Se direito é linguagem, então
contra fatos só há argumentos
15 de julho de 2017, 8h00
Imagino o promotor carregando um grande “saco de fatos” às costas para exibi-los na audiência de instrução, a fim de deixar a defesa sem palavras e, assim, conformar a convicção do juiz. Impossível não lembrar de Gulliver, na capital Balnibarbos, ao visitar a academia dos sábios. Na escola de linguagem, havia um acadêmico que “propunha um modo de abolir todas as palavras, de maneira que se discutisse sem falar, o que seria favorável ao peito, porque está claro que, à força de falar, os pulmões se gastam e a saúde se altera. O expediente, por ele achado, era trazer cada qual consigo todas as coisas de que quisesse tratar. Este novo sistema, dizia-se, seria seguido, se as mulheres se lhe não tivessem oposto” (Parte III, Cap. V). Aliás, é compreensível que Swift tenha outorgado às mulheres essa posição de resistência. Afinal, como se costuma dizer, “quem não tem falo fala”.
Ora, se o Direito é linguagem — e isso me parece trivial, ao menos desde o início do século passado —, então contra fatos só há argumentos. E essa é uma razão pela qual os interessados devem prestar vestibular para o curso de Direito e, depois, estudar alguma coisa de filosofia. Isso porque, epistemologicamente, o processo judicial não é formado de fatos, mas de enunciados linguísticos acerca de fatos, como sempre dizem Lenio, Warat, Albano, Cárcova, Calvo González, entre outros. O papel das partes é, precisamente, fazer prova dos fatos alegados. Aliás, é por isso e para isso que existe o processo, sobretudo se entendido como procedimento em contraditório. Ninguém traz os “fatos em si” ao juiz. Essa seria uma tarefa espaço-temporal impossível. Na verdade, todo fato é “conhecido” por meio de um relato. É o relato que lhe dá vida. Isso implica, evidentemente, uma redução hermenêutica. Os “fatos” terminam por ser aquilo que acerca deles dizemos. O que não significa, por óbvio, que possamos dizer qualquer coisa sobre os fatos! Em suma, operamos somente com a narração dos fatos, e não com o objeto empírico daquilo que enunciamos (que só é acessível por meio da linguagem!).
Em outras palavras, todo processo judicial caracteriza-se pelo antagonismo entre as versões oferecidas pelas partes a respeito de determinados fatos. Ocorre que os fatos residem no passado, de maneira que o processo é o modo por meio do qual, no campo do Direito, tentamos reconstruir os fatos. Essa reconstrução somente é possível por meio de relatos, cuja verossimilhança também exige provas… e, por óbvio, argumentos, sem fazer aqui qualquer apologia às teorias da argumentação.
A máxima de que “contra fatos não há argumentos”, se levada às últimas consequências, representaria a prescindibilidade do processo e, de certa forma, do próprio Direito. Além disso, ela se encontra relacionada a outra máxima que simplifica o funcionamento do sistema de justiça: “dê-me os fatos que eu te darei o Direito” (da mihi factum, dabo tibi ius). Todo o resto seria desnecessário…
O grande problema é que essa “objetividade” — que teria o condão de dispensar argumentos em sentido contrário —, paradoxalmente, apenas aumenta ainda mais o grau de discricionariedade dos julgadores, na medida em que aposta numa razão instrumental e técnica, resultante, porém, de uma atividade solitária, subjetiva, solipsista. Como se sabe, ao reduzir a esfera do contraditório — e, consequentemente, a prática da intersubjetividade —, também se enfraquece o grau de legitimidade das decisões judiciais. E isso nunca é bom num ambiente democrático.
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