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Maternidade livre, direitos efetivados — O Habeas Corpus coletivo 143.641

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  • é ministro do Supremo Tribunal Federal professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito do Estado pela Universidade de Münster (ALE).

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7 de abril de 2018, 10h00

Spacca
Gilmar Mendes caricatura [Spacca]Em 20 de fevereiro do corrente ano, ao julgar o Habeas Corpus coletivo 143.641/SP, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, concedeu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas que estivessem gestantes, puérperas ou fossem mães de crianças e/ou deficientes sob sua guarda, exceto na hipótese de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça contra seus descendentes ou, ainda, em outras situações excepcionalíssimas, as quais só poderiam vir a impedir a substituição prisional por meio de fundamentação judicial apropriada.

Em um primeiro momento, o julgado em referência suscitou complexa e relevante questão acerca do cabimento de habeas corpus em caráter coletivo. Em meu voto, fundamentado no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal, reconheci ser cabível o remédio constitucional para o pleito coletivo ali versado.

Com efeito, além de não haver óbices legais ao seu manejo por via coletiva, o mandamus naquele caso tinha por pano de fundo a escandalosa e deplorável situação vivenciada de forma generalizada pelas mães e gestantes brasileiras encarceradas nas instalações prisionais de todo o país. Ademais, considerei que o habeas corpus impetrado em sua vertente coletiva, afora ser capaz de receber maior visibilidade por propiciar atuação mais objetiva do STF, seria apto a economizar tempo e energia do tribunal, cujo acervo processual se mostra tão sobrecarregado.

De mais a mais, como bem pontuou o relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, “o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com crescente generosidade, os mais diversos institutos que logram lidar mais adequadamente com situações em que os direitos e interesses de determinadas coletividades estão sob risco de sofrer lesões graves”.

Quanto ao mérito, faz-se mister destacar que o encarceramento cautelar de mulheres gestantes e mães é um tema enfrentado pela corte já há alguns anos. Por diversas vezes, a 2ª Turma do STF concedeu habeas corpus para substituir a prisão preventiva de pacientes gestantes e lactantes por prisão domiciliar, como nos seguintes julgados em que atuei como relator: HC 134.104/SP; HC 134.069/DF; HC 133.177/SP; HC 131.760/SP; HC 130.152/SP; HC 128.381/SP; HC 142.593/SP; e HC 142.279/CE. No mesmo sentido foram as decisões concessivas de liminar no HC 142.479 MC/SP, relator ministro Ricardo Lewandowski; e do writ no HC 134.734/SP, relator ministro Celso de Mello. Sobre o tema, mencionei, também, as seguintes decisões monocráticas de membros da 1ª Turma do STF: os HCs 134.979/DF; 134.130/DF; 133.179/DF; e 129.001/SP, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, e o HC 133.532/DF, de relatoria do ministro Marco Aurélio. Ademais, há ainda julgados mais recentes a serem mencionados, a exemplo do HC 148.061/SP e do HC 139.889/SP, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; e o HC 150.308/SP, de minha relatoria.

A questão central do writ circundava em grande medida a interpretação que se deveria conceder ao artigo 5º, L, da Constituição Federal — dispositivo que determina a necessidade de se assegurarem às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação —, bem como às disposições dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal — os quais preveem a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela domiciliar quando as encarceradas estiverem gestantes ou forem mães de crianças de até 12 anos de idade.

Nesse contexto, mostra-se oportuno o processo legislativo que resultou na promulgação da Lei 13.257/2016 — conhecida por Marco Legal da Primeira Infância —, a qual terminou por acrescentar os referidos incisos IV e V ao artigo 318 do CPP. Com efeito, a própria justificação do projeto de lei afirmava expressamente o objetivo de, em primeiro lugar, “estabelecer maior sintonia entre a legislação e o significado do período da existência humana que vai do início da gestação até o sexto ano de vida”. Nesse quadro, o que buscavam os legisladores era, precipuamente, responder “à relevância dos primeiros anos na formação humana, na constituição do sujeito e na construção das estruturas afetivas, sociais e cognitivas que dão sustentação a toda a vida posterior da pessoa e fazem uma infância mais saudável e feliz”. Partindo-se dessa análise, é evidente que o que se quis tutelar foi, essencialmente, a vida dos nascituros e das crianças já concebidas. Privar o convívio desses indivíduos com as respectivas mães nessa importante fase de crescimento, ou, ainda, introduzi-los junto às genitoras no precário sistema carcerário brasileiro, pode ser muito prejudicial à sua formação.

