie de seleção artificial em matéria probatória[16], acarretando, desse modo, nulidade do pronunciamento judicial.

Arruda Alvim[17] esclarece que o juiz até pode julgar procedente uma demanda com base no depoimento de uma única testemunha contra o depoimento de outras três, mas deve, necessariamente, dizer (esclarecer e fundamentar) por que aceitou e por que recusou a versão dos fatos narrados.

Para o aludido autor, tal postura resulta em garantia das partes, do juiz e do próprio Estado. Das partes, porque elas terão, na fundamentação, os melhores motivos para impugnar a decisão do juiz: do juiz, porque, fundamentando a sua decisão, estará acobertando qualquer arguição de arbítrio ou parcialidade; do Estado, porque este quer que a lei seja aplicada corretamente na solução da controvérsia[18].

Nesse sentido, pode-se destacar o julgado, de relatoria do magistrado Francisco Cardozo de Oliveira, do Tribunal de Justiça do Paraná, que, atento ao dever de esclarecimento decorrente do processo cooperativo, decretou a nulidade da sentença, por verificar nela a ausência de fundamentação adequada, uma vez que o juiz a quo não relacionou o conteúdo de uma prova testemunhal com as demais provas produzidas nos autos, implicando, desse modo, cerceamento de defesa. Vejamos:

"No caso em apreço, quanto à prova testemunhal produzida pelo apelante, na sentença constou apenas que, em razão da ausência de 'elementos de convicção capazes de comprovar os fatos alegados no petitório inicial', eles não seriam utilizados. Como se observa, a sentença não foi devidamente justificada neste ponto, porquanto não expôs as razões concretas pelas quais o conteúdo da prova não seria utilizado. Da forma como posta, a sentença não permite, inclusive, aferir se o conteúdo da prova foi devidamente valorado. Em razão da necessidade de uma fundamentação adequada, a sentença deveria ter relacionado o conteúdo da prova testemunhal produzida pelo recorrente com as demais provas e, a partir de razões concretas, se fosse o caso, afastar a sua incidência. Verifica-se, portanto, a presença de vício de fundamentação, merecendo prosperar o recurso de apelação nesta parte, devendo ser decretada a nulidade da sentença"[19].

A sentença ou o acórdão, como fruto de um diálogo pautado na racionalidade e na argumentação, obviamente deve esclarecer as razões pelas quais os argumentos e as provas de uma das partes são rechaçados em prol da outra[20]. Assim, muito embora a valoração da prova seja feita livremente pelo juiz, já que o Direito brasileiro adotou — e continua adotando, conquanto a supressão do adjetivo “livre” — a regra da valoração racional da prova[21], as razões que fundaram o seu convencimento a respeito da prova devem constar da fundamentação da sentença, sob pena de violação ao dever de esclarecimento[22].

O dever de esclarecimento, portanto, decorrente do modelo de processo cooperativo, impõe que todas as provas produzidas pelas partes sejam analisadas e, principalmente, consideradas pelo juiz no momento da sua decisão, por meio da fundamentação. Se as partes produziram as provas, mas o juiz não demonstra que as considerou em seu pronunciamento, a decisão será nula por ofensa ao contraditório e vício de fundamentação. Ou seja, o magistrado não pode julgar com base em uma determinada prova sem deixar claro o porquê de ter optado por esta e não pelas outras[23].


