Tributação diferenciada no
agronegócio não é privilégio
20 de outubro de 2017, 10h06
Dentro deste evento a palestra de abertura do professor Heleno Torres e de encerramento do professor Marco Aurélio Greco me levaram à elaboração deste texto, sobretudo, ao contextualizar com o momento que o setor está vivenciando em questões fiscais.
Explico.
Em razão da atual crise econômica e dificuldade do Governo em cumprir com suas despesas e metas, há forte discurso no sentido de abolir “incentivos”, “benefícios” ou “privilégios” de natureza fiscal de setores entre eles do agronegócio.
O outro ponto de ordem pragmática que me leva a esta reflexão, tem relação com a forma de intepretação e aplicação de dispositivos legais voltados a tributar de maneira diversa o setor do agronegócio. Temos observado uma conduta de buscar restringir ou mesmo impedir o gozo do que a própria lei concedeu, numa interpretação equivocadamente restritiva e sem conhecimento até mesmo da realidade do setor.
Pois bem. Reiteramos que “Tributar de forma diferenciada o setor do agronegócio não é privilégio, mas, verdadeiramente, cumprir o que determina a Constituição Federal e o sistema jurídico brasileiro”.
Ao se falar em “agronegócio” estamos incluindo uma ampla cadeia econômica que se inicia desde a elaboração de insumos para a produção agropecuária, a atividade rural ou agrária na essência, além de operações de produção agroindustrial, processamento, armazenagem, distribuição e consumo, ou até mesmo instrumentos financeiros voltados a fomentar estas atividades.
Este setor possui inúmeras especificidades ou peculiaridades que não podem ser ignoradas pelo legislador e que já representam um relevante ponto de partida a justificar um tratamento diferenciado em matéria fiscal que, em momento algum, pode receber o adjetivo de privilégio.
Entre as peculiaridades mais comuns temos[1]: (i) sazonalidade da produção (depende de condições climáticas, safra e entressafra, implicando em variações de preços, necessidade de infraestrutura para estocagem e conservação, períodos maior de insumos e fatores de produção, receitas concentradas em curtos períodos, logística mais exigente, sazonalidade no emprego); (ii) influência de fatores biológicos (os produtos estão sujeitos à doenças e pragas, que podem gerar diminuição da produção ou até mesmo sua perda total, resultando em elevação de custos de produção, riscos para os operadores e meio ambiente, possibilidade de resíduos tóxicos, inviabilizando a venda, além de tais fatos exigirem um frequente investimento em pesquisa, desenvolvimento de novas formas de produção, serviços especializados); (iii) perecibilidade rápida (são produtos cuja vida útil pode ser de horas, dias, semanas ou meses, gerando inclusive a necessidade de cuidados na colheita, classificação e tratamento de produtos, além de logística); (iv) influência dos elementos e fatores climáticos (dependência na produção do clima, ou seja, temperatura, umidade, radiação, pressão, etc, interferindo diretamente na produção, sendo uma atividade de alto risco; (v) baixo valor agregado aos produtos agropecuários.
Juntamente com as peculiaridades, como estamos a tratar de questão jurídica, nada mais relevante do que demonstrar ser imperioso o tratamento fiscal diferenciado para o setor do agronegócio em razão da imposição do próprio texto constitucional.
A Constituição como conjunto de princípios e regras de natureza formal e material que estrutura todo o sistema jurídico, exercendo o papel de fundamento de validade de todas as demais legislações, será nossa premissa jurídica para reiterar a necessidade do tratamento diferenciado ao setor, inclusive, como elemento da mais adequada interpretação de toda e qualquer lei que discipline o tema.
Pela natureza de sua atividade, que tem total relação com a produção de alimentos, embora alguns itens tenham também outras destinações relevantes (exemplo, celulose para o papel, o bagaço da cana para energia, o álcool como biocombustível, etc), o agronegócio já merece destaque no texto constitucional desde o art. 1º, da Constituição Federal, ao estabelecer que a República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, tem entre os fundamentos “a dignidade da pessoa humana” (inc. III).
Ora, é base do Estado Democrático de Direito a proteção e concretização da dignidade da pessoa humana, que se revela como o direito fundamental à vida digna, resguardando o sistema jurídico, o Estado e a sociedade a qualquer pessoa o mínimo existencial. Neste sentido, não há dúvida de que o Estado obrigatoriamente deve fomentar a produção de alimentos, e, por conseguinte, o agronegócio como forma de concretizar a dignidade da pessoa humana.
Portanto, pretensões estatais no sentido de tributar e gerar dificuldade de produção na cadeia do agronegócio nada mais significa de que em última instância ignorar a dignidade da pessoa humana e impedir objetivos fundamentais estabelecidos no texto constitucional (artigo 3º), como “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Mais do que isso, o incentivo ao setor do agronegócio concretiza direitos fundamentais sociais básicos (artigo 6º), pois a Constituição expressamente reconhece entre eles o direito à alimentação.
