Busca da verdade no Processo Penal
para além da ambição inquisitorial
4 de julho de 2014, 8h01
Trata-se de uma obra multidisciplinar, que trata da temática em questão de forma rica, aprofundada e condizente com a trajetória acadêmica do autor, que também é mestre em História pela UFRGS. Salah não só dialoga com a dogmática processual penal contemporânea e clássica (passando por Goldschmidt. Bulow, Calamandrei, Carnellutti, Aragoneses Alonso, Fazzalari e muitos outros) como conecta o tema com Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Morin, Prigogine, Bachelard, Nietzsche e outros pensadores. As citações são abundantes, de modo que o livro acaba sendo também um convite para conhecer autores e obras com que os juristas normalmente tomam pouco contato. Nesse sentido, cuida-se de uma oportunidade inestimável, não só para discussão do tema proposto, como para rompimento do monólogo jurídico e da cegueira normativa que ele provoca.
Salah enfrenta a grande questão do Processo Penal: a busca da verdade. Denuncia o que chama de ambição de verdade — expressão que posteriormente foi adotada também por seu orientador, Aury Lopes Jr — que para ele designa uma ideologia que conforma um Processo Penal do inimigo, manifestamente contrário ao nosso cenário democrático-constitucional. Para ele, a escolha é clara: temos que defender o Processo Penal democrático fundado na presunção de inocência e lutar contra o Processo Penal do inimigo, fundado na ambição de verdade.
Salah destaca que para muitos autores, o que caracteriza o Processo Penal e que por excelência o distingue do processo civil é a busca pela verdade. Ele aponta que são duas as correntes doutrinarias que designam ao Processo Penal essa função. De um lado, uma corrente que estrutura o Processo Penal em torno do principio da verdade real e que assume que a verdade deve implacavelmente ser perseguida pelo juiz. De outro lado, uma corrente que relativiza essa busca, considerando que a verdade não pode ser integralmente atingida pelo magistrado, o que faz com que a atuação do juiz no que se refere à gestão da prova deva ser tida como complementar.
Para Salah, apesar da aparente diferença, as duas correntes relegitimam a ambição de verdade inquisitória, pois uma ideologia de busca da verdade – mesmo relativizada – inevitavelmente conforma um Processo Penal do inimigo, manifestamente contrario ao sistema acusatório delineado pela Constituição Federal de 1988. É nesse sentido que Salah afirma que o livro parte de um compromisso fundamental: a conformidade constitucional do direito processual penal e a rejeição explicita à ideologia inquisitória, que conforma violenta e insaciável ambição de verdade.
No primeiro capítulo encontramos uma história dos sistemas processuais penais, que pela riqueza da abordagem, poderia se sustentar por si só: é a mais completa síntese da faceta histórica dos sistemas processuais em língua portuguesa. Para os alunos da graduação, trata-se de uma contribuição inestimável. Afinal, todos estamos cansados de trabalhos de conclusão de curso que trazem uma parte histórica completamente incipiente, que depõe contra o conjunto do TCC. Mas essa análise – que também contempla a polêmica em torno do caráter acusatório, misto ou inquisitório do sistema processual penal brasileiro – é apenas uma introdução para a contribuição significativa que o autor traz nos capítulos posteriores.
Salah sustenta, na esteira de Rui Cunha Martins, que a verdade no Processo Penal é uma questão de lugar. Portanto, não se trata de expulsar a verdade, mas de definir qual o regime de verdade adequado para o Processo Penal. Nesse sentido, na introdução ele refere Ferrajoli, que aponta que “sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a construção do direito penal do iluminismo […] termina apoiada na areia; resulta desqualificada, enquanto puramente ideológicas as funções políticas e civis a ela associadas”.[1]
Mas a discussão proposta não se contenta com a mera reprodução do que propôs Ferrajoli. Pelo contrário. Salah afirma que Ferrajoli e Taruffo permaneceram presos aos limites discursivos da verdade correspondente, que para ele é inteiramente inadequada para definir o horizonte de sentido da verdade no Processo Penal. A proposta é ousada: discutir o regime de verdade do Processo Penal para além do que propuseram os autores que romperam parcialmente com a verdade absoluta (real, material, substancial, etc.) mas que para Salah apenas matizaram o conceito, preservando sua estrutura como verdade correspondente relativa. Para ele, “argumento da verdade correspondente relativa permanece sendo utilizado para sustentar a busca da verdade pelo juiz, conformando um inaceitável ativismo judicial, que rompe com a estrutura acusatória do devido processo legal”.[2]
Salah demonstra no segundo capítulo como a cientificidade moderna reestruturou e refundou de forma velada a epistemologia inquisitória. Para ele, entre inquisidor (que busca implacavelmente a verdade) e sujeito do conhecimento (que atinge a verdade através da aplicação de um método) não há uma relação de afastamento e sim de proximidade. Como autêntico discípulo da professora Ruth Gauer (historiadora que coordena o renomado Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS), Salah analisa a questão no âmbito da história das ideias e demonstra como a ciência assumiu para si uma função outrora desempenhada pela religião: a revelação da verdade.
Ao longo da obra e de forma decidida a partir do terceiro capítulo, Salah argumenta que a verdade é produzida analogicamente no Processo Penal através de uma narrativa sustentada em rastros do passado. Isso faz da verdade algo contingente, demonstrando a necessidade de ênfase nas regras do jogo do devido processo legal em detrimento de qualquer ambição de verdade.
Não temos aqui a pretensão de discutir a tese do autor, por evidentes restrições de espaço. Mas podemos mencionar que dizer que a verdade é produzida é muito diferente de afirmar que ela é encontrada: ela é produzida como artefato narrativo – exteriorização textual da convicção do juiz, enquanto ser-no-mundo – e sustentada em rastros do passado, o que permite afirmar que o regime adequado ao Processo Penal é o da analogia e não o da correspondência. Para Salah, se o Processo Penal deve ser concebido a partir de uma conexão com o direito penal, reside aí uma pertinente provocação, já que o direito penal proíbe a analogia e as condenações são fundamentalmente analógicas. Nesse sentido, sempre restará uma irredutível margem de incerteza em todas as condenações, mesmo nas que são aparentemente inequívocas. Por isso o sistema somente pode encontrar qualquer legitimação como contenção do poder punitivo e da ambição de verdade, restringindo os espaços potestativos de discricionariedade. Depois da leitura quem acredita em Verdade Real não entendeu o livro ou está de má vontade.
Não há como enfrentar aqui toda a riqueza de sentidos da obra. Sem dúvida é um trabalho único no mercado editorial brasileiro. Com isso não se quer dizer que é o melhor, ou que traga a resposta definitiva sobre a questão – Salah explicitamente rejeita essa possibilidade no final do livro, afirmando que todo conhecimento é biodegradável – mas de uma obra fundamentalmente diferente do que costumamos encontrar. Um texto que provoca e exige do leitor mais do que ele está acostumado a dar e que por excelência se insurge contra a barbárie nas práticas punitivas contemporâneas. Um texto como eu gosto de ler. Sinta-se convidado a fazer o mesmo. Forte abraço!
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