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Entrevista: Hamilton Dias de Souza, advogado tributarista

1 de julho de 2012, 4h53

Por Pedro Canário

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Spacca
Hamilton Dias de Souza - 06/06/2012 [Spacca]A guerra fiscal é um fenômeno normal de federações e acontece em diversos países, há muito tempo. Por isso, no Brasil, o tema não deve ser encarado como uma crise institucional federativa, mas como um passo necessário à superação das desiguladades regionais e ao desenvolvimento dos estados.

Essa é a opinião de um dos tributaristas mais respeitados do país, o advogado Hamilton Dias de Souza. Além de analisar diversas minutas de projetos de lei encaminhados ao Congresso, sua boutique de Direito Tributário, a Advocacia Dias de Souza, está presente em casos de grande repercussão nas cortes de Brasília, e de lá saem, com frequência, especialistas nomeados para julgar em tribunais administrativos como o Conselho de Adminsitração de Recursos Fiscais (Carf), do Ministério da Fazenda.

Enquanto a voz quase unânime de tributaristas e empresários atribui à guerra fiscal empecilhos à concorrência e a uma rotina segura de recolhimento de tributos, Souza vê por outro ângulo. Para ele, os incentivos foram importantíssimos para o desenvolvimento do país, para a arrecadação e para a geração de empregos. Mais do que isso, foram necessários.

Ele não está sozinho. Recente estudo da Fundação Getúlio Vargas analisou 12 propostas de incentivos fiscais concedidos por estados a empresas para atrair a atividade industrial e gerar empregos em suas regiões. A FGV constatou que, em 2010, 12% do PIB nacional foi viabilizado, direta ou indiretamente, pelos incentivos. Além disso, o estudo apontou que 2% dos impostos sobre a produção arrecadados no país são gerados por conta dos incentivos.

Em termos absolutos, os incentivos representaram impacto total de R$ 35,8 bilhões no PIB em 2010, dos quais R$ 8 bilhões foram impactos diretos. Na arrecadação tributária, o impacto foi de R$ 9,1 bilhões. Clique aqui para saber mais.

Está em estudo hoje, no Supremo Tribunal Federal, a Proposta de Súmula Vinculante 69, que pretende declarar nulos todos os benefícios fiscais concedidos sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária, o Confaz. A corte já encerrou o prazo para ouvir sugestões. Em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico em seu escritório em São Paulo, Dias de Souza pede parcimônia na apreciação da questão. Segundo ele, acabar de uma vez com esses benefícios geraria um “caos econômico”. 

O tributarista se alia à corrente que defende uma modulação nos efeitos da nova súmula, se, de fato, ela for aprovada — ou seja, que ela valha apenas a partir da data de sua aprovação. 

Dias de Souza falou também sobre o principal assunto em discussão no Direito Tributário atualmente: a tributação do lucro de empresas estrangeiras coligadas ou controladas por empresas brasileiras. Ele faz uma crítica ao STF: “O Supremo até hoje não disse qual é o fato gerador do Imposto de Renda”. A definição é crucial para se definir a questão, mas o advogado afirma que os ministros, quando se debruçam sobre ela, limitam-se a decidir apenas casos concretos e levam em conta não só o direito, mas também as altas cifras envolvidas.

Leia a entrevista:

ConJur — O ministro Gilmar Mendes, do STF, alerta que estamos passando por um problema federativo, do pacto federativo. Recentemente chegou ao STJ a questão do local onde o ISS sobre leasing deve ser cobrado, por exemplo. A medida da discussão tem essa amplitude?
Hamilton Dias de Souza — As questões federativas envolvem os problemas de incentivos fiscais, de ICMS sobretudo. Essa é a grande questão que está em discussão e não só no Judiciário, onde se pretende que haja uma súmula vinculante no sentido de que os incentivos concedidos sem a autorização do Confaz são inconstitucionais. Há alguns problemas envolvendo royalties de petróleo, taxa de juros para cobrança das dívidas de estados pela União… São questões federativas, e eu abro aqui um leque enorme das questões federativas. Mas se nos voltarmos a uma delas, ficarmos apenas em uma, que é a guerra fiscal, a pergunta é: por que existe a chamada guerra fiscal? É alguma coisa brasileira, própria do nosso sistema, ou é própria das federações? É um conflito federal típico? Eu diria que em praticamente todas as federações existe competição fiscal entre os estados. É absolutamente normal. Portanto, a competição fiscal nas federações não é nenhum palavrão. A guerra fiscal, a competição fiscal, é uma coisa normal. Como é que São Paulo e Piauí podem competir para ver quem atrai mais indústrias? A infraestrutura que tem um estado como o Piauí, um estado pobre, implicaria custos tão mais elevados do que em São Paulo que nenhuma indústria normal, a não ser a indústria extrativa, se instalaria. Uma indústria de veículos não se instalaria no Piauí nunca.

