Pode haver responsabilidade objetiva no direito penal?
31 de dezembro de 2015, 7h00
Eis uma bela fábula de Liev Tolstoi:
Um mujique (camponês) entrou com uma ação contra o carneiro. A raposa ocupava naquele momento as funções de juíza. Ela fez comparecer na sua presença o mujique e o carneiro. Explicou o caso.
— Fale, do que reclamas, oh Mujique?
— Veja isso, disse o mujique, na outra manhã eu percebi que me faltavam duas galinhas; eu não encontrei delas nada além dos ovos e das penas, e durante a noite, o carneiro era o único no quintal.
A raposa, então, interroga o carneiro. O acusado, tremendo rogou graça e proteção à juíza.
— Esta noite, disse ele, eu me encontrava, é verdade, sozinho no quintal, mas eu não saberia responder a respeito das galinhas; elas me são, aliás, inúteis, pois eu não como carne. Chame todos os vizinhos, ajuntou ele, e eles dirão que jamais me tiveram por um ladrão.
A raposa questionou ainda o mujique e o carneiro longamente sobre o assunto, e depois ela sentenciou:
— Toda noite, o carneiro ficou com as galinhas, e como as galinhas são muito apetitosas, a ocasião era favorável, eu julgo, segundo a minha consciência, que o carneiro não pôde resistir à tentação. Por consequência, eu ordeno que se execute o carneiro e que se dê a carne ao tribunal e, a pele, ao mujique”.
Esta fábula de Tolstoi me faz lembrar do julgamento do mensalão, quando lá se disse, em um determinado momento, mediante a invocação de Nicola Malatesta de que o ordinário se presume; e só o extraordinário se prova. Claro que, de tão confuso que é o livro, o próprio Malatesta diz o contrário, folhas adiante. De toda sorte, uma coisa é certa: o próprio Malatesta não concorda que o ordinário se presume. Presunções são próprias de sistemas inquisitoriais (ler aqui). Isso para dizer o menos.
Por que estou escrevendo isso? Para falar de direito e literatura? Também. Na especificidade, escrevo para falar de recente decisão do STJ (ler aqui), que, monocraticamente, concedeu liminar em Reclamação (Rcl 29.063) porque uma decisão do Juizado Especial Criminal do RS descumpriu orientação do tribunal. Para o STJ permitir que um motorista sem carteira de habilitação, com habilitação cassada ou com direito de dirigir suspenso, conduza um veículo é crime previsto no Código Brasileiro de Trânsito (CBT), mesmo se não houver um acidente durante a condução irregular. Trata-se de crime de perigo abstrato. Na causa, o Ministério Público recorreu ao STJ depois que o JEC gaúcho absolveu uma acusada que permitiu a condução de seu veículo por motorista sem carteira. Na Reclamação, o Ministério Público salientou que a decisão descumpria um entendimento já firmado pelo STJ ao julgar, em março de 2015, um recurso repetitivo. Segundo a decisão monocrática, "neste caso, estabelece-se um dever de não permitir, confiar ou entregar a direção de um automóvel a determinadas pessoas, indicadas no tipo penal".
Em preliminar. Antes de tudo, há um problema, digamos assim, “sistêmico” na decisão. Isto porque o Tribunal do RS não descumpriu decisão do STJ. No máximo, descumpriu um entendimento do STJ. Temos de dar nome às coisas. Ainda não somos a common law. Fôssemos, o STJ teria que ter feito uma análise detalhada para ver se o caso era rigorosamente igual ao “precedente”. Só que, como sabemos, a decisão anterior do STJ nem de longe pode ser considerado um precedente. Por uma razão simples, que explicito, junto com Georges Abboud, no nosso O que é Isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? (Livraria do Advogado, 3ª. Ed): precedentes não são feitos para decidir casos futuros. Só no Brasil é que se pensa assim. Portanto, o TJ-RS não estava vinculado formalmente ao decidido pelo STJ.
