Há 50 anos, Ceschiatti inaugurou a Têmis do Supremo
26 de outubro de 2011, 11h15
“Meu pai, um imigrante italiano chegado no começo do século ao Brasil, era padeiro. Vivia com as mãos na massa. E eu, afinal, repito a mesma coisa. Só que troquei o trigo pela argila e, em vez de pães, faço estátuas.” Alfredo Ceschiatti, escultor
Há precisos cinqüenta anos, em 1961, o mineiro Alfredo Ceschiatti inaugurava a sua emblemática escultura “A Justiça”, na frente do edifício sede do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A alegoria, realizada em granito de Petrópolis, mede 3,30m de altura por 1,48m de largura e, ao contrário da maior parte da multissecular iconografia da Justiça, retrata uma Têmis sentada, desprovida de balança e com a espada a repousar sobre o colo. Não há rebuscamento, grandes volteios ou recantos impenetráveis na sua plasticidade. Há, sim, um certo eco concretista na obra, com seu volume compacto, suas formas simétricas e econômicas. As linhas concisas e sem interrupções imprimem à figura de Ceschiatti uma seriedade art déco. Cuida-se de uma Justiça austera e solene, cujos ângulos bem marcados, a postura ereta e o pesado panejamento dão-lhe um ar hierático e formal.
O artista plástico Ceschiatti e o arquiteto Niemeyer conheceram-se no início dos anos quarenta e desde então estabeleceram uma profíqua parceria estética. A estatuária cívica ou religiosa de Ceschiatti é vista em muitas obras de Niemeyer – no Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte; no Memorial da América Latina, em São Paulo; na Catedral, no Palácio da Alvorada, no Supremo Tribunal, no Palácio do Jaburu, na Câmara dos Deputados e no Itamarati, todos em Brasília. Nascido em Belo Horizonte, a 1 de setembro de 1918, e filho de pais italianos imigrantes, Alfredo Ceschiatti manifestou muito cedo, ainda na escola, uma forte vocação para a arte. Em 1937, na condição de oriundi, é beneficiado pelo governo fascista italiano com uma viagem à Itália, onde se interessa, sobretudo, pela obra dos artistas renascentistas – Michelangelo especialmente. “Essas viagens eram organizadas por Mussolini, para filhos de italianos.
Eu tinha, então, 18 anos e fiquei deslumbrado. Como fui muito bem recomendado, me deixaram livre da propaganda fascista e eu tinha tempo para visitar museus e exposições. Para mim, a Itália foi um choque. Voltei decidido a estudar Belas Artes.” – recordou em um depoimento reproduzido pelo jornalista Flamínio Fantini. Mas, ao retornar ao Brasil, não enveredou imediatamente pela escultura, conforme, muitos anos depois, em 12 de maio de 1976, declarou à revista Veja: “Aquilo massacra a gente, tem uma força tão grande, um passado tão formidável. Diante de Michelangelo, quem é que pensaria em ser escultor?” Em outra passagem – também citada por Flamínio Fantini –, Ceschiati volta a declarar em 1975 sua paixão pela arte italiana: “Não tenho fases. Só houve um momento em que caí no abstrato. Logo senti que não era nosso caminho, muito sofisticado e muito frio para mim. Logo voltei ao Mediterrâneo, à Renascença”.
Tanto quanto os grandes mestres renascentistas italianos, Alfredo Ceschiatti também gostava que sua arte fosse pública e monumental. Além de Brasília e Minas Gerais, esculturas suas de grandes dimensões podem ser vistas, por exemplo, no Monumento aos Pracinhas da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro; na figura feminina em bronze, de três metros de comprimento, sem título, no saguão da Estação da Sé, do Metrô de São Paulo; no bronze feminino dos jardins do conjunto habitacional de Hansa, em Berlim; ou na imensa estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva, na Praça do Patriarca, em São Paulo. Em uma entrevista ao jornal O Globo, em 1975, Ceschiatti é incisivo: “Não sou escultor de bibelô”. Ainda segundo Flamínio Fantini, aquela Justiça foi esculpida num bloco único de granito de três por cinco metros, tão pesado que chegou a quebrar um caminhão.
