Jeitinho brasileiro

Adoção à brasileira gera graves consequências

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9 de fevereiro de 2014, 10h42

O número de crianças e jovens aptos para a adoção no Brasil é de 5,4 mil, segundo dados de outubro de 2013 do Cadastro Nacional de Adoção (CNA). O cadastro foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça em abril de 2008, para centralizar as informações dos Tribunais de Justiça do país sobre pretendentes e crianças disponíveis para encontrar uma nova família — e também para auxiliar os juízes na condução dos processos de adoção.

Apesar de seu esforço para acelerar esses procedimentos, a Justiça ainda não consegue evitar a prática de algumas famílias, que se utilizam do “jeitinho brasileiro” para adotar crianças. É a chamada adoção à brasileira.

A adoção à brasileira se caracteriza “pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança”, explicou a ministra Nancy Andrighi em um de seus julgados sobre o tema.

Da diferenciação à igualdade
A Constituição Federal de 1988 encerrou definitivamente a diferenciação de direitos estabelecida pelo Código Civil de 1916, entre filhos legítimos, ilegítimos e adotados (artigos 337 a 378).

Estabeleceu no parágrafo 6º do artigo 227 que os filhos provindos ou não do casamento, ou de adoção, possuem os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

O Código Civil de 2002 (CC/02) seguiu o ordenamento constitucional ao tratar do assunto no seu artigo 1.596. Definiu no artigo 1.618 que a adoção de crianças e adolescentes deveria ser feita de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90) —, o qual foi aperfeiçoado pela Lei 12.010/09, chamada Lei da Adoção, aprimorando a sistemática para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes.

Ao tratar do assunto, o Código Penal estabeleceu que a prática da adoção à brasileira é criminosa, prevendo inclusive pena de reclusão de dois a seis anos. É o chamado crime contra o estado de filiação, trazido pelo artigo 242: dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil.

Suspeita de tráfico
Além de sujeitar o adotante a essas sanções penais, a adoção informal pode dar margem à suspeita de outros crimes, como se viu em caso julgado recentemente no Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

O Recurso em Habeas Corpus trouxe a história de um bebê recém-nascido, entregue pelos pais biológicos a um casal. A entrega foi intermediada por terceiro, que possivelmente recebeu R$ 14 mil. A mãe biológica também teria recebido uma quantia de R$ 5 mil pela entrega da filha.

No registro da criança constou o nome da mãe biológica e do pai adotante, que se declarou genitor do bebê. A criança permaneceu com o casal adotante por aproximadamente quatro meses, até ser recolhida a um abrigo em virtude da suspeita de tráfico de criança.

O Ministério Público de Santa Catarina ajuizou ação de busca e apreensão do bebê, com pedido de destituição do poder familiar do pai registral e da mãe biológica, bem como de nulidade do registro de nascimento. O juízo de primeira instância deferiu em caráter liminar o acolhimento institucional da criança. O casal impetrou Habeas Corpus pedindo o desabrigamento da criança e a sua guarda provisória.

Com a negativa do HC pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o casal recorreu ao STJ. Afirmou que a criança estava sofrendo “danos psicológicos irreversíveis” em virtude da retirada do lar e que não houve tráfico de criança.

Antes de 2009, o STJ tinha o entendimento pacífico de que não era possível a discussão de questões relativas à guarda e adoção de crianças e adolescentes utilizando-se a via do Habeas Corpus. Entretanto, em julgamentos a partir dessa data, os ministros têm excepcionado o entendimento “à luz do superior interesse da criança e do adolescente”, esclareceu Sanseverino. Segundo o ministro, a análise do caso deve se limitar à validade da determinação legal de acolhimento institucional do menor e posterior encaminhamento para adoção.

Situação de risco
A 3ª Turma negou provimento ao recurso. De acordo com Sanseverino, não houve ilegalidade no acolhimento institucional da criança. O ministro explicou que o acolhimento não foi devido apenas à preservação do CNA, legalidade contida no artigo 50 do ECA, ou em virtude da fraude no registro, mas também porque foi identificada uma “situação de risco concreto à integridade moral e psicológica da infante, diante da suspeita da ocorrência de crime de tráfico de criança”.

Ao analisar os autos, Sanseverino afirmou que, mesmo sem a comprovação do pagamento pela criança, ela foi efetivamente negociada pelos envolvidos. O ministro ressaltou que a conduta do casal, que passou por cima das normas legais para alcançar seu objetivo, “coloca em dúvida os seus padrões éticos, tão necessários para a criação de uma criança”.

“Tal situação, a meu ver, não pode ser endossada pelo Poder Judiciário, sob pena de desestimular pretensos adotantes a seguir os trâmites legais, e, em última análise, estimular o tão repugnante comércio de bebês”, garantiu o ministro.

