O enigma de Vasti, ou a metáfora da coragem da recusa
8 de novembro de 2015, 7h10
Bem entendido, o presente ensaio não é um esforço de interpretação teológica ou de exegese bíblica. Falta-me sobretudo conhecimentos de teologia para tal iniciativa. Cuido de um exemplo literário, e o que trato como tal, com o objetivo de ilustrar alguns problemas da história do Direito e da hermenêutica. Refiro-me ao problema das fontes, ao tema da tradução, ao dilema do presenteísmo e ao conteúdo ideológico da ação interpretativa. Interpreto uma fonte primária, ainda que traduzida e reproduzida, com meus olhos e sentimentos de meu tempo, sob forte inspiração ideológica reveladora de um humanismo imaginário.
Talvez na Pérsia (que o texto identifica como reino de Assuero, que cobria desde a Índia até a Etiópia) o rei Xerxes (que o texto também identifica como Assuero) dera uma grande festa, no terceiro ano de seu reinado. Fala-se de um grande banquete, servido a príncipes e servos; o texto bíblico invoca um soberano desejoso de impressionar, vaidoso, exibindo suas riquezas, como inegáveis provas de sua glória e poder. Conta-se que o folguedo durara 180 dias.
A abastança do soberano é também revelada com a descrição do palácio, no qual “as tapeçarias eram de pano branco, verde, e azul celeste, pendentes de cordões de linho fino e púrpura, e argolas de prata, e colunas de mármore; os leitos de ouro e de prata, sobre um pavimento de mármore vermelho, e azul, e branco, e preto”. O texto também nos revela que se bebia em copos de ouro, que eram diferentes uns dos outros. O “beber era por lei”, o que indica uma obrigação.
Ao mesmo tempo, a rainha Vasti recebia as mulheres do reino em umo outro banquete, em outro local do palácio; o texto bíblico não descreve nem o banquete de Vasti nem o outro local onde a festa se passava. O rei, embriagado ao extremo (com o coração alegre de vinho, na linguagem metafórica do texto bíblico), determinou que seus camareiros trouxessem a rainha, formosa, bela, “para mostrar aos povos e aos príncipes a sua beleza”. Vasti deveria comparecer à festa, exibindo-se, a mando do rei, portando a coroa real.
Vasti negou-se a atender a ordem do rei, que era seu marido. Este ficou enfurecido, nele acendendo “sua ira” na melodiosa linguagem desse belo texto. O rei socorreu-se de seus conselheiros (sábios que entendiam dos tempos, isto é, da vida secular e real). Questionou aos doutores da lei o que deveria fazer com Vasti, que o desrespeitara publicamente. Os intérpretes da lei entenderam que Vasti praticara um crime político, enfrentando a autoridade maior do reino; matizava uma péssimo exemplo, que afetaria negativamente a autoridade de todos os homens daquele importante reino.
O conselheiro mais influente, Memucã, contaminou o rei, dizendo que rainha não pecara somente contra o soberano, “porém também contra todos os príncipes, e contra todos os povos que há em todas as províncias do rei”. Afirmou que todas as mulheres desprezariam seus maridos. O rei deveria baixar um édito real, proibindo a presença de Vasti na corte, destituindo-a de seus bens e alguma influência.
Os doutores da lei suscitaram que Xerxes noticiasse o reino de sua decisão, redigindo nas respetivas línguas e escritas que mulheres deveriam honrar aos maridos. O rei procurará uma nova esposa, que encontrará na pessoa de Ester, situação que se desdobra na segunda parte desse livro.
Não se sabe os motivos da negativa de Vasti. Imagina-se que a exposição pretendida pelo rei desonrava a rainha, ciente de seus valores, como pessoa, e não como objeto de exposição pública. Ainda, seria festejada por uma horda de borrachos, bêbedos, cujo comportamento não controlava.
O texto é antigo, traduzido, carregado de metáforas e de maneirismos de um tempo que desconhecemos, e de uma civilização sobre a qual apenas conjeturamos. O problema central do excerto, submissão ou desobediência da rainha, é inegavelmente uma questão de gênero que se resolve no plano da liberdade, ainda que o preço pago fora a condição material de vida da insurreta, e ainda que em outras épocas possa ter suscitado interpretações menos benevolentes para com Vasti.
A influência dos doutores da lei na formação da vontade do Estado é, porém, situação recorrente, em vários tempos e lugares, o que revela suspeita aliança entre o intelectual e o poder, ainda que esse seja um tirano, e aquele, um fino pensador.
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