Mas não era apenas o imenso nu masculino, que pela primeira vez tomava lugar na praça pública, o que mais impressionava os florentinos. Em quase todas aquelas representações pictóricas ou escultóricas até então produzidas, o Davi bíblico que se celebrava era o jovem herói vencedor, que já havia derrotado e decaptado Golias. Até ali, cultuava-se costumeiramente a vitória do moço franzino e impetuoso que, com a funda e a pedra, vencera o gigante e, depois, ainda o decaptara com a própria espada do inimigo derrotado. Em quase todas aquelas imagens anteriores a 1504 estavam presentes a espada em riste e a cabeça decepada do gigante que jazia sob os pés do futuro rei de Israel.
Michelangelo, todavia, optou por uma outra narrativa da passagem bíblica. E revolucionou a iconografia do Davi. Original, ele enveredou por um discurso pictórico que não fala do Davi já vitorioso e orgulhoso do seu feito, que comemorava a derrota do gigante. Na verdade, Michelangelo refere-se, sim, a um instante anterior à luta. Com a sua imensa escultura, de 5,17m de altura, Michelangelo lega-nos um Davi que olha fixa e tensamente para o seu alvo, enquanto segura a pedra e a funda, a preparar o golpe final. Tenso, atento, vigilante e tomado de grande coragem, é nesse preciso momento que o Davi se agiganta para enfrentar Golias. E o jovem pastor abandona a frágil figura juvenil até então conhecida para, amadurecido, tornar-se homem feito, enorme, nu como os deuses, mas em cujas veias o sangue humano pulsa vigorosamente.
O gesto e o momento de Michelangelo não são os mesmos de Donatello, Ghiberti ou Pollaiolo e, ao imortalizar o atmo anterior à lutar, Michelangelo honrou as duas principais virtudes cívicas do renascimento florentino: força e coragem. Exatamente por isso, por mostrar o homem comum que se agiganta diante do desafio, o seu Davi foi escolhido para permanecer no local mais nobre da Toscana – na porta do Palazzo Vecchio, o Palácio do Governo de Florença.
Como Michelangelo, com o seu Davi, Ceschiatti revoluciona a iconografia da Justiça ao optar por uma outra dimensão temporal do seu tema, uma temporalidade que já não é a de outras Justiças (também sentadas!) como, por exemplo, a que Andrea Pisano fez para a Porta Sul do Batistério de Floreça (1336), ou aquela de Giotto, na Cappella degli Scrovegni, em Pádua (1306), ou ainda aquela outra que Raffaello Sanzio pintou no teto da Stanza della Segnatura, no Vaticano (1511). Ao contrário dessas três representações, e de outras tantas, a Justiça de Ceschiatti é uma Justiça que já cumpriu o seu mister. E que se não porta uma balança é porque não está mais a julgar, a sopesar fatos, a ponderar argumentos, a medir direitos.
Em Ceschiatti, a justiça já foi feita; tudo já foi medido e pesado, e a cada um já foi dado o que é seu. Suum cuique tribuere e desaparecem os pratos da balança. A espada, porém, permanece – tranqüila – nas mãos de Têmis. Fica ali porque, nas mãos do homem, em poder de uma das partes, poderia virar vingança privada. É mais seguro, portanto, que esse poder reste – ainda que dormente – nas mãos do Estado-Tribunal. A obra de Ceschiatti repousa na entrada da mais alta e mais importante Corte Judicial brasileira e esse locus não pode ser ignorado. Ali instalado, na Praça dos Três Poderes, o pesado granito de Ceschiatti fala por si(lêncio): naquele Palácio a Justiça foi feita! Fez-se justiça na Corte projetada por Niemeyer, a cada novo julgamento.
Não se pode compreender a Justiça de Ceschiatti sem perceber o edifício do Supremo Tribunal, logo ali atrás, ou, tampouco, entender a plenitude da arquiterura do edifício do Supremo Tribunal sem notar sua composição com a Justiça de Ceschiatti. Um e outro se completam numa identidade escultural-arquitetônica. Essa harmônica simbiose entre a obra do escultor e a obra do arquiteto está na base da estética total do artista mineiro, cujo grande objetivo era, como ele dizia, “o mesmo do Renascimento: o da integração de todas as artes na unidade de um só prédio”.
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