ConJur — Quais são as opções?
Hamilton Dias de Souza — Sem instrumentos, cada vez mais a distância entre estados ricos e pobres vai aumentar. É até razoável pensar que tem de haver um instrumento externo, como o federal, por meio do qual a União poderia promover a descentralização regional. Só que a União está às voltas com problemas de infraestrutura, portos, aeroportos, estradas, como as obras necessárias para a Copa do Mundo. Ela não teria condições de cuidar disso. Então, os estados passaram a dar incentivos de ICMS. Quando concede um incentivo, o estado o faz com a parcela de ICMS que é própria dele. Não é verdade que o estado de destino vai pagar pelo incentivo que o estado de origem está dando. Essa afirmação é falsa.

ConJur — Por quê?
Hamilton Dias de Souza — Mostro um exemplo simples: uma operação cujo valor total é de 100. No estado de origem, tenho um valor de operação de 50 e no estado de destino, de outros 50. A alíquota da operação interestadual do estado mais pobre para o estado mais rico é de 12%, portanto, ele vai ter no estado de origem apenas 12% sobre 50. O estado de origem teria direito à metade do ICMS sobre 100, e o estado de destino, à outra metade. Se o estado de origem dá uma isenção, suponhamos que integral, sobre a sua parte, com quanto fica o estado de destino? Com o mesmo valor. Ele não perdeu nada. Os jornais, às vezes, fazem muitas críticas, fundadas em algo que alguém falou e que se repete até virar verdade. 

ConJur — Qual é o problema, então?
Hamilton Dias de Souza — O problema é de competição. Esse estado de destino está dizendo: "Essa indústria que foi para lá ficaria no meu estado e eu arrecadaria a fatia inteira se ela ficasse". 

ConJur — É justo validar os benefícios dados até agora sem a autorização do Confaz?
Hamilton Dias de Souza — A competição fiscal e os incentivos aconteceram porque não havia jeito de esses estados se desenvolverem sem esses incentivos. O Confaz, por sua vez, só aprova incentivos por unanimidade. É claro que os estados que se sentem atingidos pela chamada guerra não concordam nunca. Então, a unanimidade do Confaz é a chave do problema, mas não tem saída. É claro que isso é um problema federativo sério que tem de ser composto. Há centenas de empresas em outros estados com incentivos fiscais, há milhares de empregos, há infraestrutura, universidades, enfim, há investimentos públicos extraordinários em todos os estados.

ConJur — Uma súmula vinculante pode resolver?
Hamilton Dias de Souza — Se uma súmula vinculante for baixada antes de alguma providência legislativa, seguramente isso levará a um caos. Mas o que se tem notícia é que uma comissão de senadores se dirigiu ao presidente do Supremo mostrando a inconveniência de se publicar uma súmula vinculante como essa e pediram tempo para que o Congresso legisle sobre a matéria. Há três projetos no Senado e é um compromisso legislar com rapidez.

ConJur — De que tipo de caos estamos falando?
Hamilton Dias de Souza — Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, se acabarmos abruptamente com os incentivos, isso criaria um caos econômico e influiria decisivamente no PIB do Brasil. Não estou falando do PIB dos estados. É inimaginável supor que, do dia para a noite, possamos acabar com os incentivos. Nós estamos em São Paulo, mas se sairmos para ver o que aconteceu em outros estados, veremos um desenvolvimento extraordinário, inclusive em atividades periféricas, como o aumento do número de médicos, advogados, hospitais. Sem os benefícios, esses municípios praticamente não teriam condição de subsistir. É preciso convalidar esses incentivos. Naturalmente, é uma questão de negociação. Pode-se convalidar com prazo para não se instalar o caos.

ConJur — Uma modulação dos efeitos da súmula seria suficiente?
Hamilton Dias de Souza — Não resolve tudo. Se o Supremo modular, a anulação dos benefícios não retroage para centenas ou milhares de empresas, que de outra forma teriam de devolver tudo o que não recolheram no passado. Mas elas não podem pagar porque praticamente todos os estados exigem uma contrapartida para conceder o benefício. Não são meros incentivos, não é dar dinheiro. São incentivos bilaterais, onerosos. A empresa que se instala no estado tem obrigação de, com o dinheiro, ou parte do dinheiro, que ela recebe, investir no estado. Então, aquilo foi investido, ela não tem mais o dinheiro. Sem modulação, seria essa a situação. Já com a modulação, não tem de mexer no passado, mas também não tem solução para o futuro nos casos concretos. O que fazer? Fechar a empresa, despedir todo mundo, transformar os municípios em municípios fantasmas?

