Direito Civil Atual

Estatuto da Pessoa com Deficiência traz inovações e dúvidas

Autor

  • Atalá Correia

    é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) e juiz de direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

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3 de agosto de 2015, 8h01

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No último dia 6 de julho foi promulgada a Lei 13.146, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, adaptando nosso sistema legal às exigências da Convenção de Nova York de 2007. Após o decurso da vacatio legis de 180 dias, contaremos com novos instrumentos legais, que visam, no seu conjunto, proporcionar igualdade, acessibilidade, o respeito pela dignidade e autonomia individual, o que inclui a liberdade de fazer suas próprias escolhas.

Uma primeira análise e diversos aspectos positivos do Estatuto foram apresentados nessa Coluna de Direito Civil atual, em excelente artigo do professor Maurício Requião. Há, no entanto, dúvidas que precisam ser esclarecidas. Assim, esta coluna se propõe inicialmente a apresentar as principais inovações da nova lei, os dilemas existentes e as soluções possíveis.

Pois bem, para os fins da lei, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (artigo 2º).  

Na esfera civil, estabeleceu-se que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (artigo 6º).

Parte-se da premissa que a deficiência não é, em princípio, causadora de limitações à capacidade civil[1]. Diante desse panorama, o EPD irá revogar expressamente os incisos II e III do artigo 3º do Código Civil. Doravante haverá apenas uma causa de incapacidade absoluta, qual seja, ser a pessoa menor de 16 anos. Não serão mais considerados absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” e “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”.

A incapacidade relativa passará a abranger as seguintes hipóteses: a) maiores de 16 e menores de 18 anos; b) ébrios habituais e os viciados em tóxico (a lei deixa de fazer menção aos que, por deficiência mental, tenham discernimento reduzido); d) e aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (foi excluída a menção aos os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo); e) os pródigos.

Ao lado da curatela, passará a existir o processo de “tomada de decisão apoiada”, ou seja, “o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade” (artigo 1.783A do Código Civil, introduzido pelo EPD).

Assim, em síntese, a pessoa com deficiência que tenha qualquer dificuldade prática na condução de sua vida civil, poderá optar pela curatela, diante de incapacidade relativa, ou pelo procedimento de tomada de decisão apoiada. Deve-se frisar que pessoas com deficiência mental severa continuam sujeitas à interdição quando relativamente incapazes. A alteração legislativa, que excluiu a expressão "deficiência mental" do texto do artigo 4º, CC, não veda a interdição quando o deficiente não possa, por causa transitória ou permanente, manifestar sua vontade. O artigo 84, §1º, EPD, enfatiza que, “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida a curatela”, “proporcional às necessidades às circunstâncias de cada caso”, durando o menor tempo possível (§3º). A manutenção da legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizar a interdição nos casos de "deficiência mental ou intelectual", nos termos do artigo 1.769, Código Civil, apenas explicita a manutenção dessa possibilidade de interdição de deficientes que não consigam expressar sua vontade.

Vistas essas inovações, apresenta-se o primeira questão relevante. É necessário reconhecer que a elogiosa iniciativa não muda a realidade biológica dos fatos. Hoje, centenas de pessoas são declaradas por peritos judiciais absolutamente incapazes, no sentido biológico, de compreender a realidade que as cercam e de manifestar vontade. A triste realidade das demências senis, que se torna mais frequente com o envelhecimento da população, é apenas um dos exemplos possíveis. A pessoa que se tornou deficiente por moléstia incurável e que não consegue sequer escrever seu nome não passará, após a vigência da lei, a manifestar sua vontade.

Ocorre que essa hipótese fática, de incapacidade de manifestação de vontade, foi deslocada do artigo 3º, III, CC, para o artigo 4º, III, CC e, com isso, ensejará mera incapacidade relativa. Como se sabe, a validade do ato jurídico, nessas situações, exige a assistência do curador. Isso quer dizer que o curatelado deve manifestar, conjuntamente com o curador, seus interesses, não podendo a vontade deste substituir a daquele. Contudo, se o interditado não detém qualquer possibilidade de manifestação de vontade, a nova legislação o colocou diante de um impasse: seu curador não pode representá-lo, pois ele não é absolutamente incapaz, e tampouco conseguirá praticar qualquer ato da vida civil, pois não conseguirá externar seus interesses para que alguém lhe assista. Caso o quadro legislativo não se altere, será razoável tolerar uma hibridização de institutos, para que se admita a existência de incapacidade relativa na qual o curador representa o incapaz, e não o assiste. Entendida a questão de maneira literal, a interdição de pessoas teria pouco significado prático. 

O dilema desdobra-se, entretanto, em outro. Haveria aí, nessa situação “sui generis”, nulidade ou mera anulabilidade? Como se sabe, o regime de incapacidade relativa, leva à anulabilidade. Por outro lado, quem haveria de manifestar a vontade para, antes do prazo decadencial,  impedir a convalidação? Acredito, nesse campo de primeiras reflexões, que deva prevalecer o regime de nulidade, mais benéfico ao deficiente.

Anote-se, ainda, que nos termos do artigo 76, EPD, o poder público deverá garantir à pessoa com deficiência todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais pessoas, assegurando-lhe não só acessibilidade aos locais de votação, mas, essencialmente, o direito de votar e de ser votada. Diz-nos, ainda, o artigo 85, EPD, que “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”, não alcançando o “direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Não faz sentido, no entanto, que deficientes interditados por incapacidade de manifestar sua vontade tenham acesso à urna juntamente com seus curadores, pois, se não há como conhecer a vontade do deficiente, também não há como garantir que o curador atua no interesse alheio. Passaria a haver, de fato, pessoas com dois ou mais votos.

Por fim, é inquietante a ausência de um regime claro de transição. Aquelas pessoas que hoje, tendo deficiência mental ou intelectual, se encontram sob interdição por incapacidade absoluta passarão automaticamente, com a vigência da lei nova, a serem consideradas capazes? A tradicional exegese da regra intertemporal, nessas situações, indica a eficácia imediata da lei nova. Não haveria porque manter toda uma classe de pessoas sob um regime jurídico mais restritivo quando ele foi abolido. Não há razão para que existam deficientes capazes e absolutamente incapazes sem distinção fática a justificar o tratamento diverso. Por outro lado, pode a lei nova desconstituir automaticamente a coisa julgada já estabelecida? Cremos, que dada a natureza constitutiva da sentença, o mais razoável é que, por iniciativa da partes ou do Ministério Público, haja uma revisão[2] da situação em os interditados se encontram, para que possam migrar para um regime de incapacidade relativa ou de tomada de decisão apoiada, conforme for o caso.

Por suscitar essas questões e dúvidas, o novo Estatuto, que em muito auxiliará as pessoas com deficiências diversas, precisará ser objeto de atenção redobrada da comunidade jurídica.


[1] Sobre os avanços, vide também o Parecer do Senador Romário Faria, PSB/RJ, ao Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado n. 4 de 2015.
[2] O artigo 12, 4, da Convenção de Nova Iorque estabelece que “os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa” (grifo nosso).

Autores

  • é juiz no Distrito Federal, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

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