Diário de Classe

Discriminação e preconceito
na sala de aula? No pasarán!

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18 de abril de 2015, 8h00

Spacca
Na semana anterior, relatamos o episódio do professor de Direito Processual Civil que teria afirmado, em sala de aula, “Graças a Deus existe um pouco de heterossexualidade no Direito”, cujos desdobramentos institucionais na Faculdade de Direito da UFMG revelariam uma presumida falta de transparência dos procedimentos administrativos sob responsabilidade do Diretor da unidade.

O requerimento de instauração de processo administrativo disciplinar segue aguardando deliberação da reitoria da universidade. Parece, inclusive, que o prazo já expirou. Espera-se, contudo, que os fatos sejam investigados e, se confirmados, os responsáveis sejam punidos. Isto porque, comprovadas as acusações, não temos dúvidas acerca do caráter homofóbico da declaração do professor e tampouco da omissão da direção na condução do caso.

O que é isto, a liberdade de cátedra?
No início do século XIX, Humboldt elaborou um relatório através do qual propôs um modelo de universidade (implementado, originalmente, na Universidade de Berlim), que se estruturava sobre três eixos: a liberdade dos professores para expressarem suas ideias; a liberdade dos professores para escolherem os temas de suas pesquisas; a estabilidade dos professores, que lhes garantia a liberdade para desenvolverem suas atividades sem o risco de perder o emprego.

No sistema jurídico brasileiro, a liberdade de cátedra surge expressamente na Constituição de 1934 (artigo 155), reaparece na Constituição de 1946 (artigo 168, VII) e, inclusive, é mantida na Constituição de 1967 (artigo 168, §3º, VI). Na Constituição de 1988, embora não explícita, a liberdade de cátedra pode ser vislumbrada entre os princípios orientadores do ensino: a liberdade de ensinar e a pluralidade de ideias (artigo 206, II e III).

De todo modo, na esteira da liberdade de expressão, tampouco a liberdade de cátedra pode ser plena. Ela tem seus limites. A liberdade de cátedra não pode ser invocada, por exemplo, para legitimar discursos de ódio. Da mesma forma, não há liberdade de expressão (e tampouco de cátedra) para a prática de atos discriminatórios violadores da dignidade humana e dos direitos fundamentais (artigo 3º, IV; artigo 5º, LXI, CR). O mesmo entendimento já ficou assentado, há mais de uma década, pelo Supremo Tribunal Federal no célebre caso Ellwanger (HC n.º 82.424/RS).

Nesse sentido, cumpre referir à lição de Horácio Wanderlei Rodrigues, professor titular da UFSC: “a liberdade de ensinar não protege as manifestações valorativas, ideológicas e religiosas que desrespeitem a liberdade de aprender dos alunos e que não possuam correlação com a matéria ensinada, bem como aquelas que professem preconceitos e discriminações vedadas pela nossa ordem constitucional e legal”.

Não se pode esquecer que, ao lado (e, inclusive, antes) da liberdade de ensinar (do professor), há a liberdade de aprender (do aluno), e que ambos os princípios têm a finalidade de garantir o pluralismo de ideias. A liberdade de cátedra exsurge, portanto, como um meio — ou melhor, uma liberdade-meio — do direito à educação, o que significa dizer que ela deve voltar-se ao cumprimento dos objetivos estabelecidos na Constituição, entre eles o “pleno desenvolvimento da pessoa” e seu “preparo para o exercício da cidadania” (artigo 205).

Warat e o papel do professor
Luis Alberto Warat nos ensinou diversas posturas, dentre elas a de nunca nos tornarmos “pinguins” do Direito. Ou seja, nos ensinou que é preciso nos arriscarmos fora dos padrões. Para isso, seria necessário jogar com o inesperado e surpreender. Não fazia sentido para ele que mantivéssemos o ensino “capado”, atitude própria das rotinas burocráticas. Ensinou-nos, ainda, que era necessário apresentar ideias muitas vezes iconoclastas. Nunca aceitou, todavia, que o espaço da aula pudesse ser o derramamento de subjetividades intolerantes para com o outro. Defendia que o lugar da sala de aula seria um lugar mágico para que pudéssemos apostar nos sujeitos.

Rompeu com a ideia de que a neutralidade jurídica poderia nos salvar e postulava que deveríamos professar uma ciência do pensamento indisciplinado. Dizia ele que regras não servem para dizer como o mundo é, mas apenas para sugerir maneiras de pensar. Entendia que o discurso e a maneira como era sustentado na sala de aula fazia muita diferença. Os grandes temas, os debates acalorados, enfim, as questões que merecem ser debatidas deveriam ser formuladas de maneira tolerante e dentro do limite democrático. Para ele, não se podia — em nome da liberdade de expressão — oprimir. A opressão do discurso virulento e preconceituoso servia, no máximo, como mecanismo para instigar o debate. Jamais foi a tônica de sua pedagogia.

