Pecados e milagres da comunidade jurídica na ditadura
31 de março de 2014, 9h50
O que estavam fazendo no dia 31 de março de 1964 os advogados do Brasil? E os juízes? E os promotores de Justiça e procuradores da República? Passados 50 anos do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart legítima e constitucionalmente eleito e empossado, essa pergunta ainda incomoda muita gente. Porque boa parte da comunidade jurídica não tem do que se orgulhar de seu comportamento naquele dia negro na história política do Brasil e nem nos dias que se seguiram. Mas nem todos, com certeza. Além de atos de vilania por parte de uns poucos, e de conformismo da grande maioria, a história registra também exemplos de heroísmo e de grandeza deixados por homens e mulheres da Justiça e do Direito na luta da resistência contra o regime dos generais.
Como diz o jornalista Elio Gapari, autor de As Ilusões Armadas,[1] o mais completo e fidedigno estudo sobre o golpe de 1964 e da ditadura que se instalou no país a partir dele pelos 21 anos seguintes, uma análise da situação exige perceber as nuances daquele momento e daqueles acontecimentos. Assim, ele diz que, se fosse feito um plebiscito naqueles dias sobre o golpe contra João Goulart, para que os eleitores escolhessem entre a continuidade ou o afastamento do presidente, é possível que qualquer um dos dois lados pudesse vencer com uma estreita margem de votos.
O fenômeno pode ser explicado por dois fatores principais: o primeiro é que se vivia o auge da Guerra Fria, e o comunismo era um inimigo tão poderoso da chamada civilização cristã ocidental que justificava os maiores atropelos contra a liberdade e a democracia ameaçadas pelo perigo vermelho; e o segundo é que os brasileiros estavam tão acostumados a golpes militares, que mais um, menos um, não faria muita diferença. Houve intervenção militar na queda do então presidente Getúlio Vargas em 1945, de novo em 1950, e em 1955 — esse promovido pelo marechal Henrique Teixeira Lott, não para derrubar um presidente, mas para garantir a posse do eleito Juscelino Kubistchek. Em todos eles os militares tomaram o poder para entregá-lo em seguida aos civis. Mal sabiam aqueles que apoiaram o último golpe que, em 1964, tudo seria diferente. E não foram poucos.
Da festa para comemorar a queda de João Goulart em 1964 participaram ostensiva e alegremente a imprensa livre e democrática, a Igreja Católica e a Ordem dos Advogados do Brasil. A nata da classe empresarial não só comemorou como participou ativamente da conspiração. O advogado Heráclito Sobral Pinto, que haveria de se tornar o maior símbolo da luta contra a ditadura nos meios jurídicos, festejou o golpe. Era um católico empedernido que não podia suportar a ideia de um Brasil dominado pelo materialismo ateu do comunismo e do marxismo, que era o que se temia caso Jango continuasse no poder. É bem verdade que muito rapidamente a truculência do regime contra as liberdades civis e a democracia deixaram muita gente desencantada, inclusive boa parte da imprensa, da igreja e da comunidade jurídica. Mas, como recomenda Elio Gaspari, a análise das reações requer a observação das nuances. A verdade é que a postura da maioria foi de estoica resignação e não foram muitos os casos de heroísmo.
Do lado dos anti-heróis, merecem destaque os juristas que deram assessoramento jurídico aos militares e que garantiram, de certa forma, que a ditadura funcionasse com ares de um regime democrático, com uma Constituição vigente e o Congresso funcionando na maior parte do tempo. Graças a esses artifícios, alguns até se referem a ela como “ditabranda”.
O ideólogo jurídico de primeira hora dos generais foi Francisco Campos, notável golpista desde os anos 1930, autor da famigerada Constituição de 1934 e do mais famigerado ainda Ato Institucional que deu forma à ditadura militar. Segundo Elio Gaspari, foi ele que fez ver aos militares que o golpe militar era uma “revolução”. Ou que, desta vez, os militares tinham chegado ao poder para ficar. Da lavra de Chico Campos, está escrito no preâmbulo do Ato Institucional que, depois, com a edição do segundo de um total de 17, passou a se chamar AI-1: “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. (…) Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.
