Novo CPC deixa claro que juiz tem dever de cooperar com as partes
9 de maio de 2015, 10h23
Os novos rumos do processualismo moderno, inclusive, de forma intrínseca na nova legislação adjetiva civil, calham no encontro extremamente positivo entre o processo e a Constituição. Conforme bem delineia Eduardo Cambi,
“a Constituição brasileira de 1988, ao contemplar amplos direitos e garantias fundamentais, tornou constitucional os mais importantes fundamentos dos direitos materiais e processuais (fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional). Deste modo, alterou-se, radicalmente, o modo de construção (exegese) da norma jurídica. Antes da constitucionalização do direito privado, como a Constituição não passava de uma Carta Política, destituída de força normativa, a lei e os códigos se colocavam no centro do sistema jurídico”.[1]
Assim, sendo a Constituição Federal o centro gravitacional do sistema jurídico, conceitos antes em voga acabaram por ceder espaço aos preceitos da Carta Magna. O processualismo moderno, importando conceitos europeus, aprimorou tal retrógrado sistema culminando na atualidade com o neoprocessualismo.
Este, em síntese, almeja-se uma ordem jurídica justa pautada na instrumentalidade do processo[2], bem como de sua construção mediante técnicas processuais adequadas a consecução dos direitos materiais.
Destarte, no sistema pátrio nacional o jurisdicionado tem direito a uma ordem jurídica justa que abrange não só o contraditório sob a ótima formal, mas também substancial[3]: o devido processo legal substancial e a participação dialética na formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa sob o édito constitucional explicitado no inciso LIV[4] do art. 5º da Constituição Federal.
A propósito, neste vagar bem decidiu o egrégio Tribunal de Justiça de Goiás, a saber:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA. ESPECIFICAÇÃO DE PROVAS NÃO OPORTUNIZADA. CERCEAMENTO DE DEFESA. 1 – O constitucional princípio do acesso à justiça, é muito mais do que formulações do tipo 'acesso ao Poder Judiciário' mas sim, acesso a uma ordem jurídica justa, que é a garantia de efetiva e adequada participação no processo, com possibilidade de levar ao julgador todas as provas de que dispuser, relevantes e pertinentes, para ter um julgamento justo(…)(TJ-GO, APELACÃO CIVEL 303847-35.2012.8.09.0051, Rel. DES. WALTER CARLOS LEMES, 3A CÂMARA CIVEL, julgado em 02/07/2013, DJe 1340 de 10/07/2013)”
Nesse prisma, pode-se exarar perfeitamente que o processo deve refletir, e com esforço das partes, o que se denomina cooperação intersubjetiva, pautada na boa fé e até mesmo com o auxílio do juiz, sem que macule o princípio da demanda ou a imparcialidade do juiz (sendo este último pressuposto processual subjetivo).
Demais disso os ventos da legislação inovadora apontam, não mais, para o isolamento/protagonismo processual e sim, lado outro, para a comparticipação/policentrismo processual. Tal preceito está esculpido no art. 6º do novel Código de Processo Civil: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”[5].
Mencionada cooperação é vislumbrada sob a égide da comunidade de trabalho, nos moldes do Direito alemão.[6]
Conforme bem elucida Lúcio de Grassi de Gouvêa, o princípio da cooperação equivale ao direito de perguntar ao juiz (Fragerecht) que corresponde a um dever de esclarecer (Frege und Aufklärungspflicht). O Direito alemão admite inclusive a utilização do recurso, nos casos em que fosse aconselhável o esclarecimento das posições, de fato e de direito, das partes e a introdução de eventuais perceptivas jurisdicionais divergentes.[7]
Logo, para que o processo de fato mereça o qualificativo de democrático/justo e se torne real o clima de colaboração entre juiz e as partes, a nova lei impõe uma conduta leal e de boa-fé, não só dos litigantes, mas também do magistrado, a quem atribuíram os deveres de esclarecimentos, de diálogo, de prevenção de auxílio para com os sujeitos interessados na correta composição do conflito de conflito, criando-se um novo ambiente normativo contrafático de indução à comparticipação (em decorrência dos comportamentos não cooperativos).[8]
Convém destacar que, com a democracia social, intensificou-se a participação do Estado na sociedade e, por consequência, a atuação do juiz no processo, que não deve mais estar apenas preocupado com o cumprimento das “regras do jogo”, cabendo-lhe agora zelar por um processo justo, capaz de permitir: (i) adequada verificação dos fatos e participação das partes em um contraditório efetivo, (ii) a justa aplicação das normas de direito material, e (iii) a efetividade da tutela dos direitos, já que a inércia do juiz, ou abandono do processo á sorte que as partes lhe derem, tornou-se incompatível com a evolução do Estado e do Direito[9].
