Eis porque abandonei o “neoconstitucionalismo”
13 de março de 2014, 8h00
Pois as diversas manifestações ativistas exsurgem exatamente desse behaviorismo interpretativo (espécie de psicologização do direito). Portanto, para esclarecer os não iniciados, ativismo não é apenas quando o Judiciário “passa por cima” (ou pelo “lado”) da lei, mas, sim, ocorre também toda vez que o julgador se substitui aos legislador (juízos morais, éticos). Há farta literatura sobre isso, mas parece que há uma barreira ideológica que impede que parcela da comunidade se dê conta disso (e é nisso que entra a diferença entre ativismo e judicialização). Outra coisa: criticar o axiologismo (e seus derivações genéricas que falam dessa coisa chamada “valores”) não quer dizer que exista apenas o seu contraponto — o não-axiologismo (espécie de exegetismo?). Enfim, despiciendo discutir isso, porque fica no plano da pequena-gnosiologia jurídica. Como diz Shakespeare em A Megera Domada, Ato V, “quem tem vertigens pensa que o mundo roda…”!
Recado dado, sigo. Pois esse belo epíteto — cunhado por um grupo de constitucionalistas espanhóis e italianos —, embora tenha representado um importante passo para afirmação da força normativa da Constituição na Europa Continental, no Brasil acabou por incentivar uma recepção acrítica da jurisprudência dos valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy (que cunhou o procedimento da ponderação com instrumento pretensamente racionalizador da decisão judicial) e do ativismo judicial norte-americano (explico isso já no início de Verdade e Consenso).
Falando-se em Alexy, por sinal, cabem algumas considerações aos desavisados que querem importar uma teoria, mas esquecem sua origem. E, não raro, sem sequer conhecer, também, seus fundamentos, ocasionando um reducionismo simplista que desrespeita inclusive a tese de Alexy. Digo isso porque sob o pretexto da ponderação de princípios também tem havido mero exercício de arbítrio, de vontade de poder. Um ex-orientando meu, inclusive, citou um caso ilustrativo. Ao travar um diálogo com um amigo magistrado acerca da concessão ou não do direito de apelar em liberdade, o colega lhe explicou que quando-queria-soltar-ou-prender fazia sempre uma ponderação de princípios, elegendo aqueles em “conflito” (sic) e os sopesando (sic), de modo a dar maior peso ao que achava ser o mais adequado ao seu “pensar”, pois, segundo ele, o que importaria seria fazer “justiça”. Ah, a Justiça — esse significante tão vago a ponto de ter sido utilizado trinta e sete vezes por Hitler no seu Mein Kampf. Pois é para os “fazedores” de “justiça” que a ponderação serve. E os princípios ponderados são vistos, comumente, como se valores fossem, o que nem Alexy autoriza porque os princípios são deontológicos. Cabe destacar que Alexy fala a partir de uma matriz teórica alicerçada no racionalismo discursivo e analítico. Sua obra é repleta de fórmulas matemáticas. Que tal essa? GPi-nC = IPiC * GPiA/ WPjC * GPjA+ …WPnC * GPnA. Mas o que comumente faz o neoconstitucionalista? Desvirtua a ponderação alexyana (advertindo que ela também não consegue resolver a questão da vontade de poder), simplesmente escolhendo o “valor” que lhe interessa, relegando o outro, ou outros. Ora, um juiz não pode impor aos jurisdicionados os seus próprios valores, não pode construir sua decisão com base em argumentos de política. Isso não é ser democrático. O campo de atuação do juiz deve ser o normativo.
Nesse sentido, torna-se necessário afirmar que a adoção do nomen juris “neoconstitucionalismo” certamente é motivo de ambiguidades teóricas e até (ou sobremodo) de mal-entendidos. Em um primeiro momento, foi de importância estratégica a importação do termo e de algumas das propostas trabalhadas pelos autores da Europa Ibérica. Isto porque o Brasil — assim como a América Latina — ingressou tardiamente nesse “novo mundo constitucional”, fator que, aliás, é similar ao da realidade europeia, que, antes da segunda metade do século XX, não conhecia o conceito de constituição normativa. Portanto, em países como o Brasil, falar de neoconstitucionalismo implicava ir além de um constitucionalismo de feições liberais — que, no Brasil, sempre foi um simulacro em anos intercalados por regimes autoritários — na direção de um constitucionalismo compromissório que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime democrático.