Já quando analisamos a Ordem Econômica e Financeira, sobretudo, os princípios gerais, também notamos elementos relevantes a justificar o tratamento diferenciado ao setor e sua tributação, já que, segundo art. 170, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme ditames da justiça social.
Por fim, a Constituição Federal, dada a sua relevância, trouxe um Capítulo específico para o setor: “Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária”.
Entre os dispositivos que possuem relação com nosso texto, está o art. 187, o qual enuncia:
“Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:
I – os instrumentos creditícios e fiscais;
II – os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização;
III – o incentivo à pesquisa e à tecnologia;
IV – a assistência técnica e extensão rural;
V – o seguro agrícola;
VI – o cooperativismo;
VII – a eletrificação rural e irrigação;
VIII – a habitação para o trabalhador rural.
§ 1º Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agro-industriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.
§ 2º Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária.”
Percebe-se, portanto, que a Constituição Federal estabelece e direciona sua atividade por meio de políticas públicas para fomentar e incentivar o setor do agronegócio, podendo-se destacar no inciso I, do art. 187, que, expressamente, determina a necessidade de levar em consideração instrumentos fiscais.
Chegamos, então, ao ponto de convergência de nossas ponderações.
A tributação no Estado atual tem em geral a função de arrecadar, o que é inegável.
Todavia, isto não significa que toda e qualquer atividade, até mesmo por questão de igualdade, razoabilidade e capacidade contributiva, devem suportar a mesma forma de tributação.
E quando se trata de segmento econômico que possui por essência concretizar direitos fundamentais basilares pautado pela dignidade da pessoa humana, e, por conseguinte, de vida digna e alimentação, não resta dúvida de que a tributação deve perseguir outras finalidades que fogem e muito da sanha arrecadatória.
A tributação que deve ser mínima e simplificada, quando existente, deve buscar o fomento e incentivo do exercício desta atividade econômica, de alta representatividade no PIB brasileiro, a fim de produzir cada vez mais, com maior qualidade e tecnologia, visando não somente o desenvolvimento e estabilidade do setor, mas, sobretudo, concretizar efetivamente os direitos fundamentais elementares que estão voltados para a própria dignidade da pessoa humana e seu mínimo existencial.
Não deve, assim, a tributação ser instrumento que inviabiliza e dificulta o exercício das atividades econômicas voltadas para o agronegócio.
E mais, a interpretação e aplicação de leis que estabelecem formas diferenciadas de tributação, créditos, reduções de base de cálculo, alíquotas, entre outras medidas de fomento e incentivo de natureza fiscal, não devem ser feitas de forma restritiva, utilizando-se equivocadamente o artigo 111, do Código Tributário Nacional.
Ao contrário, tais medidas fiscais de fomento e incentivo ao setor do agronegócio devem receber interpretação a partir do texto constitucional que busque estabelecer a máxima efetividade dos direitos fundamentais que estão por detrás desta atividade, valendo-se, inclusive, de métodos hermenêuticos evolutivos, finalísticos e sistemáticos.
Daí ser possível afirmar que a tributação diferenciada que encontramos no setor do agronegócio em diversas legislações esparsas, tais como créditos presumidos e suspensão, não incidência e alíquota zero de PIS e Cofins, depreciação acelerada e incentivada quanto ao IRPJ/CSLL, compensação de prejuízos fiscais, diferimento e isenções de ICMS, não são privilégios, ao contrário, instrumentos fiscais de incentivo e fomento da mais relevante atividade econômica quando se trata de garantir e concretizar direitos fundamentais cravados na Constituição.
Ademais, se justificam por inúmeras peculiaridades e riscos apontados que o setor sofre, merecendo, assim, um tratamento jurídico específico e diferenciado, em cumprimento aos princípios elementares de igualdade, razoabilidade e capacidade contributiva.
Quiçá entendam as autoridades fiscais e demais aplicadores do Direito que tais legislações não estabelecem privilégios, sensibilizando da necessidade de uma interpretação que não seja restritiva, permitindo que tais instrumentos fiscais possam ser aplicados com plenitude a fim de fomentar o setor do agronegócio, em cumprimento do texto constitucional.
Da mesma forma, a título de política legislativa, diante das peculiaridades do setor e relevância jurídica, econômica e social, que se reestruture a partir do texto constitucional a forma de tributação do agronegócio, traçando os aspectos gerais a partir de uma Lei Complementar, como temos para o Simples Nacional. Certamente, seria uma medida que poderia fomentar de maneira mais adequada o setor, sobretudo, em matéria fiscal, além de gerar mais segurança jurídica.
[1] ARAUJO, Massilon J. Fundamentos do Agronegócio. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 7-12.
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