Também merecem destaque as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, conhecidas por Regras de Bangkok. Adotadas pelos Estados-Membros da ONU, essas normas visam a dar atenção às especificidades de gênero no encarceramento feminino. Veja-se, a título de exemplo nesse sentido, a Regra 42, cuja previsão é no sentido de que “O regime prisional deverá ser flexível o suficiente para atender às necessidades de mulheres gestantes, lactantes e mulheres com filhos/as”. Com isso, perceptível é o cuidado da comunidade internacional em tutelar, de forma especial e específica, os direitos dos nascituros/filhos das gestantes/mães encarceradas, para que esses não sofram injustamente as consequências das mazelas do sistema prisional brasileiro.

Também a Constituição Federal brasileira demonstra atenção à tutela dos direitos das crianças e jovens. Com efeito, o artigo 227 da Constituição Federal prevê os direitos das crianças/adolescentes/jovens à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, atribuindo não só ao Estado, mas também às respectivas famílias, o dever de assegurar, com prioridade absoluta, o exercício dessas garantias às crianças e jovens. Veja-se, ademais, que o artigo 229 da Carta Maior é ainda mais direto ao atribuir especificamente aos pais — e não à família em geral — “o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”. Merece destaque, ainda, o fato de que a proteção à maternidade e à infância é expressamente prevista no artigo 6º da Constituição Federal enquanto direito social dos brasileiros.

Resta dedutível que a eficácia dos referidos dispositivos constitucionais torna-se inviável com o encarceramento de mães e gestantes. Isso porque, nessas situações, na prática, ou há a separação da genitora e seu filho, ou há o aprisionamento também da criança, que passa a dividir a cela com a mãe. É inequívoco assim que, em ambas as hipóteses, as presidiárias acabam impossibilitadas de cumprir seus deveres literalmente consignados na Constituição Federal de proteção às garantias de seus filhos, que, por sua vez, têm a sua esfera de direitos individuais diretamente transgredida pelo encarceramento de suas genitoras.

É importante que se considere, ainda, a situação desumana dos presídios brasileiros, o que torna ainda mais evidente a violação de garantias constitucionais. Com efeito, o STF, quando do julgamento da ADPF 347, em 2015, reconheceu uma violação sistêmica e generalizada de direitos fundamentais da população carcerária do país, ao declarar que o sistema penitenciário brasileiro vivia um “estado de coisas inconstitucional”, decorrente de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, que submetem os presos a condições degradantes.

Portanto, amparado na necessidade de existência de proteção integral dos direitos de crianças e jovens, o Supremo Tribunal Federal consignou que a substituição da prisão preventiva pela domiciliar das mulheres presas que estivessem gestantes, puérperas ou fossem mães de crianças e/ou deficientes sob sua guarda deveria ser a regra, ao passo que a exceção, isto é, a negativa à substituição prisional deveria ocorrer apenas em casos excepcionais, com ampla fundamentação judicial. Para que a decisão do STF produza efeitos céleres e satisfatórios, comunicou-se aos Presidentes dos tribunais estaduais e federais, inclusive da Justiça Militar estadual e federal, para que prestem informações e, no prazo máximo de 60 dias a contar da publicação do decisum, implementem de modo integral as determinações estabelecidas.

É fácil notar a importância do julgamento desse habeas corpus coletivo pelo STF. Afinal, a decisão nele proferida produz impacto não apenas na situação de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, mas também na situação das próprias crianças.

Assim, vejo com bons olhos a decisão do Supremo Tribunal Federal, que, de forma ampla e simbólica, atribuiu maior efetividade à tutela de direitos tão fundamentais das mães e gestantes brasileiras, bem como concedeu maior concretude às garantias constitucionalmente asseguradas a seus filhos.

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