O mineiro Francisco Campos formou-se pela Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte, que viria a ser, mais tarde, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Mas os principais juristas a serviço dos generais foram formados e se tornaram professores — dois deles diretores — na Escola de Direito da Universidade de São Paulo, a venerável Escola do Largo São Francisco. Terceiro inquilino do ministério da Justiça no governo militar, Luís Antônio da Gama e Silva, o Gaminha, foi professor da São Francisco e reitor da USP. Foi imortalizado ao redigir e colocar sua assinatura no AI-5, logo depois da firma do marechal Costa e Silva. O AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, é considerado o golpe dentro do golpe e marcou a radicalização do regime. Ele deu poderes ao presidente para decretar o recesso do Congresso, intervir em estados e municípios, cassar e suspender os direitos civis; suspender as garantias constitucionais e prerrogativas do Judiciário e suspendeu o Habeas Corpus. Como reitor da USP, Gaminha organizou o IPM da USP, inquérito policial militar que resultou na cassação de vários professores, entre eles Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
Alfredo Buzaid, outro professor e diretor da São Francisco, ocupou o Ministério da Justiça durante a ditadura, justamente no período mais duro do regime, no governo do general Emílio Garrastazu Médici. Sua obra mais notável na pasta foi o Código de Processo Civil sancionado por Garrastazu Médici em 1974 e em vigor até os dias de hoje. Em 1982, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal por João Figueiredo, o último dos generais presidentes.
Nos dias de março de 1964, eram advogados dois dos principais líderes políticos com assento no Congresso Nacional. O paulista Auro de Moura Andrade era o presidente do Senado e coube a ele, no dia 2 de abril, declarar a vacância da Presidência da República, de forma precipitada e inoportuna: naquele momento, o presidente João Goulart ainda se encontrava no Rio Grande do Sul e estava, portanto, em território brasileiro e no exercício do poder. Moura Andrade era também um dos expoentes do PSD, o partido de Juscelino Kubistchek, de Tancredo Neves e de Ulysses Guimarães, que fizera dobradinha com o PTB de Jango nas duas últimas eleições presidenciais. Acabou virando-se contra a ditadura. Era bacharel em Direito formado na Faculdade do Largo São Francisco, em 1938.
Outro grande advogado que estava no parlamento quando se deu o golpe foi o paulista Adauto Lúcio Cardoso. Quando veio golpe, em 1964, estava no exercício de seu terceiro mandato de deputado federal pela UDN do recém criado estado da Guanabara. Muito ligado ao marechal Castello Branco, apoiou abertamente o golpe. Mas não demorou a rebelar-se contra o regime dos generais. Em 1966, recusou a cassação de seis deputados da oposição pelo governo. Abrigou-os na Câmara, para que não fossem presos e, em protesto, renunciou à presidência da Casa. Acabou nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal por Castello Branco. Votou pela concessão de Habeas Corpus para o líder estudantil Vladimir Palmeira, e para o ex-chefe da Casa Civil de Goulart, Darcy Ribeiro, que estavam presos, acusados de subversão, o crime mais comum naqueles tempos bicudos e que significava qualquer manifestação de oposição ao governo.
Em 1971, durante o governo do general Garrastazu Médici, no julgamento da constitucionalidade do Decreto-lei 1.077, que instituía a censura prévia para a imprensa, livros e espetáculos públicos, ficou vencido, em posição isolada. Indignado, tirou a capa de ministro, jogou-a sobre a cadeira e abandonou acintosamente o recinto. “À verdade, parece-me é que a atitude do ministro Adauto Lúcio Cardoso foi única, continua única e provavelmente nunca se repetirá”, escreveu Evandro Lins e Silva, já então ministro cassado do Supremo, em seu livro O Salão dos Passos Perdidos. Cardoso não mais voltou ao tribunal. Renunciou ao cargo e retomou a advocacia. Entre seus clientes estava o jornal Opinião, então submetido à censura prévia e tentando resistir.
Atitudes de resistência como a do ministro Adauto Lúcio Cardoso foram raras no sagrado recinto do Supremo naqueles dias. Um deles pode ter sido a renúncia dos ministros Antonio Gonçalves de Oliveira, então presidente da corte, e Antonio Carlos Lafayette de Andrada, em consequência da cassação dos mandatos dos ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, com base no AI-5 em dezembro de 1968. Ainda hoje persiste a dúvida sobre a motivação dos renunciantes: se eles estariam agindo em protesto contra a cassação dos colegas ou pedindo a aposentadoria para evitar a própria cassação. O regime aproveitou os cinco desfalques na composição da corte para voltar a reduzir o número dos ministros do STF de 16 para 11. Dessa forma, cinco anos após o golpe de 31 de março, na composição do Supremo figurava apenas um ministro que não havia sido nomeado já no período de ditadura. Era o ministro Luís Gallotti, que se aposentaria apenas em 1974.
