"Mulher pode recusar sexo; mas a negativa não pode ser mesquinha"(sic)
2 de junho de 2016, 8h00
E eu dizia mais: Julgados como esse se embasavam em doutrinadores mais antigos ainda, como Nelson Hungria (1959, p. 126), para quem “o marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma”. Não se olvide que o assim denominado “direito” à conjunção carnal era eufemisticamente referido pelo Código Civil, na medida em que, nos artigos 240 e seguintes — hoje bem alterado pelos artigos 1.566 e seguintes. Nesse “dever” (sic) que a mulher tinha para com o marido é que se encontra(va) “incluído”, consoante Silvio Rodrigues (1979, p. 126), o de manter relacionamento carnal.
Tal tese civilista pode ter levado Damásio de Jesus, expoente da doutrina penal, a um equívoco, eis que, ao comentar o artigo 213 do Código Penal (atualmente, com a alteração do CP, estupro e atentado foram fundidos em um tipo só), assim se pronunciava:
“(A mulher) não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa” (Direito Penal, Editora Saraiva de 1999, p.96 — Mas também se repete nos Código Penal Anotado, também pela Saraiva — também livro de 2002, p.722-723).
Há outros autores que se aproximavam dessa posição. Ou a repetiam. Deve-se frisar que, atualmente, os tribunais e a própria doutrina já assimilaram conceitos mais modernos a respeito do tema, entendendo que, em verdade, o marido que força a esposa à prática sexual não está exercitando um direito, e sim, abusando de um direito… Ainda bem, não?
Mas esse é um problema visceral na dogmática. No Brasil, ela tem sido factumfóbica e cronofóbica. Explico. Os próprios exemplos utilizados em sala de aula ou em determinadas obras jurídicas se mostram desconectados do que acontece no cotidiano da sociedade. Isso decorre de uma cultura estandardizada, no interior da qual a dogmática jurídica trabalha com prêt-à-porters significativos. Conceitos sem coisas, por assim dizer. Há uma proliferação de CBD’s (compêndios de baixa densidade), que procuram “explicar” o direito a partir de verbetes jurisprudenciais a-históricos e atemporais.
Minha denúncia vem de longe. Reproduzo o que dizia, então: Ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo jurídico, como se a realidade social pudesse ser procustianamente aprisionada/moldada/explicada através de verbetes e exemplos com pretensões universalizantes. Como se explica o “estado de necessidade”? Não é incomum encontrar professores usando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos CBD’s) “sobem em uma tábua”, e na disputa por ela, um deles é morto (em estado de necessidade, uma vez que a tábua suportava apenas o peso de um deles…!). Cabe, pois, a pergunta: por que não usam, para explicar a excludente do estado de necessidade, um exemplo do tipo “menino pobre entra no supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mando de sua mãe, que não tem o que comer em casa?” Na mesma linha: em importante concurso público realizado no Rio Grande do Sul, perguntou-se: Caio quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o personagem Tício — com certeza um idiota —, bebe as duas porções de veneno). Em consequência da ingestão das meias-doses, Tício vem a perecer… A questão do aludido concurso indagava: Caio e Mévio respondem por qual tipo penal? Em outro concurso, de âmbito nacional, a pergunta dizia respeito à solução jurídica a ser dada ao caso de um gêmeo xipófago (sic) ferir o outro (com certeza, gêmeos xifópagos andam armados, e em cada esquina encontramos vários deles…!).
Dito de outro modo: dessa forma, a cultura standard fornecida pelos CBD’s é reproduzida nas salas de aula e nos concursos públicos. Isso é velho? Entrem na internet e vejam os jovens professores chamando os alunos de “gafanhotos”, tocando violão ensinando ECA cantando funk ou escrevendo livros em palavras cruzadas… E que tal esta? Para explicar a diferença entre culpa consciente e dolo eventual, usa-se o exemplo de um jardineiro que quer cortar as ervas daninhas e corta o caule da flor…! É meigo isso, não?
Esta é apenas a ponta do iceberg e que retrata a dura face do idealismo que permeia o discurso jurídico. Por isso, não me surpreende toda essa discussão sobre a “cultura do estupro”.
E para demonstrar que tudo isso faz parte de um imaginário machista introjetado na e pela dogmática queijo-suíço, lembro-me da seguinte controvérsia: durante um período, foi “permitido” que, no âmbito do direito penal, em face de um conflito de dispositivos legais (Lei 8.069 v. Lei 8.072, ambas de 1990), sustentar a tese de que quem estupra uma criança pode ter uma pena mais branda do que aquele que estupra uma mulher adulta (existiram posições doutrinárias e até mesmo julgamentos nesse sentido, sim!). Explicando: o artigo 263 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispôs sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentou um parágrafo único aos artigos 213 (estupro) e 214 do Código Penal (atentado violento ao pudor), agravando a pena quando cometido o crime contra pessoa menor de 14 anos (a pena estabelecida foi de 4 a 10 anos). Entretanto, a Lei 8.072, do mesmo ano, que classificou os crimes hediondos, além de agravar a pena de estupro, criou uma causa de aumento de pena, aumentando-a da metade quando praticado o crime contra pessoa menor de 14 anos.