ConJur — Qual a solução?
Hamilton Dias — É inconveniente que haja súmula. O Congresso tem que rapidamente legislar sobre essa matéria, de forma que uma maioria qualificada de estados possa aprovar ou não os incentivos fiscais. Os projetos de lei são nesse sentido, inclusive com outros mecanismos para impedir que estados de uma determinada região sejam prejudicados. Tem que ser feito com bom senso, de maneira razoável, que seja boa para todos. Evidentemente, não teria sentido uma decisão que prejudicasse estados produtores como São Paulo. A decisão tem que ser palatável para São Paulo e conveniente para o país como um todo.

ConJur — Quais são os projetos?
Hamilton Dias de Souza — Há textos extremamente aproveitáveis. Há um projeto de lei do Senado, de número 85, que está sob relatoria do senador Delcídio Amaral [PT-MS], em que se espera parecer em curto prazo. O objeto é a quebra da unanimidade no Confaz, entre outras coisas. E há um projeto muito interessante de autoria do senador Ricardo Ferraço [PMDB], do Espírito Santo, que prevê uma alteração completa da Lei Complementar 24 de 1975, que é a base da concessão de todos os incentivos fiscais.

ConJur — Quando o Congresso edita leis em clima emergencial, o resultado final às vezes não é bom…
Hamilton Dias de Souza — Não necessariamente. Infelizmente, o Congresso fica com determinadas matérias represadas por anos. Aí, surge uma questão de necessidade da legislação, e o Congresso legisla. Quando o Congresso legisla em matéria de urgência, o que sai pela metade são as normas editadas em medidas provisórias. Essas sim saem pela metade, o que hoje constitui a regra. Hoje, a legislação financeira e praticamente toda a legislação do plano econômico nacional veio por meio de medidas provisórias.

ConJur — Talvez a maior tese tributária em discussão hoje é a cobrança de IRPJ e CSLL sobre o lucro de empresas estrangeiras coligadas ou controladas por empresas brasileiras, que ganhou destaque com a execução biolionária da Receita Federal contra a Vale. O senhor defende algum caso semelhante?
Hamilton Dias de Souza — Tenho um caso relacionado a isso e uma opinião sobre o assunto. Tenho uma crítica severa ao Supremo Tribunal Federal. Até hoje a corte não disse qual é o fato gerador do Imposto de Renda. Por que existe essa discussão? Porque há decisões em vários sentidos, não só a respeito do Imposto de Renda, mas também do ICMS, da não-cumulatividade. Não existe um entendimento do Supremo. A corte muitas vezes julga um caso concreto, mas não forma a doutrina e aí vem outro caso concreto, que ela julga teoricamente ou doutrinariamente. Não há uma determinada linha. Isso é uma crítica séria.

ConJur — Existe alguma tendência?
Hamilton Dias de Souza — No início do ano, o STF disse que o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda. Para haver aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda, é fundamental que a renda seja destacada da sua fonte e entregue ao terceiro, que pode fazer com aquilo o que ele bem entender. Então, só adquiro renda quando tenho direito sobre aquilo, quando posso pegar, colocar no meu bolso e gastar. Senão, não tenho renda. Se a fonte produtora da renda mantiver o dinheiro com ela e eu não tiver acesso à fonte produtora da renda, eu não tenho renda ainda.

ConJur — Como isso se aplica ao caso das coligadas?
Hamilton Dias de Souza — Imagine que uma empresa no Brasil, coligada a uma empresa no exterior, decide não distribuir seus lucros porque pretende reinvesti-los. E a empresa no Brasil, portanto, não vai ter lucro porque ele não vai ser distribuído. Pode até ter capital, mas não vai ter lucro. Como posso considerar isso lucro da empresa brasileira? E se a empresa brasileira não tem nem posição de controle na empresa estrangeira? Que lucro é esse? Como ela vai pagar o Imposto de Renda? Supõe-se que o Imposto de Renda é um pedaço da renda, mas se a renda não está disponível, como vou pagar renda? O que se pretende no caso de coligadas e controladas é que haja recolhimento de Imposto de Renda sem que a renda esteja disponível para a empresa brasileira, o que me parece, pelo menos no plano da teoria, despropositado. O Supremo tem de decidir qual é o fato gerador de Imposto de Renda e se é possível tributar a renda sem que ela esteja disponível.