O comportamento normal do Supremo passou a ser o que ele adotou no caso do julgamento da jovem suíça Marie Helene Russi, militante da VPR, organização da luta armada de resistência à ditadura. Tinha 20 anos, mas vivia desde os quatro no Brasil. Tinha sido alfabetizada em português e construíra toda sua vida no país que a adotara e jamais voltara a seu país natal. Presa, ela teve sua expulsão decretada pelo ministro Armando Falcão, em 30 de dezembro de 1975. Seu advogado entrou com pedido de Habeas Corpus no Supremo para evitar a exuplsão. Foi derrotado, por unanimidade. Marie Helene Russi vive hoje na Suiça, depois de ter três pedidos para voltar ao Brasil negados, mesmo aós a Lei da Anistia de 1979.
Os fatos em relação ao Supremo demonstram que a situação do Judiciário, em geral, estava longe da zona de conforto. Ao contrário: o Ato Institucional 2, de 1965, suspendera todas as prerrogativas do Judiciário, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a estabilidade. E havia ameaças, veladas ou não, aos que não se alinhassem aos “ideais da revolução de 1964”, como se dizia no linguajar típico dos generais.
Tribunal de exceção
Ao contrário do que se poderia imaginar, a Justiça Militar, onde corriam os processos dos supostos crimes contra a Segurança Nacional — o que incluía todos os “crimes” políticos cometidos pela oposição — tinha uma postura muitas vezes mais independente do que a Justiça comum. Isso porque, apesar do regime que se colocara acima da Lei e da Constituição, conforme previsto no AI-1, os auditores militares devotavam, por formação, uma estrita obediência à lei e à ordem.
Um exemplo é o do juiz-auditor Osvaldo Lima Rodrigues Júnior, da 1ª Auditoria Militar da Marinha, no Rio de Janeiro. Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de 1995, no despacho sobre o desaparecimento e assassinato do deputado Rubens Paiva, Lima Rodrigues concluiu que seis militares, dentre os quais o brigadeiro João Paulo Burnier, eram passíveis de indiciamento e denúncia. Ficou vencido, a denúncia nunca foi formulada, mas ele cumpriu seu papel. Lima Rodrigues teve também participação decisiva na libertação do ex-chefe da Casa Civil de João Goulart, Darcy Ribeiro. Preso no quartel dos Fuzileiros Navais no Rio de Janeiro logo depois da edição do AI-5, em dezembro de 1968, foi julgado e absolvido pela Justiça Militar em setembro do ano seguinte. Segundo Élio Gaspari, o juiz Lima Rodrigues tratou de expedir imediatamente o alvará de soltura do preso e foi pessoalmente recolher a assinatura do comandante da base. No dia seguinte, quando uma patrulha compareceu ao quartel para restabelecer sua prisão, Darcy Ribeiro já não estava lá.
Já nos estertores do regime, outra exceção que entrou para a história: em 1978 o juiz federal Márcio José de Moraes proferiu sentença que condenou a União a indenizar a família do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura, em 1975, enquanto estava preso ilegalmente nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, o mais truculento dos órgãos de repressão aos opositores da ditadura. Sua decisão pode ser considerada a mais ostensiva manifestação da Justiça contra a tortura e contra o Regime Militar até aquele momento. Márcio Moraes continua na ativa como desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo.
E o que estavam fazendo os advogados no dia 31 de março de 1964? Este é o tema da próxima reportagem que resgata a memória do golpe militar que depôs João Goulart, 50 anos depois.
[1] As Ilusões Armadas compreende os dois primeiros volumes de uma série de cinco, sobre a ditadura militar, que Elio Gaspari ainda está escrevendo. Tendo como principal fonte de referência os arquivos dos generais Ernesto Geisel, quarto presidente do regime militar, e Golbery do Couto e Silva, um dos artífices do golpe e patrono do movimento de distensão política que pôs fim ao regime. As ilusões, lançado em 2002, é constituído de A Ditadura Envergonhada, que vai dos preparativos do golpe até o Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, o chamado golpe dentro do golpe, que aprofundou a ditadura; e de A Ditadura Escancarada, que compreende o período entre 1968 e final de 1974, marcado pela radicalização do terrorismo de esquerda e de direita, pela repressão e tortura patrocinadas pelo regime, e pelo milagre brasileiro. A segunda parte, denominada O Sacerdote e o Feiticeiro, é constituída de A Ditadura Derrotada e de A Ditadura Encurralada, cobrem o governo do general Ernesto Geisel e analisam o esgotamento do regime militar e o processo de abertura rumo à redemocratização. O quinto e o último livro, ainda sem título, deve ser lançado este ano.
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