Não fazia sentido decorar regras, muito menos ficar em silêncio, oprimido em verdades absolutas derramadas pelo ocupante do lugar de professor. A diferença de lugares seria a condição para o exercício do poder do professor, não se confundindo com a noção autoritária herdada de um modelo político em que o diferente era defenestrado. Nos diversos eventos do Cabaré Macunaíma, reunião na qual as manifestações humanas eram livres, ficava nítida a distância entre a opressão e a aposta no sujeito que poderia, por si, arrisca-se para além dos padrões do Direito.

A luta de Warat — iniciada em 1971, coincidentemente, em Minas Gerais — prossegue nos tempos atuais. Continuamos, mais de 40 anos depois, buscando repensar o ensino do Direito, apontando os equívocos de abordagem de uma metodologia de ensino que, no fundo, não respeita a diferença e promove a potência de um pensamento autoritário. Para além dos planos de ensino e das opiniões dos professores, cuja temática pode ser relevante e bem operacionalizada, há um resto de incompreensões democráticas. Contra elas devemos buscar as respectivas apurações, guardado o espaço democrático.

Liberdade de cátedra não significa coroamento na disciplina e liberdade de intolerância, seja qual for. Há uma longa produção sobre a necessidade de se transformar o espaço da sala de aula naquilo que Warat chamava de uma “pedagogia ecológica”, sustentável no entre nós. A realidade dos anos 70 se alterou, enquanto algumas mentalidades, infelizmente, não.

Discutimos hoje, submetidos às regras de convivência e tolerância, sobre transexualidade, travestismo, bissexualidade, homossexualidade, heterossexualidade no espaço público (dentro do qual se encontra a sala de aula), discussão que, para ser essencial na formação do bacharel em Direito, necessita ser diferenciada e não replicadora de exclusão. Falamos de sexo, gênero, patriarcalismo, respeitando o discurso diferente, no limite do ódio. Aliás, poderíamos falar com o auxílio da psicanálise (Freud e, especialmente, Lacan) sobre as dificuldades de se aceitar a tolerância em face do estranho que nos habita. Para tanto, Contardo Calligaris, em Homofobia e homossexualidade, aponta: “O termo homofobia, inventado no fim dos anos 1960, designa, mais do que um preconceito, uma reação emocional à presença de homossexuais (ou presumidos homossexuais), num leque que vai do desconforto à ansiedade, ao medo e, por fim, à raiva e à agressão”. Não podemos “psicanalizar” ninguém, muito menos aceitar que se possa dizer tudo na sala de aula. Os procedimentos democráticos (devido processo legal) e as instituições (sobretudo, o Poder Judiciário) estão aí para verificar os desvios. Por isso, reafirmamos que resta apostar na reflexão de nossas práticas e, quem sabe, conviver melhor, mesmo que para isso precisemos, usando a terminologia psicanalítica, realizar a passagem ao ato, enquanto possibilidade resolutiva de situar-se em intersecção com o outro.

Entre a ciência e a opinião
A liberdade de cátedra — ou liberdade de ensinar, ou ainda liberdade acadêmica — não pode ser confundida com a liberdade de mera opinião. Isto porque, como se sabe, a universidade é o locus privilegiado para a produção do conhecimento e a formação crítica. Em seu A formação do espírito científico, Gaston Bachelard — pensador francês ao qual Warat muito recorria em suas aulas — dizia que a “ciência” opõe-se à “opinião”:

“A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo [epistemológico] a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza”.

É por isto que a liberdade de cátedra não assegura ao professor o direito de defender sua opinião não fundamentada, sua crença ou sua ideologia. É por isto que a liberdade de cátedra não autoriza o professor a praticar atos preconceituosos e discriminatórios. É por isto que comportamentos homofóbicos, especialmente dentro das universidades, devem ser repudiados.

Não se trata, aqui, de mais uma apologia ao “politicamente correto”, mas de um ato de civilidade. A sala de aula não pode ser confundida com as mesas de bares, com palanques políticos e tampouco com templos religiosos. A sala de aula não é o lugar do dogma, mas sim da dúvida, da crítica e do questionamento. A sala de aula não é o lugar do monólogo, mas sim do diálogo, da interlocução. A sala de aula é um espaço democrático, de tolerância e, portanto, de respeito à diferença; não de autoritarismo, opressão e silenciamento. Tudo isso pode parecer óbvio. O inacreditável é que, mesmo assim, ainda precise ser dito. 

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