Limite Penal

Afinal, quem tem medo da audiência de custódia? (parte 3)

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

    View all posts
  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

    View all posts

27 de fevereiro de 2015, 8h00

Spacca
Nas semanas anteriores falamos sobre a audiência de custódia e seu fundamento legal (clique aqui e aqui para ler). Só não era cumprida no Brasil e por intervenção positiva do Conselho Nacional de Justiça virou política pública. Destacamos as controvérsias e a base normativa, bem assim que deve existir um tempo de acomodação. Dissemos também que o acusado larga inocente, mesmo com prisão em flagrante, inexistindo antecipação de tutela no direito processual penal. A prisão possui fundamento sempre cautelar. Nesta semana continuamos apontando algumas impressões sobre a audiência de custódia no plano da efetivação do ato.

Quem participa da audiência de custódia?
O regime da Constituição e do Código de Processo Penal reserva ao delegado de polícia a função de lavrar o flagrante, transformando em autos a narrativa dos condutores. Além disso, na sequência, poderá conceder fiança nas hipóteses legais. Não cabe à autoridade policial deferir liberdade provisória ou medidas cautelares diferentes do previsto no artigo 319 do Código de Processo Civil. Para isso há reserva de Jurisdição. A polícia judiciária não é órgão do Poder Judiciário (é um paradoxo, mas é uma polícia judiciária não subordinada ao Poder Judiciário), mas do Executivo. Daí que a alegação de que o Delegado de Polícia seria a outra autoridade referida pela Convenção não se sustenta.

A audiência de custódia deve ser presidida por autoridade munida das competências capazes de controlar a legalidade da prisão — o delegado lavra e o juiz controla. Além disso, já nessa fase, tanto Ministério Público como defesa devem sustentar as razões pelas quais a constrição cautelar deve ou não ser mantida. Há reserva de Jurisdição. Logo, além do Juiz, devem participar Ministério Público e defesa.

Qual o objeto da audiência de custódia?
A audiência de custódia não é uma audiência para fins de colheita de prova. É o espaço democrático em que a oralidade é garantida. Seu objeto é restrito, ou seja, não há interrogatório, nem produção antecipada de provas. Há uma prisão decorrente do flagrante e a necessidade de controle jurisdicional. O ato que era praticado exclusivamente pelo magistrado, sem participação dos jogadores processuais (Ministério Público e Defesa), agora muda completamente sua morfologia. Com isso, se dá também efetividade ao disposto no art. 282, $ 3º, do CPP, no sentido de que o contraditório legitima o ato decisório, uma vez que pode acolher e rejeitar os argumentos, conta com a efetiva participação dos agentes processuais.

Quais os passos da audiência de custódia?
Na audiência de custódia deve-se seguir os seguintes passos:

1) A prisão é legal, isto é, era hipótese de flagrante?

2) Se não, relaxa-se; 2.1.) Relaxada a prisão o Ministério Público pode requerer a prisão preventiva ou a aplicação de medidas cautelares;

3) Sustentando-se as razões do flagrante; 3.1) O Ministério Público se manifesta pelo requerimento da prisão preventiva ou aplicação de cautelares ou acolhe as razões formuladas eventualmente pela autoridade policial; 3.2) A defesa se manifesta sobre os pedidos formulados pelo Ministério Público. Se não houve pedido por parte do Ministério Público, o juiz não pode decretá-lo de ofício, já que não existe processo (CPP, artigo 311, vale conferir a redação).

4) O magistrado decide — fundamentadamente — sobre a aplicação das medidas cautelares diversas ou, sendo elas insuficientes e inadequadas, pela excepcional decretação da prisão preventiva.

Podem ser juntados documentos e ouvidas testemunhas?
Os agentes processuais podem juntar documentos para lastrear os respectivos pleitos. Não cabe a oitiva de testemunhas nessa fase. A audiência é com objeto restrito.