Nesse toar, e já exemplificando, o dever de esclarecimento é sintetizado na ação de “contribuir para mitigação das desigualdades substanciais entre as partes, tem-se cogitado conferir ao juiz a faculdade de prestar-lhe informações sobre os ônus que lhes incumbe convidando-as, por exemplo a esclarecer e complementar suas declarações acerca dos fatos, ou chamando-lhes a atenção para a necessidade de comprovar alegações.[10] [11]
No mesmo rumo, o dever de auxílio nos termos explicitados por Fredie Didier Jr. consiste na hipótese “do dever de auxiliar as partes na superação das eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais.[12]
Justamente nesses parâmetros, o indeferimento da inicial se descumpridos preceitos legais não é mais tarefa imediata ou primeira e sim, somente após de cumpridos os deveres de auxílio/cooperação/esclarecimento pelo magistrado, visando sempre o resultado útil processual e a sentença definitiva (e não a terminativa de outrora), nos moldes explicitados no novo art. 319 § 1º: “Caso não disponha das informações previstas no inciso II, poderá o autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências necessárias a sua obtenção. De acordo com o § 2º, “a petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu (…).”
Logo, repisando, a petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao disposto no inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou excessivamente oneroso o acesso à justiça.
O Novo Código de Processo Civil, conforme denota Tereza Arruda Alvim Wambier, “trata-se de evidente manifestação do princípio da cooperação. Do mesmo modo suaviza a exigência do inciso II, §2º que indica não dever o juiz indeferir a inicial se, apesar de faltar algum dos dados, for possível a citação do réu.[13]
Além da hipótese ventilada, na fase saneadora do feito o mencionado princípio também tem sua incidência ampliada, conforme os parágrafos 1º§ e 3º§ do art. 357[14]. Tal preceito vem recebendo da doutrina a denominação de saneador compartilhado[15].
Destarte, o dever de consulta, igualmente oriundo da vertente neoprocessualista, tem como objetivo evitar decisões surpresas[16], ou seja, não consubstanciadas pela marcha processual eleita nas manifestações do julgador.
Tais vertentes estão intimamente interligadas com os artigos 9º[17] e 10[18] do novo Código Adjetivo e, por seu turno, com o princípio do contraditório em seu viés substancial.
Sublinha-se, nesse ponto, que “o contraditório constitui uma verdadeira garantia da não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive de conhecimento oficioso, impedindo que aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas a partes”.[19]
Estes e outros deveres restaram, com proficuidade, arrematados em voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal:
Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado "Anspruch auf rechtliches Gehör" (pretensão à tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar. Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5o LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;(…).(MS 24268, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2004, DJ 17-09-2004 PP-00053 EMENT VOL-02164-01 PP-00154 RDDP n. 23, 2005, p. 133-151 RTJ VOL-00191-03 PP-00922).
Desta feita, busca-se, a partir dos preceitos firmados anteriormente, a máxima eficácia da relação processual, visando seu resultado útil e, mormente, seu término com sentença definitiva (não terminativa, portanto) pacificando a relação contenciosa nos moldes preconizados pelo Estado Constitucional, mormente, pelos direitos fundamentais.
