Limite Penal

Depoimento Especial é antiético
e pode levar a erros judiciais

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  • é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

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  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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23 de janeiro de 2015, 7h00

Spacca
Todos nós reconhecemos que a tomada de depoimento infantil e adolescente é complicada. E os juristas não sabem, na maioria das vezes, lidar com subjetividades, principalmente de criança ou adolescente sentado na cadeira de depoimento. Antecipamos que, na verdade, nem sequer deveriam deferir essa prova. Os Conselhos Federais de Psicologia e Serviço Social orientaram seus membros sobre a ausência de ética do profissional que se submete a servir de instrumento, como nos mostrava Foucault.

Ao mesmo tempo em que um culpado não pode deixar de ser responsabilizado, um inocente não pode ser o bode expiatório. Para isso o processo penal é o instrumento de garantia de ambos. O Depoimento Especial (rebatizado em face da arrogância do antigo nome: Depoimento Sem Dano – que se dizia não causar dano antes mesmo de acontecer) é um espetáculo punitivo do bem. Na maioria dos casos de boa-fé e na lógica de estar auxiliando na punição de agressores de crianças e adolescentes. Vítimas devem ser garantidas pelo Estado e o único mecanismo democrático para tanto é o processo penal, ouvindo-se os Conselhos Profissionais que apontam a existência de mecanismos aptos e menos ingênuos do que a inquirição como, por exemplo, a entrevista cognitiva, laudos qualificados, etc. Mas muitos juristas sequer sabem que isso existe e querem ouvir todo-o-mundo.

Pela Recomendação 33/2010, o Conselho Nacional de Justiça fomentou a política pública de “a implantação de sistema de depoimento videogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática.” Recentemente, ainda insistindo, promoveu curso de capacitação. Da mesma forma, o projeto de Código de Processo Penal, em tramitação no Congresso Nacional, acolheu a proposição. Logo, sem lei, apenas por iniciativas paralegais, realiza-se a prática. Embora se tente dar conformidade legal, diante da redação do artigo 212 do Código de Processo Penal, inexistem intermediários entre as partes e a testemunha/informante. O psicólogo e o assistente social se instrumentalizam para tanto.

O tema é candente e existem diversas posições. A de Alexandre Morais da Rosa, manifestada em artigo e entrevista, ainda no tempo em que se denominava “Depoimento Sem Dano”, sempre foi contrária. E continua. A de Aury Lopes Jr, também, conforme sustentou em palestras e no livro Direito Processual Penal (Saraiva, 2015). Vamos tentar explicar, resumidamente, os motivos da nossa aversão, até porque muitos atores jurídicos embarcam sem refletir as consequências das novidades, aparentemente não revitimizadoras. Por isso vale a pena discutir o atual estado da arte.

Manifestamos, desde já, o respeito ao magistrado José Antônio Daltoé Cezar, um dos precursores do tema, cujo diálogo tem sido proveitoso e áspero. Suas razões, amplamente divulgadas em diversos textos e palestras, contudo, não nos convencem. Nem por isso desqualificamos sua cruzada pela produção qualificada da prova infantil. Aliás, também queremos qualificar a prova processual penal para ambos os lados. Nosso óbice, em resumo, dá-se pelos seguintes argumentos básicos:

a) Acredita-se que a criança-adolescente vítima da agressão poderia expressar-se por palavras o que se passou em ambiente de perguntas e respostas, ainda que produzido em local diverso (sala do Depoimento Especial) e por profissionais, desconsiderando-se a especificidade de sua condição. A superação da oitiva pode se dar, como amplamente demonstrado pelos escritos de psicologia e serviço social por perícias e laudos que podem, mediante profissionais mais qualificados, obter informações de melhor qualidade (v.g. entrevista cognitiva). Os laudos são produzidos com respeito à vítima, no seu tempo, conforme as possibilidades e jamais em depoimentos gravados expressamente com essa finalidade. Ouvir vítimas não se confunde com inquirir. Duvidamos que se as ouça, porque, no fundo, servem apenas de meio de prova.

b) Confunde-se o direito de ser ouvido (e as perícias e laudos servem para isso) com a inquirição judicial em que, seja por “aclimatação”, “preparação” ou seja lá o nome que se der, no fundo, finge-se que se escuta a criança mediante técnicas de sugestão deliberadas para desvelamento do que se acredita desde antes existentes, na maioria das vezes. Trata-se de quadro mental paranoico denunciado por Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, com grande espaço para falsas memórias (como o filme A Caça bem demonstra; veja aqui a parte que interessa). A verdade já está fixada e o DE é apenas o meio performático de sua confirmação. Nada mais, nada menos.

c) Há uma instrumentalização do profissional que serve de meio para obtenção da prova processual, ou seja, o psicológico ou assistente social não deveria servir como instrumento para profissionais do Direito incapazes de fazer questionamentos, na maioria dos casos desnecessários, dada a existências de outros mecanismos técnicos aptos. Daí a instrumentalização e o motivo pelo qual os Conselhos Federais (Psicologia e Serviço Social) terem afirmado que a atividade é ilegal, embora as Resoluções e Recomendações tenham sido objeto de ações judiciais e suspensas.

d) Desde uma perspectiva processual é uma clara e inegável violação do devido processo penal, pois não tem previsão legal (onde está no CPP?) e não observa a forma estabelecida pelo CPP para a coleta da prova oral e a oitiva da vítima, na medida em que o ato é feito de forma diversa daquela prevista na lei processual, em claro prejuízo à defesa.

e) Viola o artigo 212 do CPP, pois as perguntas devem ser formuladas pelas partes diretamente à vítima ou testemunha. Logo, a formulação da pergunta por interposta pessoa — psicóloga, assistente social etc — desconsidera a nova sistemática legal que acabou com o modelo presidencial.

f) É incompatível com o contraditório e o sistema acusatório, pois estabelece uma estrutura ilegal, que rompe com a paridade de armas e retira a gestão da prova das partes, retrocedendo ao modelo de juiz-ator, agravado pela interposição de um agente estranho ao ritual judiciário, que é o psicólogo se arvorando como interprete/tradutor do discurso da vítima.

g) Desrespeita o Principio da Objetividade da prova testemunhal, na medida em que o depoimento é conduzido e induzido pelo psicólogo/assistente social, fraudando a necessária objetividade do testemunho. Esse profissional acaba por poluir o depoimento, com a sua interpretação/tradução do discurso da criança ou adolescente, manifestando assim suas apreciações pessoais. Viola, por via obliqua, o preceito do artigo 213 do CPP.

Enfim, ainda que existam decisões judiciais favoráveis, parte significativa dos psicólogos, assistentes sociais e juristas já se deram conta de que por mais que se tenha aumentado o número de condenações, diante da metodologia utilizada pelo Depoimento Especial (antigo DSD), muitos casos, depois, podem se configurar em erros judiciários, principalmente pela sugestão e induzimento como se estuda em falsas memórias. E o mais grave de tudo isso é que não se está fomentando um diálogo.

A pretensão do artigo é dizer ao CNJ e ao Poder Legislativo os riscos e as consequências de um modelo que seduz e não resiste, contudo, à compatibilização democrática. Em nome do “bem” se cometem atrocidades. A história está cheia de exemplos. E eles se repetem. O mais difícil de qualquer diálogo é que nos perguntam: de que lado vocês estão? E não conseguimos responder a uma pergunta sem sentido. O processo não poderia estar do lado de ninguém, sob pena de ser um jogo de cartas marcadas. Um espetáculo do bem.

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