Pode a audiência ter continuidade?
Pode a audiência ter continuidade? Entendemos que sim, especialmente nos casos de violência doméstica. É muito comum que nos casos de ação penal privada ou condicionada à representação a vítima seja instada a participar do ato. Nessa situação a Delegacia de Polícia já deve deixar a vítima ciente do ato judicial. Alguns juizados de violência doméstica já estipularam horários diários para apresentação do preso e orientam a autoridade policial que intime a vítima para comparecer no mesmo horário. Como a conduta recém aconteceu, em alguns casos, a vítima está sob efeito de forte emoção e solicita um prazo maior para decidir sobre a continuidade da ação penal. Claro que sabemos da decisão do Supremo Tribunal Federal no caso de lesões corporais, mas as condutas não se restringem a ela. Daí ser possível que ausente, por exemplo, comprovação da residência ou de vínculo certo do conduzido, possa-se redesignar a audiência. Em todos os casos, todavia, a decisão sobre a custódia e eventuais medidas cautelares deve ser tomada.

Cabe usar videoconferência?
Em alguns estados americanos a audiência de custódia é feita por vídeo conferência. Essa modalidade encontra ainda certa desconfiança dadas as condições de pressão que podem ocasionar no estabelecimento penal. Existe a possibilidade de um Defensor permanecer no local de custódia e participar conjuntamente do ato ou mesmo de um estar com o conduzido e outro na sala de audiências. Não podemos dizer que sempre será possível. Entretanto, com as devidas garantias, parece-nos possível. Assim, cai por terra a histeria de que muitos policiais serão obrigados a se deslocar no transporte do conduzido ao juízo.

Em prisões acontecidas fora do estado de origem do conduzido ou mesmo quando deseje contratar um Defensor que não tenha domicílio no mesmo Estado ou comarca, o uso da tecnologia poderá garantir que a escolha por profissional de sua confiança se efetive. Daí a importância da tecnologia, usada sem receios e cuidados, em diversos locais do mundo, garantida a entrevista prévia com o defensor.

Reconhecemos, também, que deve ser exceção e justificada, nos mesmos moldes do artigo 185, parágrafo 2º, do CPP. É que o impacto humano do contato pessoal pode modificar a compreensão. Não podemos é banalizar o uso da videoconferência sob pena de matar um dos principais fundamentos da audiência de custódia: o caráter humanitário do ato, a oportunidade do contato pessoal do preso com o seu juiz.

Controle sobre a integridade física do conduzido
Se o conduzido estiver machucado ou reclamar de tortura, por mais que as lesões possam ser decorrentes do próprio ato de prisão, a leniência do Poder Público resta mitigada e será possível, ao menos, apurar a sua existência. Aliás, como temos insistido, a utilização de aparato de câmeras por parte dos agentes públicos nas suas operações evitaria tanto a alegação de autolesões praticadas pelos conduzidos, bem assim as perpetradas por agentes estatais. E a tecnologia está plenamente disponível. Existem diversos vídeos na internet que demonstram ser a filmagem uma garantia de todos, policiais e conduzidos, mas há gente que não gosta de controle, e se passa. O que se busca é transparência da ação.

O futuro da audiência de custódia
A base normativa é aplicável no Brasil e a audiência de custódia já é uma realidade em diversos Tribunais. A resistência de alguns é mais do que esperada. Também precisamos de um tempo para acomodação das condições materiais. Entretanto, a audiência de custódia é um caminho sem volta. Efetiva o contraditório, a transparência e o controle efetivo de todos os atos, garantindo-se todos os envolvidos.

Terminamos com a história da Nasrudin que um dia procurou o médico e disse: “— Doutor, todo meu corpo dói. Quando toco a cabeça com o dedo, me dói. Quando me todo aqui, no estômago, o mesmo. Quando me toco o joelho, aparece a dor. Quando toco o pé, me dói. Que devo fazer? Como posso aliviar a dor?” O médico examina e diz: “— Teu corpo está bom. Porém tens o dedo quebrado…”

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!