Destarte, passadas mais de duas décadas da Constituição de 1988 e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse neoconstitucionalismo acabaram por provocar condições patológicas que acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da Constituição. Aqui, refiro que, se, em um primeiro momento, apoiei a tese neoconstitucionalista, em um segundo momento, ao constatar a sua inexorável filiação às posturas voluntaristas, passei a colocá-la entre parênteses ou entre aspas, a partir da ressalva bem explícita, verbis: “entendo o neoconstitucionalismo como o constitucionalismo compromissório do segundo pós-guerra” e “longe de ativismos e práticas discricionárias”. Finalmente, a partir da 4ª edição de Verdade e Consenso (Saraiva, 2011 – vem aí a 5ª Edição) definitivamente abandonei a tese, passando a chamar o constitucionalismo do pós-Segunda Guerra de Constitucionalismo Contemporâneo.
Ora, sob a bandeira neoconstitucionalista (mas não só dele, porque o ponto central é a “moralização do direito” e o discricionarismo) vem sendo defendido, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade, um direito assombrado pela ponderação de valores, uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento (por exemplo, constitucionalização do direito civil,[2] espécie de imperialismo da publicização do direito), a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, tais como: neoprocessualismo (sic) e neopositivismo (sic). Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o direito justo (vide, a este respeito, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual, a que denomino de “fator Oskar Bülow”). Nesse sentido, já de pronto é necessário indagar: de que modo se pode falar em “valores” em sociedades complexas (“pós-tradicionais”, como se refere Habermas) como as nossas? Não há como defender um “método de ponderação”, porque ele supõe valores intersubjetivamente compartilhados.
O que é interessante sobre esta “adoção acrítica” (e entusiasta!) da jurisprudência dos valores germânica é que, lá, ela sofre duras críticas, feitas, por exemplo, por Habermas, a partir, inclusive, de constitucionalistas e justeóricos como Denninger, Müller, Grimm e Böckenförde, bem como Ingeborg Maus, que fala do mal que se abateu sobre o Judiciário de seu país desde o final da II Guerra, dizendo que o mesmo assumiu o “superego de uma sociedade órfã”.[3] Bingo, Senhora Maus! Bingo!
Princípio, ergo sum!
Aliás, a referência reiterada aos “valores” demonstra bem que o ranço neokantiano permeia o imaginário até mesmo daqueles que pretendem fazer uma dogmática crítica. Desse ranço já falei em outras colunas.
A própria formação da cultura é algo muito mais ligado à linguagem e à constituição de contextos significativos, do que propriamente ao problema da formação e transformação deste enigma chamado “valores”. Isso fica bem representado na formulação daquilo que Ernildo Stein denomina “paradoxo de Humbolt”: nós possuímos linguagem porque temos cultura ou temos cultura porque possuímos linguagem?
Portanto, o discurso axiológico no interior do direito deveria ter sucumbido junto com o paradigma filosófico que o sustentava. A despeito disso, continua-se a falar — acriticamente, por certo — em “valores”, sem levar em conta a sua conhecida e problemática origem filosófica. Aqui também é possível dizer que a palavra “valores” assumiu uma dimensão “performativa”, bastando que se a invoque para que as portas da “crítica” do direito se abram…! E o pior parece estar no jargão “princípios são valores”. Logo, por ele o jurista corrige o mundo “insignificante” das regras…! Claro que o faz de acordo com os “seus” valores… Princípio, ergo sum!
A expressão “neoconstitucionalismo” não faz mais sentido
Assim, reconheço que — para os propósitos daquilo que denomino de Crítica Hermenêutica do Direito — não faz mais sentido continuar a usar a expressão neoconstitucionalismo para mencionar aquilo que venho querendo apontar em minhas obras: a construção de um direito democraticamente produzido, sob o signo de uma constituição normativa e da integridade da jurisdição, em que o direito possui DNA e seja reduzido ao máximo o grau de discricionariedade. É preferível chamar o constitucionalismo instituído a partir do segundo pós-guerra de Constitucionalismo Contemporâneo (CC), para evitar os mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo.