Tais vertentes devem ser guiadas pela reconstrução interpretativa e argumentação jurídica com técnicas efetivas e idôneas para tutelar, desta maneira, o direito material ou o bem da vida.
De mais a mais, encerra-se estes breves comentários com os dizeres de Luiz Guilherme Marinoni:
“encarar o processo civil como uma comunidade de trabalho regida pela ideia de colaboração, portanto, é reconhecer que o juiz tem o dever de cooperar com as partes, a fim de que o processo civil seja capaz de chegar efetivamente a uma decisão justa, fruto de efético ‘dever de engajamento’ do juiz no processo. Longe de aniquilar a autonomia individual e auto-responsabilidade das partes, a colaboração apenas viabiliza que o juiz atue para a obtenção de uma decisão justa com a incrementação de seus poderes de condução no processo, responsabilizando-o igualmente pelos seus resultados. A colaboração não apaga obviamente o princípio da demanda e as suas consequências básica: o juízo de conveniência a respeito da propositura ou não da ação e a delimitação do mérito da causa continuar tarefas ligadas exclusivamente à conveniência das partes. O processo não é encarado nem como coisa exclusivamente das partes, nem como coisa exclusivamente do juiz – é uma coisa comum ao juiz e às partes (chose commune des parties et du juge)”.[20]
[1] CAMBI, Eduardo. Leituras Complementares de Processo Civil. 6ª ed. Juspodivm. P. 155.
[2] Conforme nos ensina a festejada obra de Cândido Rangel Dinamarco, a instrumentalidade tem aspectos positivos e negativos, sob este viés pretende combater o formalismo, enquanto positivamente deve o processo ser apto a produzir escopos institucionais são eles jurídicos-politicos-socias.
[3] A dimensão formal garante às partes o direito de integrar a ação cujo objeto possa atingir-lhes em determinado direito. É a garantia de as partes serem ouvidas antes de uma decisão que lhes seja desfavorável. Já a dimensão substancial realiza-se no "poder de influência", ou seja, não basta poder participar do processo (dimensão formal), é preciso que a participação seja apta a interferir no conteúdo da decisão. Assim, o contraditório é a participação com poder de influência.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[5] O princípio da cooperação é relativamente jovem no direito processual. Cooperar é agir de boa-fé. Teresa Arruda Alvim Wambier e outros. Primeiros Comentários ao noco Código de Processo Civil. 1ª Ed. 2015. pag. 62.
[6] Oriundo da teoria austríaca e, posteriormente, a germânica. Arbeitsgemeinschft
[7] Leituras Complementares de Processo Civil. 6ª ed. Juspodivm. P. 175.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: RT 2010. Pag. 48
[9] Op. Cit. Pag. 449.
[10] O dever de esclarecimento possui claramente um duplo sentido vetorial: de um lado permite ao magistrado esclarecer fatos e situações jurídicas, dentro da premissa do máximo aproveitamento e da primazia do mérito; de outro viabiliza às partes a potencialidade de obter do magistrado decisões que sejam fruto do debate em contraditório, desprovidas de dúvida e obscuridades. Humberto Theodoro Júnior e outros. Novo Código de Processo Civil – Fundamentos e Sistematização. Forense. 2015. 1ª Ed. p. 77.
[11] MOREIRA BARBOSA, José Carlos. Temas de direito processual. 4ª ´série. São Paulo, 1989. p.70.
[12] Fundamentos do princípio da cooperação processual civil português. Coimbra Editora. 2010
[13] Op. Cit. pag. 547.
[14] Art. 357 Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:(…)§ 1o Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.(…)§ 3o Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações.(…)
[15] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 102.
[16] Tais preceitos, a exemplo, já eram proibidos na legislação austríaca (Zivilverfahrens-Novelle 2002) em seu § 182 “a”.
[17] Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:I – à tutela provisória de urgência;II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III;III – à decisão prevista no art. 701.
[18] Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
[19] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 100.
[20] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Curso de Processo Civil. Ed. RT. 2015. p. 74-75.
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