No mérito. Respeitadas as opiniões em contrário — e a coluna objetiva discutir o assunto no plano respeitoso da doutrina, como devem ser feitos os debates — permito-me perguntar: Essa decisão se coaduna com um processo penal democrático? A vingar a decisão do STJ, crimes de perigo abstrato ou de mera conduta são “plenipotenciários”. Nada mais, nada menos do que responsabilidade objetiva no direito penal. Isto é, pelo que se vê da decisão, o sujeito pode ser punido por presunção, para dizer o mínimo. Pior: quem entrega ou empresta o veículo é punido “abstrata e objetivamente” e quem recebe o veículo só será punido penalmente se provocar perigo concreto. A dogmática jurídica brasileira é, mesmo, um queijo suíço. Que confusão entre os artigos 309 e 310 do CNT, pois não? De pronto, poderia dizer: eis aí uma violação da Übermassverbot (proibição de proteção de excesso) e também de um tipo que expande o direito penal à seara administrativa, porque criminaliza um dever administrativo. Sim, sei que se trata de decisão que vem ao encontro do que a maior parte da população deseja (claro, se o envolvido não for a própria pessoa ou um familiar seu, porque, afinal, o inferno sempre são os outros). De novo, o direito cede aos apelos do consequencialismo. Reitero o que venho dizendo de há muito: direito e consequencialismo são antitéticos. Para sermos consequencialistas não precisamos do direito. Bastam raciocínios teleológicos. Sendo mais claro, ainda: trata-se do risco da democracia. Temos que conviver com esses riscos. Não podemos ceder ao primeiro distinguish moral. Um bom teste é a proibição de prova ilícita. Pergunte para um juiz ou promotor se, diante de um conjunto de elementos tipo “está claríssimo que foi fulano o autor do crime”, se a descoberta da ilicitude prova tem o condão de anular tudo. Se ele responder: “— depende”, tem-se que uma garantia constitucional cede diante de um distinguish moral. Não é por nada que até hoje Pindorama aplica um axioma do século XIX pelo qual “não há nulidade sem prejuízo” (que fica mais bonito se dito em francês). Há inúmeras decisões de gente que pegou dez anos de prisão mesmo com prova ilícita. E a decisão diz: o réu não provou o prejuízo.
Volto. E sigo. Parece-me que a decisão do STJ, além do problema apontado em preliminar, viola a presunção da inocência. Isto porque, ao menos na minha leitura, existe exatamente um princípio que obriga a que o judiciário não presuma nada contra o réu. Nunca. Esse princípio está na Constituição. E não admite relativização.
Não tenho dúvida em dizer e admitir que o direito penal deve ser duro. Mas, convenhamos, sem abrir mão das garantias. Por isso, o Estado não necessita de presunções… a seu favor. Ele já é suficientemente forte. Tenho feito, historicamente, uma ode ao respeito à presunção da inocência. Tenho a satisfação de dizer que, enquanto procurador de Justiça, travei longas batalhas contra a violação do princípio da presunção da inocência. Por várias vezes consegui convencer o órgão fracionário do tribunal no sentido de que — e esse é um dos exemplos — nem sempre o porte ilegal de arma pode ser tipificado e punido. Tampouco o disparo de arma de fogo. E a direção por embriaguez. Isto porque nenhum delito admite responsabilidade objetiva. Somente o caso concreto é que pode levar ao enquadramento. Direito penal não pune tabula rasa. Um Estado Democrático não convive com responsabilidade penal objetiva.[1] O Estado jamais se exime de provar que há um bem jurídico concreto em perigo.
Nessa linha, orgulho-me em dizer que travei longas batalhas contra prisões processuais que, pela falta de um fundamento concreto, não raro sequer conseguiam esconder o caráter de adiantamento de uma pretensa e futura pena. Também não exarei pareceres pelo não-conhecimento de Habeas Corpus. Bastava que me trouxessem o corpo, se entendem minha ironia em relação aos inúmeros HCs não-conhecidos pelo país afora, mormente nos tribunais superiores. Minha faculdade não foi grande coisa. Mas aprendi bem “o que é isto — um Habeas Corpus”. E olha que estudei durante a ditadura.
Para preservar as garantias processuais e principalmente a presunção da inocência, várias vezes lancei mão da técnica da nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), também conhecida na Europa como sentença redutiva. Com ela, faz-se uma abdução de sentido. A regra jurídica (lei penal incriminadora) permanece hígida no sistema; ela somente não é aplicada naquele caso concreto, porque, fosse aplicada tabula rasa, violaria a presunção da inocência. E o princípio da culpabilidade. E não o fiz uma vez apenas. Foram muitas.
Vou tentar explicar isso um pouco melhor, até para mostrar como é importante saber manejar a dogmática processual penal sempre com um olho na Constituição. O direito comparado ajuda muito. Há várias decisões nos tribunais europeus. Permito-me remeter o leitor para o meu Verdade e Consenso (Saraiva, 2014, pp. 319 e segs), assim como em vários pareceres (por exemplo, 70009228594 TJ-RS), onde esmiúço a tese.
Resumidamente, trata-se do seguinte: na Espanha, um sujeito foi processado por ter sido preso transportando “ganzuas” (micha, entre outros). A lei culminava a pena de 1 a 5 anos para quem fosse preso transportando esse material. Crime de perigo abstrato na veia. O advogado do cidadão arguiu a inconstitucionalidade do dispositivo. O juiz trancou o processo e remeteu, per saltum, para o tribunal constitucional. Lá, depois de longa discussão, decidiu-se que o dispositivo que criminaliza a posse de ganzuas não era inconstitucional stricto sensu. Afinal, não é vedado que o Estado criminalize esse tipo de conduta. Quando conto em aula, dou um tempo e o aluno pergunta. Mas, então professor, qual é o busílis? Se não é inconstitucional, por que está contando esse caso? Onde reside o problema?