Nessa medida, pode-se dizer que o CC representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano na teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito; e no plano da Teoria do Direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios — atenção: princípios não como valores e, sim, operando no código lícito-ilícito), na teoria da interpretação, que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e ativismos, a partir da construção de uma teoria da decisão judicial e em uma teoria da decisão, que complementa a teoria da interpretação.
Todas essas conquistas devem ser pensadas, num primeiro momento, como continuadoras do processo histórico através do qual se desenvolve o constitucionalismo. Assim, se, por um lado, há esse processo de agregação com relação ao primeiro constitucionalismo, por outro, há uma nítida ruptura com os postulados hermenêuticos vigentes desde o final do século XIX e que terá seu apogeu durante a primeira metade do século XX.
Resumindo: o neoconstitucionalismo — no modo como vem sendo entendido em terrae brasilis — vem sendo apenas (um)a superação do paleo-juspositivismo (exegetismo). A exceção (correndo o risco de cometer injustiças) fica com Ecio Oto, que, a partir de sua tese de doutorado orientada por Martonio Barreto Lima e por mim,[4] deixa claro que a perspectiva de neoconstitucionalismo que propugna é a de ser antipositivista.[5] De registrar que, já antes, em obra em conjunto com Susanna Pozzolo,[6] Oto mostrava, em caráter inovador, as características desse fenômeno (para ele, são onze), deixando claro que a perspectiva de neoconstitucionalismo que propugna é a de ser antipositivista, avançando, desse modo, para além dos neoconstitucionalistas de terrae brasilis. Esse me parece ser um ponto de fundamental importância: dar-se conta das incongruência do(s) positivismo(s) e seus malefícios para a democracia.
O busílis, pois, é que o neoconstitucionalismo, ao apostar na ponderação e no poder discricionário, não supera a outra forma de positivismo que se segue ao exegético. Afinal, existem vários positivismos, pois não? Mas os neoconstitucionalistas acham que supera.
Portanto, Ferrajoli tem razão quando critica a ponderação e sua ligação com o neoconstitucionalismo. Ele, inclusive, se declara um antineoconstitucionalista. Sim, sei que há vários neoconstitucionalismos, tanto é que o próprio livro que lança o termo possui um “s” atrás do nome. Mas há algo que é comum a todos os tipos, que é a aposta na ponderação (problemática que é abandonada por Ecio Oto, como já referi).
Despiciendo acrescentar que compartilho da tese antiponderativa de Ferrajoli. Minhas diferenças com o mestre fiorentino se localizam em outros pontos, conforme explicitado no debate que com ele travei em Garantismo, Hermenêutica e Neoconstitucionalismo[7], para onde me permito remeter os leitores. Mas isso é assunto para outra(s) coluna(s). Por ora, apenas registro a minha saída do barco do neoconstitucionalismo. Na verdade, stricto sensu, nunca havia embarcado mesmo… Já que os (a maioria dos) neoconstitucionalistas não abrem mão da ponderação (para ficar apenas nesse defeito da tese), peço que “me incluam fora dessa”.
Numa palavra: “tudo isso” e a relação com o mensalão!
Em seguimento, uma nota acerca da razões pelas quais não preciso fazer uma coluna específica para o affair mensalão. O julgamento do mensalão e tudo-o-mais em terrae brasilis está inserido nesse imaginário que venho criticando. Quero que os leitores entendam isso. Assim, podemos evitar de nos cansarmos na discussão sobre se no caso Donadon a pena de dois anos e três meses para o crime de quadrilha foi tão discrepante da aplicação no caso da Ação Penal (AP) 470. No caso Donadon, dois anos e três meses. Para José Dirceu e Valério, dois anos e seis meses. Portanto, não houve nada de novo na aplicação da pena do crime de quadrilha na AP 470. O que há/houve de novo foi a mudança de placar proporcionado pelos dois novos ministros, que não estavam comprometidos com o critério adotado pelo Supremo Tribunal Federal no caso Donadon. E nem é preciso fazer juízo de valor sobre isso. De velho, apenas a irritação e o voluntarismo do presidente, ministro Joaquim Barbosa.