Parentalidade socioafetiva
A jurisprudência do STJ tem exemplos de casos em que crianças foram adotadas ilegalmente, de maneira consciente e voluntária, por pessoas que após determinado tempo resolveram negar a paternidade, ignorando o vínculo socioafetivo criado. Nesses julgados, é possível perceber a prevalência da paternidade socioafetiva.

Nesse sentido, foi julgado o recurso de um pai que requereu a anulação do registro de nascimento das filhas da esposa. Ele alegou que foi induzido a registrá-las como suas filhas, quando na realidade não o eram. Só depois da propositura da ação, as filhas descobriram que ele não era seu pai biológico.

O pai alegou que deveria prevalecer a verdade real, mesmo havendo vínculo socioafetivo entre eles. Sustentou que o registro deveria ser anulado por erro de vontade. Porém, não obteve sucesso no recurso interposto no STJ.

A 4ª Turma negou provimento ao recurso do pai, acompanhando o voto do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Segundo ele, nos dias de hoje, a paternidade “deve ser considerada gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a socioafetiva. Assim, em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica, e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar”.

Salomão observou que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, “quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva”.

O ministro ponderou que se a declaração sobre a origem genética realizada pelo autor na ocasião do registro foi uma inverdade, “certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro”.

Limbo jurídico
Entendimento semelhante foi proferido pela 3ª Turma ao julgar recurso especial de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Um pai ajuizou ação negatória de paternidade, na qual alegou tê-la reconhecido sob ameaças e pressões da mãe da criança. Requereu também exame de DNA, para comprovar a inexistência de vínculo biológico.

A ação foi proposta quando a criança já tinha cinco anos de idade. Em virtude da comprovação da ausência de vínculo biológico pelo exame, tanto a primeira instância quanto o TJ-SC determinaram a retificação do registro civil.

Ao julgar o recurso do Ministério Publico local contra o acórdão do tribunal catarinense, o STJ decidiu que não ocorreu vício de consentimento quando do registro da criança, nem que o pai tenha sido induzido a erro.

De acordo com Nancy Andrighi, em processos que lidam com o direito de filiação, “as diretrizes determinantes da validade de uma declaração de reconhecimento de paternidade devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado, para que não haja possibilidade de uma criança ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que, conscientemente, reconhece paternidade da qual duvidava, e depois de cinco anos se rebela contra a declaração produzida, colocando a menor em limbo jurídico e psicológico”.

A ministra afirmou que, mesmo na ausência do vínculo genético, o registro da criança como filha, “realizado de forma consciente, consolidou a filiação socioafetiva”. Para Nancy Andrighi, é “inequívoco” o fato de que ele assumiu, “em ação volitiva, não coagida, a paternidade sociafetiva”.

Em outro recurso, o ministro Massami Uyeda (hoje aposentado) considerou que, “em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado”.

Direito à verdade biológica
Outra discussão que surge no STJ é sobre a possibilidade de o vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da paternidade biológica ou a obrigação patrimonial.

Sobre o assunto, a 3ª Turma decidiu que o adotado ilegalmente, mesmo usufruindo de uma relação socioafetiva com o pai registrário, tem direito, se quiser, a tomar conhecimento de sua “real história” e ter acesso à sua “verdade biológica”, pois “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, assentado no princípio da dignidade da pessoa humana” — como afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

No caso julgado, uma mulher em idade madura ajuizou ação de investigação de paternidade, cumulada com petição de herança, pois o pai já era falecido. Na ocasião do seu nascimento, ela foi registrada como filha do marido de sua mãe, mesmo sendo filha biológica de outro homem.

Diante da confirmação do vínculo biológico trazida pelo exame de DNA, os herdeiros do pai sustentaram que, nesse caso, deveria prevalecer a paternidade socioafetiva em relação à biológica, pois se tratava de um caso de adoção à brasileira. Alegaram ainda que tanto a adoção como o registro civil eram irrevogáveis.

Segundo Nancy Andrighi, existe amplo reconhecimento da maternidade e paternidade socioafetivas pela doutrina e jurisprudência, bem como a possibilidade de ela prevalecer sobre a verdade biológica. “Trata-se do fenômeno denominado pela doutrina como a ‘desbiologização da paternidade’, o qual leva em consideração que a paternidade e a maternidade estão mais estreitamente relacionadas à convivência familiar do que ao mero vínculo biológico”, explicou a ministra.

Por outro lado, a ministra também esclareceu que, se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico, não é razoável que seja imposta a ele a prevalência da paternidade socioafetiva para impedir sua pretensão.

Obrigação patrimonial
Mesmo nas hipóteses em que a adoção é feita de maneira legal, nos termos do ECA e da Lei da Adoção, é assegurado ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica (artigo 48). Contudo, lembrou Nancy Andrighi, quando uma adoção é efetivada pelos trâmites legais, há o “rompimento definitivo do vínculo familiar”. E se o adotado desejar conhecer sua origem biológica, “essa investigação não gera consequências de cunho patrimonial”.