No caso em tela, criou-se, à época, o seguinte impasse: o artigo 213, por exemplo, passara a estabelecer que quem praticasse estupro contra pessoa maior (caput do artigo), receberia uma pena de 6 a 10 anos; já no parágrafo único tinha-se que quem praticasse o crime contra pessoa menor de 14 anos, a pena seria menor, ou seja, de 4 a 10 anos. Duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais se formaram: uma defendendo a validade do parágrafo único, é dizer, admitiam que quem praticasse estupro contra criança poderia receber pena menor que quem estuprasse uma pessoa adulta, e a outra defendendo a tese de que o citado parágrafo único era inadmissível.
Ou seja, assim como os juristas estão colaborando para a destruição da Constituição, muitos também colaboraram para o incremento de uma sociedade sexista e machista. E violenta. Já li decisões, nem tão antigas, de absolvições de pessoa que ejacula sobre criança, de estupradores sob o argumento de que a vítima não fechou as pernas, etc. Mas também há decisões condenando por estupro (agora os dois tipos foram unidos) pelo fato de alguém passar a mão nas nádegas de uma mulher. Ou por beijar lascivamente. Atos reprováveis. Mas não configuram um crime hediondo a ponto de gerar uma pena de seis anos para cima. Durante anos defendi, como procurador, a necessidade de um tipo intermediário, que seja menos que o estupro e mais do que contravenção penal. Há centenas de decisões que, em face do exagero da reprimenda — desproporcional — em alguns casos, acabam por aplicar a contravenção do artigo 60, reduzida a uma multa. Óbvio que isso tem de ser alterado.
Tudo isso é muito complexo, mesmo. Fui protagonista da alteração do Código Penal que extinguia a punibilidade do estuprador pelo casamento da vítima com terceiro ou com o próprio estuprador. Foi a partir de um julgado, em que atuei como procurador de justiça, que iniciou o movimento pela alteração. Foi o caso de um cidadão condenado a 12 anos que casou com a estuprada — era uma menina e cresceu (pretensamente teria casado). E teve a extinção de sua pena. Sustentei a inconstitucionalidade dos dois incisos. Perdi por três a zero. Isso gerou o movimento para a alteração do CP (artigo 107, incisos VII e VIII, cujos incisos foram expungidos).
Mais: Lembremos que não faz tanto tempo que o estupro saiu do capítulo dos crimes contra os costumes. Portanto, faltou uma cultura de respeito à dignidade da mulher. De novo: a dogmática jurídica, historicamente, fez e faz tantos estragos que hoje — em meio a uma crise — não consegue sequer segurar a legalidade mínima para proteger uma pessoa contra o vazamento de informações gravadas em conversas privadas. Nem o Chefe do Executivo está livre de escutas. A dogmática jurídica acredita na verdade real. E invertemos o ônus da prova. E acreditamos no livre convencimento. E na livre apreciação da prova. O direito penal se transformou em direito penal do autor. Olha-se quem é e arbitra-se a pena. E, por quê? Porque não respeitamos a lei. Não respeitamos a Constituição. E não respeitamos as mulheres. Simples assim.
Pobre país em que, em nome dos fins, justificamos os meios. Talvez o estupro seja um fim e a sociedade, de algum modo, justifique o uso dos meios. Pelo menos a dogmática jurídico-penal não se esforçou muito para melhorar esse estado d’arte. Na dúvida, releiam o início da coluna.
Post scriptum: Congresso da ABDconst, 16º Ano. Dias 26-28 de maio. 2,8 mil pessoas lotando o Teatro Guaíra de Curitiba. Fiquei emocionado pelo carinho de mais de mil pessoas que nos três dias vieram tirar fotos comigo e falar sobre os textos que leem em sala de aula. Obrigado a tantos professores que levaram seus alunos. Momentos de muita ternura. Minha filha flagrou um dos dois dias de filas para autógrafos comigo (vejam aqui). Constato isso em todos os congressos. Mas especialmente neste a coisa pegou mais. E vejo que vale a pena escrever todas as semanas. Por isso cansei — com gosto — a mão escrevendo dedicatórias. Falarei mais sobre esse congresso na sequência. Por enquanto, muito obrigado a essa gente que veio de tantos lugares ao Congresso de Curitiba.
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