O que quero dizer é que o julgamento resultou demasiadamente — e registre-se meu eufemismo — dependente das posições pessoais-subjetivas dos ministros. Este é o ponto fulcral do qual falei na coluna da semana passada (clique aqui para ler). De todo modo: no caso Donadon, presentes apenas oito ministros, somente Peluso e Gilmar não votaram pela pena de dois anos e três meses no crime de quadrilha. Já na AP 470, inicialmente votaram pelo reconhecimento da quadrilha, Barbosa, Fux, Gilmar, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ayres Brito. Ainda no primeiro julgamento, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Lewandowski e Toffoli votaram pela absolvição do crime de quadrilha. No segundo julgamento, pós-embargos infringentes, votaram pela absolvição em razão da não configuração de quadrilha: Rosa, Toffoli, Lewandowski, Zavascki, Carmen Lúcia e Barroso. Desses entenderam pela prescrição em razão da dosimetria, mesmo que não utilizando-a como fundamento de sua decisão, os dois novos ministros (Barroso e Zavascki). No caso Donadon, em circunstâncias menos desfavoráveis para o réu, os mesmos Toffoli, Carmen Lúcia e Lewandowski votaram pela condenação em dois anos e três meses. Menos desfavoráveis, pois os elementos da quadrilha eram cambiantes, especialmente o receptador dos valores desviados do erário. Barroso e Zavascki não votaram no caso Donadon, é verdade. No caso dos que condenaram, a fixação das penas foi dois anos e três meses para a maioria dos réus (Cristiano, Delúbio, Salgado, Genoíno, Kátia e Hollerbach) e dois anos e seis meses para Dirceu e Valério. Vê-se, assim, que, em relação ao caso Donadon, utilizado como paradigma pelo voto do próprio Barroso para justificar a aludida "discrepância", o incremento da pena-base foi de 65%, ao passo que no mensalão o incremento para Dirceu e Valério foi de 75%.
Portanto, a diferença mesmo — e que fez a diferença — consistiu na mudança da composição da corte. Isso se prova ao observar o placar do primeiro julgamento, que ficou em 6×4 para a condenação, ao passo que no segundo o placar foi de 6×5 para a absolvição. A diferença? Saiu Carlos Ayres (que condenou) e entraram Zavascki e Barroso (com o que a votação ganha o placar final de 6×5 para a absolvição). Simples, pois!
Para o bem e para o mal, chamemos as coisas pelo nome. Ou seja, a tal discrepância é um argumento circunstancial. Para um hermeneuta, basta ver algumas frases proferidas no caso Donadon (nem vou falar dos enunciados proferidos no mensalão, como “julgamentos conforme o sentimento pessoal”, etc): Lewandowski (que condenou Donadon em dois anos e três meses por formação de quadrilha, falou em discricionariedade e prudente arbítrio; Marco Aurélio: "não estamos no campo da legalidade estrita, mas da justiça", Toffoli falou "do prudente arbítrio".
Pronto. É por isso que não faço uma coluna específica sobre a polêmica da absolvição do crime de quadrilha. Basta-me discutir o problema de fundo, qual seja, a-insistência-dos-juristas-no-protagonismo-judicial e em julgamentos “conforme a subjetividade de cada um”.
Aguardemos os próximos julgamentos do STF. De minha parte, continuo dizendo: direito possui DNA; os julgamentos não devem ser feitos a partir das apreciações subjetivas (valorativas, ideológicas, etc) dos julgadores. Eis o cerne de minha chatice epistêmica, que me faz voltar a esse assunto tão seguidamente. Também… a cada dia esse fenômeno do solipsismo ganha mais força. Eis porque volto à carga. E eis também porque abandonei o neoconstitucionalismo, porque ele contribuiu para o estado de fragmentação das decisões em terrae brasilis. Não é por nada que o próprio establishment decidiu colocar barreiras contra si mesmo, mediante a criação de súmulas vinculantes, repercussão geral e jurisprudência defensiva. Não é por nada…
Numa palavra: aquilo que hoje lhe agrada, amanhã pode lhe desagradar. Daí minha pergunta que não quer calar: é melhor confiar no direito (naquilo que venho explicitando de há muito, não uma simples estrutura formal, é claro) ou no subjetivismo dos julgadores? Cartas para a coluna!
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