Diferentemente, na adoção à brasileira, “embora não caiba a anulação do registro de nascimento (salvo na hipótese de erro), por iniciativa daquele que fez a declaração falsa, diante da voluntariedade expressada (artigo 1.604 do CC/02) e da necessidade de proteger os interesses do próprio adotado, se a pretensão for investigatória e advier da própria vontade do filho interessado, é assegurado a ele o direito à verdade e a todas as suas consequências, incluindo as de caráter patrimonial”, afirmou a ministra.

Busca pelos pais biológicos
Conforme afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em outro recurso especial, “a tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto”.

O recurso tratou da história de uma mulher registrada pelos pais adotantes como se fossem seus genitores, depois de ter sido entregue pela mãe biológica ainda bebê. Posteriormente, a mãe biológica passou a conviver com ela como sua madrinha de batismo. O pai biológico possivelmente nem sabia da existência da filha.

Na adolescência, ela soube que sua mãe era, na verdade, a madrinha. Porém, somente após a morte dos pais registrais, e contando 47 anos de idade, soube a identidade do pai biológico e propôs a ação de investigação de paternidade e maternidade, cumulada com anulação de registro.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou improcedente o pedido da autora, pois entendeu que a existência do vínculo socioafetivo entre os pais registrais e a autora da ação afastava a possibilidade de reconhecimento da paternidade biológica. No STJ, o entendimento do tribunal gaúcho foi reformado. A 4ª Turma deu provimento ao recurso da mulher.

De acordo com o relator, a paternidade biológica gera “necessariamente” uma responsabilidade que não se desfaz com a prática ilícita da adoção à brasileira, “independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram”. No mesmo sentido, “a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo haver equiparação entre a adoção regular e a chamada adoção à brasileira”.

Salomão explicou que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, entretanto, ela não prevalece quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva.

O raciocínio deve ser aplicado para as adoções à brasileira, já que a adoção legal, conforme dispõe o ECA, é irrevogável e desliga o adotado de qualquer vínculo com pais e parentes (artigos 39, parágrafo 1º, e 41).

Pedido de terceiro
A 3ª Turma negou provimento ao recurso de um irmão que queria anular o registro de nascimento da irmã, afirmando que o pai havia praticado adoção ilegal.

A filha foi registrada em 1955, quando já possuía sete anos de idade e, segundo o recorrente, por insistência da então companheira de seu pai. Após aproximadamente 37 anos do registro, o fato foi tornado público e a filha tomou conhecimento de como aconteceu o seu registro. Daí se originou a ação ajuizada pelo irmão, para desconstituir a declaração de paternidade feita por seu pai biológico em relação à irmã adotada ilegalmente.

A relatora do caso foi a ministra Nancy Andrighi que, ao citar o artigo 1.601 do CC/02, lembrou que se restringe ao marido a legitimidade para contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, e ao filho a legitimidade para ajuizamento de ação de prova de filiação (artigo 1.606).

Todavia, a ministra ressaltou que esse leque foi ampliado pelo artigo 1.604, legitimando aqueles que provassem a existência de erro ou falsidade. Nesse último caso se encaixaria o interesse do irmão em contestar a paternidade.

A relatora ponderou que, se de um lado não há vínculo biológico entre o pai registral e a recorrida, a alteração do registro civil “deve ser avaliada à luz da existência de uma relação de filiação socioafetiva consolidada e construída sobre ações de boa-fé do pai socioafetivo”.

Nancy Andrighi entendeu que o pai registral, mesmo sem possuir vínculo biológico, ao registrar de forma consciente a criança como filha, consolidou a filiação socioafetiva. E embora a adoção tenha acontecido à margem da lei, a situação concretizou para a adotada a condição de filha, “que não pode ser enjeitada por aquele que registrou, nem ao menos contestada por terceiros”, avaliou.

De acordo com a ministra, a relação socioafetiva “não é constatada somente por meio de um convívio perene, mas no momento da declaração do pai registral, porque de outra forma se construiria relação filial sujeita às intempéries da vida, que podem determinar o afastamento de pessoas que mantinham íntima convivência, como de fato ocorreu na espécie”.

Direitos assegurados
Dessa maneira, nos recursos em que os adotantes ilegais queiram, tempos depois, negar a paternidade de seus filhos, ou quando terceiros alegam erro ou falsidade no ato do registro, percebe-se a prevalência da paternidade socioafetiva, “em nome da primazia dos interesses do menor”, explicou Nancy Andrighi.

Nos casos em que os filhos adotados ilegalmente buscam o reconhecimento dos pais biológicos, a tendência é que a verdade biológica prevaleça, em razão do “princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no artigo 1º, inciso III, da CF/88”, e que traz em seu bojo “o direito à identidade biológica e pessoal”, ponderou a ministra. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

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