As associações sem fins econômicos podem ser empresárias?
15 de junho de 2015, 8h00
As associações sem fins econômicos se inserem nesse universo.
No Brasil, pela lente do direito positivo, até antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, prevalecia a indistinção entre as associações e as chamadas sociedades civis.
Essa situação contrastava com as inúmeras particularidades das organizações associativas que a distanciavam do modelo societário e, por isso, demandavam um regime jurídico próprio, seja pelo momento histórico de promoção do associacionismo, seja pela descoberta, nas associações, de um poderoso espaço catalisador de interesses, de projetos e de metas[1].
O Código Civil de 2002, coerente com esse contexto, inaugura um tratamento de direito positivo que estrutura, em direito privado, um suporte para a atuação supraindividual sem fins econômicos, de inquestionável relevância social.
É interessante notar que, nesse sentido, esta figura de direito privado (a associação), torna-se o epicentro de relações jurídicas que se estendem por diversos setores do ordenamento jurídico.
Externamente, sublinhamos as relações jurídicas com a administração pública (v.g., as OSCIPS, as organizações sociais e as recentes organizações da sociedade civil tratadas pela Lei n.º 13.019/14), as relações jurídicas tributárias (com imunidades e isenções que acentuam a necessidade de diferenciação das sociedades), as relações jurídicas contratuais privadas (contratos de patrocínio, contratos de publicidade, organização de eventos, contratos de locação etc.), as relações jurídicas laborais, entre outras.
Internamente, entre os associados, o vínculo formado pelos estatutos e a constituição de órgãos também é peculiar ao suporte corporativo, daí os direitos e deveres característicos à posição de associado, as previsões estatutárias socialmente típicas, os critérios de admissão e exclusão de associados, os métodos para solução de conflitos, entre outros.
Esta temática é objeto de investigação em nosso Núcleo de Pesquisas em Direito Privado Comparado na UFPR, integrante da Rede de Pesquisas em Direito Civil Contemporâneo.
Os resultados encontram-se expostos em livro elaborado ao longo dos últimos dez anos e planejado para enfrentar estas diversas relações jurídicas, públicas e privadas, internas e externas, que têm como epicentro as associações sem fins econômicos[2].
Nesta oportunidade, gostaríamos de apresentar ao leitor as linhas gerais que o Código Civil adotou para estruturar as associações e propor uma resposta para a indagação exposta no título: há contradição em se pensar uma associação sem fins econômicos empresária?
Sugerimos iniciar pela investigação crítica dos elementos que integram o fato jurídico “associação sem fins econômicos”, nos termos do artigo 53 do CCB.
Em primeiro lugar, as associações são constituídas a partir da união de pessoas, físicas ou jurídicas, em exercício de uma liberdade garantida como direito fundamental pela Constituição Federal (artigo 5, inciso XVII e XVIII).
Essa união deve estruturar-se em determinada organização, denominada corporativa, mediante a qual se estabelece uma diferenciação mais acentuada entre a associação e os seus criadores.
Savigny esclarece que “a característica essencial de uma corporação é que seus direitos sustentam-se não sobre seus membros individualmente considerados, nem mesmo sobre todos seus membros reunidos, mas sobre um conjunto ideal. Uma consequência particular, mas importante, é que a mudança parcial ou mesmo integral dos seus membros não atinge nem a essência nem a unidade da corporação”[3].
Ressalte-se que a caracterização das associações não se dá por um objeto social que circunscreve as atividades que a entidade pode empreender. O que particulariza as associações é o seu escopo e não o seu objeto e, nessa medida, o rol de atividades potencialmente admitidas é mais extenso[4].
A ausência de finalidade lucrativa não se confunde com a ausência de finalidade econômica. A economicidade envolve a geração de riquezas para o desenvolvimento de escopos econômicos.
Às associações não se interditam as atividades que persigam o lucro objetivo. Veda-se o lucro subjetivo, ou seja, a distribuição dos resultados aos associados.
Pode-se ir além. Nada impede que as associações exerçam, profissionalmente, atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de produtos ou serviços. É possível sustentar, portanto, a existência de uma associação empresária nos termos do art. 966 do Código Civil.
Conforme explicação de Vincenzo Buonocore, “o método econômico não se contrapõe ao método lucrativo e a produção do lucro não se confunde com a destinação do lucro”[5].
A possibilidade do desenvolvimento de atividade empresarial pelas associações é defendida em importantes estudos monográficos europeus dedicados ao tema, podendo-se citar as obras de Francesco Galgano, Giuseppe Tamburrino e Jorge Manuel Coutinho Abreu[6].
É urgente ampliar os campos de atuação das associações e fomentar as possibilidades de pujança econômica de tais entidades. O desenvolvimento de atividade empresarial pelas associações representa um relevante passo nesta direção, por estender as possibilidades de atividades lucrativas, cujos resultados serão oportunamente destinados ao perseguimento das finalidades ideais associativas.
A ausência de finalidades econômicas não impede, e nem deve impedir, que as associações sofistiquem as possibilidades de sustentação econômica para além das contribuições dos associados.
Nestes quadrantes, o reconhecimento das associações empresariais, e de todas as inúmeras consequências que podem daí advir, representa um salto conceitual com relevantes consequências sociais.
O aprimoramento das possibilidades de geração de riquezas pelas associações é diretamente proporcional ao engrandecimento da atuação destas entidades na sociedade brasileira, com ganhos para a democracia e para a participação social.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] Sobre o assunto, Conan observou: “talvez seja o tempo de se perceber que os novos temas dos partidos dos anos anteriores foram emprestados pelas associações (democracia local, feminismo, lazer, ecologismo)” (Conan. Démocratie locale. Esprit, n.6, p.41, 1978).
[2] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo : RT-Thomson Reuters, 2014.
[3] SAVIGNY. Traité de droit romain. Paris : Librarie de Firmin Didot Frères, 1855, v.2, p.237.
[4] ZANELLI, Enrico. La nozione di oggetto sociale. Milano : Giuffrè, 1962, p.54.
[5] BUONOCORE, Vincenzo. L’impresa. Torino : Giappichelli, 2002, p.88-89.
[6] GALGANO, Francesco. Delle associazioni non riconosciute e dei comitati. Zanichelli : Foro Italiano, 1976, p.92-93; TAMBURRINO, Giuseppe. Persone giuridiche, associazioni non riconosciute, comitati. Torino : Utet, 1980, p.132; ABREU, Jorge Manuel Coutinho. Da empresarialidade (as empresas no direito). Coimbra : Almedina, 1996, p.163.
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