Aventura de Robinson Crusoé evidencia importância da linguagem da igualdade
10 de setembro de 2016, 8h01
A vida na ilha continua… até que Crusoé salva mais uma vida, mas agora a do Capitão de um barco cuja tripulação havia se amotinado e que o havia arremessado ao mar, na direção à ilha. Os dois acordam que Crusoé iria ajudar o Capitão, sob duas condições: 1) que o capitão obedeça a Crusoé enquanto estiver na ilha e; 2) que, depois de recuperar o barco, o leve até a Inglaterra sem cobrar nada. Aceitas as cláusulas do contrato, as partes o cumprem.
O que importa destacar nessa metáfora literária é que, enquanto no caso de Sexta-Feira a relação é de subordinação irrestrita, isto é, sem respeito à sua condição de humano, no caso do Capitão, há uma relação de obrigações recíprocas de quem se reconhece no mesmo patamar. Enfim, Sexta-feira era uma “coisa/objeto” e somente o Capitão é considerado um sujeito!
Esse exemplo demostra como as relações humanas podem se estabelecer entre sujeitos que se respeitam em condições horizontais — ou seja, de iguais — ou podem se estabelecer com a premissa de que há sujeitos que se acham ou que estão em patamar superior, seja ele econômico, étnico, social, ou de outra natureza. Tais pré-noções são absolutamente importantes no contexto do Direito e Processo Penal contemporâneos. Enfim, as relações de igualdade, de “cidadania modulada”, a tensão entre liberdade e igualdade, no campo do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, precisam de “respostas corretas”, articuladas em face da Constituição da República.
Para compreender, todavia, o modo de pensar será preciso articular o sentido democrático à noção de igualdade, cujo efeito poderá ser devastador, caso acolhidas distinções ad hoc, como amigo/inimigo, substituição militarizada da noção de adversário (Chantal Mouffe), com o qual se pode dialogar ao invés de (buscar) aniquilar. É um jogo político que se esgueira por detrás da concepção de democracia e que repercute na maneira como se ensina Direito e Processo Penal.
Sem que nos percamos em “natureza jurídica”, “interpretações gramaticais, sistemáticas”, nem qualquer outra ilusão metafísica, mortas pela superação do paradigma sujeito-objeto, bem apontadas por Lenio Streck, mas que ainda vivem no “senso comum teórico” (Warat), precisamos construir novas maneiras de transmitir o Direito e, partindo da aplicação da teoria dos jogos ao Direito, perceber de que modo se relacionam os adversários, dentro da metáfora de “Robinson Crusoé”.
A interpretação é um ato de compreensão, e a perspectiva geométrica do Direito é entulho ideológico que polui (ainda) a praia do jurídico. Em tempos de “analfabetismo funcional dos atores jurídicos”, cada vez mais é preciso levar a formação a sério, desde um ponto de vista hermenêutico.
Perceba-se que o encadeamento de sentido depende, na matriz — no ponto de amarração — de um desvelar hermenêutico, do qual só podemos escapar pela fuga metafísica. Sem ele, a partida hermenêutica estará viciada porque o campo em que será disputado o embate é minado. Pode-se até realizar a partida e durante ela se fazer um gol, mas, quando menos se espera, a ordem é recomposta… Por isso parece fundamental que se imponha, de alguma forma, “o” campo em que a partida será disputada, isto é, da hermenêutica filosófica ou da filosofia hermenêutica. Somente nesse campo é possível promover condições para uma “resposta certa constitucionalmente adequada” (Lenio Streck), em face de sujeitos que se reconheçam em igualdade de proteção constitucional e que não se aceite ninguém na posição de Sexta-feira! Aí reside a dignidade.
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