ConJur — Por que o Supremo não consegue decidir?
Hamilton Dias de Souza — Porque, muitas vezes, as decisões são tomadas em função do caso concreto, e no caso concreto, os interesses do Estado passam a ser o interesse que, naquele momento, é tido como o interesse público. E isso não é verdade. O interesse público real é cumprir as leis e a Constituição. Os órgãos do Estado têm interesse em receber um valor, fundamental para fazer estradas, escolas, hospitais. Então, o Supremo decide, muitas vezes, preocupado com os números envolvidos, pelo fato de o Estado ter um prejuízo muito grande. Ao decidir dessa forma, em casos concretos, não se cria uma teoria. No passado, houve decisões dizendo que renda não disponível não é renda. Em casos posteriores, alguns ministros passaram a afirmar que o conceito de renda é legal: renda é aquilo que a lei fala que é renda. Quando uma corte constitucional examina uma questão, tem que, antes, adotar uma determinada teoria para aplicar ao caso concreto. E não examinar um caso concreto independentemente da teoria.

ConJur — O caso Vale trouxe a debate a cessão de procuradores federais para trabalhar nos gabinetes de juízes, desembargadores e ministros como assessores. Qual a sua opinião?
Hamilton Dias de Souza — O sujeito que tem gabarito para ser assessor de um ministro no Supremo Tribunal, no STJ ou em qualquer outra corte seria um advogado de altíssimo nível. E um advogado de altíssimo nível não vai querer largar o seu escritório para ter um cargo público, é muito difícil. Então, onde o ministro pode arrumar assessor? No setor público, porque a pessoa não se desvincula do órgão a que ela pertence, ela é emprestada ao Supremo, ao STJ. Então, procura-se no Ministério Público, na Procuradoria da Fazenda Nacional, na AGU. Na prática, é assim que funciona.

ConJur — Isso não desequilibra o jogo?
Hamilton Dias de Souza — Claro. Quem pode negar a influência dos assessores hoje em dia em julgamento nos tribunais superiores, com a massa de milhares e milhares de processos? É claro que o assessor tem uma participação importante, que desequilibra. Mas dá para mudar. Vejo com muito bons olhos a convocação de juízes de primeira instância para assessorar ministros. Há muito mais equilíbrio na convocação do juiz do que na convocação de alguém que pertence à AGU.

ConJur — Mesmo desfalcando varas?
Hamilton Dias — Há milhares de juízes. Estamos falando de cortes superiores. Elas têm uma importância extraordinária. Hoje, a proporção de assessores que saíram da Procuradoria da Fazenda Nacional e da AGU é enorme. Isso não é bom.

ConJur — O que acha da participação de advogados de grandes escritórios em tribunais administrativos como o Carf? 
Hamilton Dias de Souza — Os representantes do Fisco são de altíssima qualidade técnica, pessoas que já foram delegados e superintendentes da Receita, que tiveram postos chave na administração. Claro que se os contribuintes sugerirem nomes que não têm base técnica compatível, eles não terão condição de discutir [os representantes dos contribuintes são indicados ao Carf por entidades da sociedade civil]. Então, de uns tempos para cá, sobretudo aqueles que advogam no Carf passaram a trabalhar junto às entidades para que elas fossem rigorosas na escolha dos indicados, para que eles fossem pessoas de maior categoria, e é o que tem acontecido ultimamente. O que só é bom para o Conselho, porque a base, a discussão técnica, fica muito mais aperfeiçoada. Quem que pode ir para o Conselho, órgão que não remunera? Só aquele que, fora do Conselho, tiver um escritório que o remunere. E qual escritório vai remunerar uma pessoa que vai ter um tempo muito grande dedicado ao Conselho? Os grandes escritórios. Então, é apenas uma questão de equilibrar o jogo. 

ConJur — E o jogo é equilibrado?
Hamilton Dias de Souza — Não vou dizer que é totalmente equilibrado, mas acho que o Carf decide muito bem, tecnicamente. Hoje, a maioria dos advogados tributaristas de primeira linha do Brasil prefere discutir no Carf e não na Justiça. O Carf tem uma condição técnica para decidir determinadas questões que a Justiça não tem. 

ConJur — O fato de a Fazenda, por meio da PGFN, ter direito a contra-razões ou tréplica nos recursos no Carf não revela o desequilíbrio? 
Hamilton Dias de Souza — O jogo não é completamente equilibrado. O procurador da Fazenda é quase um pedaço ou uma parte do Conselho, ele está em contato com o pessoal que julga. Ele senta na mesa junto com os conselheiros. Evidentemente que alguém que tem uma situação privilegiada como essa não é semelhante a um advogado normal. Ele conversa com os conselheiros com intimidade. Portanto, há, sem dúvida, algum privilégio. Mas, por incrível que pareça, com tudo isso, na prática, as decisões do Conselho são muito razoáveis.