[1] Nesse sentido, é oportuna a indagação feita pela professora Teresa Arruda Alvim (2011, p. 3), ainda sob a vigência do CPC/1973, acerca da necessidade das partes influenciarem diretamente no resultado do processo. Vejamos: “O contraditório, que deve proporcionar às partes oportunidades de, efetivamente, influenciar no resultado do processo, de certo modo exerce também a função de imunizar o sistema social contra o descontentamento. A interpretação do princípio do contraditório desta maneira é perfeitamente compatível com o direito brasileiro. Aliás, é até difícil de se compreender como tenha sido, em outros tempos, concebido o princípio do contraditório de modo diferente. Que sentido tem, de fato, dar-se à parte o direito de informar-se e de reagir, se ao juiz for dado pura e simplesmente ignorar o material produzido pela atividade das partes?”.
[2] ALVIM, Teresa Arruda. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. Doutrinas Essenciais de Processo Civil. vol. 6. p. 531 – 542. Out/2011.
[3] Nesse sentido: “Cinge-se a controvérsia a decidir sobre a invalidade do julgamento proferido, por ausência de fundamentação, a caracterizar violação do art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015. 4. Conquanto o julgador não esteja obrigado a rebater, com minúcias, cada um dos argumentos deduzidos pelas partes, o novo Código de Processo Civil, exaltando os princípios da cooperação e do contraditório, lhe impõe o dever, dentre outros, de enfrentar todas as questões pertinentes e relevantes, capazes de, por si sós e em tese, infirmar a sua conclusão sobre os pedidos formulados, sob pena de se reputar não fundamentada a decisão proferida” (STJ, REsp 1.622.386/MT, 3ª T., j. 20/10/2016, rel. min. Nancy Andrighi, DJe 25/10/2016).
[4] ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2. Ed. São Paulo: ed. RT, 2016. Versão eletrônica. Comentários aos art. 9°.
[5] ALVIM, Teresa Arruda. Op. cit. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão.
[6] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. v. 1. 18 ed. Salvador: Jus Podivm, 2016. p. 127.
[7] Em relação ao dever de motivar as decisões judiciais, destaca-se, o recente livro da professora Teresa Arruda Alvim. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3. ed. São Paulo: RT, 2017. pp. 179-252.
[8] TRT 12, RO 06124200703712004/SC, 1ª T., j. 28/4/2009, rel. José Ernesto Manzi, DJe 29/5/2009.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO. Novo Curso de Processo Civil. v. 2. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2015. Versão eletrônica. Item 10.6.2.2.
[10] TJ-SP, Ap. 1050605-02.2015.8.26.0100, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 26/10/2016, rel. J. B. Franco de Godoi, DJe 1º/11/2016.
[11] Ibidem. Versão eletrônica. Item 10.6.2.2.
[12] TJ-PR, Ap. 1338338-7, 11ª Câmara Cível, j. 25/11/2016, rel. Francisco Cardozo Oliveira, DJe 24/1/2017.
[13] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Teoria geral do Direito Processual Civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. I. ed. 57. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 891.
[14] GODINHO, Robson Renault. Reflexões sobre os Poderes Instrutórios do Juiz: o processo não cabe no "Leito de Procusto". Revista de Processo. vol. 235/2014. p. 85 – 117. Set/2014.
[15] THEODORO JÚNIOR, Humberto. op. cit., loc. cit.
[16] GODINHO, Robson Renault. op. cit., loc. cit.
[17] ALVIM, Arruda. Teoria Geral do Processo. 8ª ed. São Paulo: Forense, 2002. p. 74.
[18] Idem.
[19] TJ-PR, Ap. 1338338-7, 11ª Câmara Cível, j. 25/11/2016, rel. Francisco Cardozo Oliveira, DJe 24/1/2017.
[20] ALVIM, Teresa Arruda. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. Doutrinas Essenciais de Processo Civil. vol. 6. p. 531 – 542. Out/2011.
[21] Moacyr Amaral Santos já há muito destaca que o sistema da persuasão racional revela-se mais eficiente do que os demais, pois não escraviza o juiz, contrariando a consciência nele formada pelas provas, características do sistema da prova legal, nem o arvora em poder discricionário, intangível e indomável, apanágio do sistema da livre convicção. Moacyr Amaral Santos pontua que no sistema da persuasão racional: “Não se deixa de reconhecer desempenhar o juiz uma das funções de soberania, a mais nobre certamente, e, em consequência, que deve ser um órgão ativo, ao qual são outorgados poderes ordinatórios e disciplinares necessários para o solícito desenvolvimento do processo, como se coloca na condição de colaborar com as partes na procura da verdade, de sorte que a sua decisão possa representar realmente a expressão de uma convicção sólida”. SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no cível e no comercial. vol. I. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1970.p. 357-358.
[22] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO. Novo Curso de Processo Civil. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Versão eletrônica. Item 10.6.2.4.
[23] ARRUDA ALVIM, Teresa. et al. op. cit. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2. Ed. São Paulo: ed. RT, 2016. Versão eletrônica. Comentários ao art. 371. Item 2.1.

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