Uma baforada de charuto tipo professor Girafales (meu tipo inesquecível — vejam um dos vídeos que aqui, indico para encerrar 2015 com bom humor e carinho com os meus leitores e os meus alunos de mestrado e doutorado do RS e do RJ) e respondo: Simples. O tribunal constitucional disse que o dispositivo seria inconstitucional se fosse aplicado na hipótese de ocorrer a violação da presunção da inocência. Isto é, no caso concreto, se o dispositivo é aplicado violando a presunção da inocência ou outro princípio, a aplicação incorrerá em uma inconstitucionalidade. Isso, entretanto, não invalida a regra, que poderá ser aplicada nos demais casos. Por isso, fala-se em inconstitucionalidade sem redução de texto (no Brasil há uma confusão entre essa técnica e a interpretação conforme, conforme explico detalhadamente em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 4ª. Ed)..
Em outras palavras: o Estado somente pode processar alguém se provar que um bem jurídico está em jogo concretamente; e tem de provar isso; ou seja, ele, o Estado, não pode presumir. Simples assim. Bingo! E outra baforada a la Girafales.
Vou ser mais simples ainda: Presumir é impedir que o sujeito prove o contrário; enfim, presumir é impedir que o utente prove sua inocência. No direito penal não pode haver responsabilidade objetiva. Sou ortodoxo nesse sentido. Como procurador de Justiça, usei essa técnica várias vezes, com êxito. Aquilo que para o delegado, o promotor e o juiz era um easy case, eu transformava, mediante este raciocínio, em um hard case. Fazia assim todas as semanas. Lembro de um caso de um pobre diabo condenado por disparo de arma de fogo, espantando cabritos de sua lavoura de mandioca. Mostrei que o crime de disparo de arma de fogo, uma vez aplicado por responsabilidade objetiva, violaria o princípio constitucional da presunção da inocência. Usei a Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung. Isso também prova que não há cisão entre casos fáceis e casos difíceis. Um caso é um caso. Depende da compreensão do intérprete. Bingo de novo!
Portanto, antes de falar em “princípio da culpabilidade”, invoco a presunção da inocência. Além disso, como criminalizar a simples entrega do automóvel, mesmo para alguém não habilitado? Isso não é pamcriminalização? Isso não deve ficar no âmbito administrativo? No mais, invoco também os pressupostos filosóficos acerca daquilo que sustenta uma adequada teoria do direito penal. Não é possível sustentar teorias que, no âmbito do direito penal, contentem-se em, metafisicamente (no sentido da ontoteologia), “defender uma plenipotenciariedade da abstratatilidade do tipo penal”, algo como “se a lei proíbe que se entregue um veículo para alguém”, nisso já está contida uma atividade criminosa. Como assim? E, repito: como explicar que o sujeito que pegou o carro só responde por perigo concreto? Ora, daí ao direito penal do autor é apenas um pequeno passo.
Numa palavra: a responsabilidade objetiva do carneiro por furtar galinhas
O carneiro da fábula de Tolstoi se lascou porque contra ele foi usada a responsabilidade objetiva. O fato de passar a noite perto das galinhas representou perigo abstrato. Lascou-se por ser… carneiro. Bastou passar a noite com as “vítimas”. Quantos utentes de terrae brasilis se lascam porque contra eles militam presunções e outros quetais? Mas, como isso é possível se a Constituição garante que a única presunção possível é aquela usada a favor do cidadão? O direito historicamente foi utilizado como instrumento de opressão. Hoje, no Estado Democrático, temos de inverter o polo de tensão. Hoje ele é/deve ser instrumento de libertação e emancipação. Ou não?
Respeito a todos que desejam que hajam menos mortes no trânsito. Quem age irresponsavelmente tem de ser punido. É como ser contra a corrupção. Quem é a favor (a não ser o corrupto)? Por mim, quem entrega o carro e quem é corrupto poderia ser chicoteado por colonos albinos, com açoites tecidos com cânhamo colhido por frades cervejeiros. Mas isso é uma apreciação moral, minha. Mas, em uma democracia, o direito é garantia contra o arbítrio. Mesmo que, teleologicamente, queiramos esfolar o “carneiro”, se me entendem a alegoria.
Feliz Ano Novo a todos! Foi um ano denso e tenso. Que, como já falei na coluna sobre os meus pedidos ao Papai Noel (ler aqui), 2015 demorará para terminar.
1 Relembro velha jurisprudência do próprio STJ: RESP – PENAL – ESTUPRO – PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA – O direito penal moderno é o direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. […] Fato não se presume. Existe ou não existe. O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. […] Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva. Recurso Especial nº 46.424-2 RO, em que foi Relator o Prof. Luiz Vicente Cernicchiaro.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!