Leia voto de Cármen Lúcia sobre pesquisas com células-tronco
29 de maio de 2008, 17h18
O voto da ministra Cármen Lúcia foi um dos mais tecnicamente jurídicos lidos durante o julgamento da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Ao contrário de alguns colegas, ela não se baseou em pesquisas e métodos científicos e nem buscou na filosofia, teologia ou na genética quando se dá o início da vida. Cármen Lúcia defendeu as pesquisas com células-tronco de embriões com base na Constituição Federal.
Valeu-se do princípio da dignidade da vida humana para considerar que tudo aquilo que limita a liberdade do ser humano atenta contra a sua dignidade. Lembrou que a própria Constituição estabelece o princípio da solidariedade entre as gerações, como forma de garantir a dignidade da existência humana. Falou também que a carta política do Brasil incentiva e protege a atividade de pesquisa científica.
“A utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana, constitucionalmente assegurada. Antes, valoriza-a. O grão tem de morrer para germinar”, enfatizou.
Cármen Lúcia lembrou que, se os embriões inviáveis e congelados não forem aproveitados para as pesquisas, seu destino será o lixo. “Estaríamos não apenas criando um lixo genético, como, o que é igualmente gravíssimo, estaríamos negando àqueles embriões a possibilidade de se lhes garantir, hoje, pela pesquisa, o aproveitamento para a dignidade da vida. A sua utilização é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se o saber da vida, que com outros objetos se alcança.”
A ministra aproveitou a oportunidade para questionar o caráter religioso que pode permear a atividade de um juiz. “A Constituição é a nossa Bíblia e o Brasil é nossa religião”, disse a ministra sobre como tem que se pautar um julgador.
Do mesmo modo, Cármen repeliu as promessas de curas milagrosas que foram veiculadas em defesa das pesquisas. “Temo que a palavra pela qual se afirma e faz realizar o Direito seja utilizada como fraude a legítimas esperanças dos que dependem de soluções sérias e que se quer benéficas aos que mais diretamente dependem do êxito das pesquisas para sofrimentos que a só natureza (sem a mão do homem) não pode curar”, afirmou.
Cármen Lúcia julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade improcedente por considerar que o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que permite as pesquisas com células-tronco embrionárias, não contraria em nada a Constituição Federal.
VOTO
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Senhor Presidente, inicio cumprimentando o eminente Ministro Relator, cujo voto, na primeira assentada deste julgamento, concluiu pela “total improcedência” da presente ação, em primoroso pronunciamento. Hoje, na seqüência do julgamento, o insigne Ministro Menezes Direito igualmente apresenta voto profundo e bem elaborado, ele que, tal como o Ministro Relator, debruça-se sobre as questões aqui trazidas com percuciência e rigor.
Como observações preliminares, Senhor Presidente, e antes de adentrar nos fundamentos do voto que proferirei em seguida, gostaria de pontuar, brevemente, alguns itens importantes, e que não se referem apenas a uma postura relativa a este julgamento, mas um dado institucional que se torna, penso, relevante acentuar em face de todo o grande, necessário, positivo e democrático debate havido na sociedade sobre a matéria discutida nesta ação.
Tais observações preambulares, Senhor Presidente, faço-as para realçar notas que, no trânsito democrático das idéias amplamente divulgadas sobre a matéria objeto da presente ação, devem ser perfeitamente interpretadas e acreditadas segundo as balizas que conduzem os julgamentos por este Supremo Tribunal.
A matéria de que aqui se cuida é mais sujeita que o comum de quantas daquelas que são trazidas a este Supremo Tribunal aos opinamentos – legítimos, seja realçado – de todos e podem, às vezes, deixar vislumbrar que a condução das idéias e definições desta Casa seguiriam opções forjadas segundo fatores momentâneos externos.
Por isso é que enfatizo que as manifestações sobre as idéias relativas à questão do uso das células tronco embrionárias em pesquisa são legítimas e desejáveis. Afinal, pesquisa científica diz com a vida, com a dignidade da vida, com a saúde, com a liberdade de pesquisar, de se informar, de ser informado, de consentir, ou não, com os procedimentos a partir dos resultados. Logo, diz respeito a todos e todos têm o legítimo e democrático interesse e direito de se manifestar.
Entretanto, as manifestações momentâneas, dotadas de profunda, repito, legítima e compreensível emoção que envolve o tema e as suas conseqüências sociais não alteram, não desviam – nem poderiam – o compromisso do juiz do seu dever de se ater à ordem constitucional vigente e de atuar no sentido de fazê-la prevalecer.
Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de Miranda, assim é porque o Direito assim quer e determina. O Estado é laico, a sociedade é plural, a ciência é neutra e o direito imparcial Por isso, como todo juiz, tenho de me ater ao que é o núcleo da indagação constitucional posta neste caso: a liberdade, que se há de ter por válida, ou não, e que foi garantida pela lei questionada, de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, nos termos do art. 5º, da Lei 11.050/2005.
Também manifesto nestas ponderações iniciais, Senhor Presidente, a minha preocupação com as expectativas que parece ter sido suscitadas na sociedade quanto aos efeitos práticos e imediatos deste julgamento. A esperança é um direito natural que as pessoas têm e que não podem perder, para continuar a ter força para lutar pelo que cada um e todos mais precisam. Mas não se há confundir a esperança de cura com a ilusão de uma imediata cura. Nem está no Direito, nem neste Tribunal, nem no resultado desta ação o bálsamo curador de quem mais precisa dos efeitos de novas terapias, que têm grande chance de poderem surgir em algum tempo (ainda não precisado pela ciência) se as pesquisas, liberadas, chegarem aos resultados hoje esperados pela comunidade científica dedicada ao tema. Mas que nem se use desta ação para impedir as pesquisas, nem para falsear ilusões que não podem ser garantidas agora a quem quer que seja, conforme a unânime opinião das pessoas sérias e responsáveis que trabalham com a matéria versada neste processo.
Faço questão de realçar este ponto, Senhor Presidente, porque temo que a palavra pela qual se afirma e faz realizar o Direito seja utilizada como fraude a legítimas esperanças dos que dependem de soluções sérias e que se quer benéficas aos que mais diretamente dependem do êxito das pesquisas para sofrimentos que a só natureza (sem a mão do homem)não pode curar.
É que assisti a divulgações das mais diversas fontes e dos mais diferentes matizes que poderiam ser lidos, ouvidos e até vistos como se a solução desta causa fosse o passaporte faltante para a salvação imediata daqueles que padecem de males que poderão vir a ser sanados ou diminuídos em seus efeitos pelo êxito de pesquisas científicas da medicina regenerativa. Entretanto, isso é uma promessa, mas é certo que não ocorrerá amanhã, qualquer que seja o resultado deste julgamento. Poderá, é certo, haver um amanhã para aqueles que padecem de males dependentes do êxito que se espera a partir das pesquisas com células tronco embrionárias. Ilusão não é esperança. E como enfatiza Sophia de Mello Breyner, “com fúria e raiva acuso o demagogo, que se promove à sombra da palavra, e da palavra faz poder e jogo…”. São demagogos, Senhor Presidente, todos os que se valem da palavra para enganar os que querem, mais ainda os que precisam acreditar para persistir em suas lutas para viver ou para não morrer, e por isso tanto mais inaceitável a oferta fácil de falsas ilusões, que não podem ser honradas e que não ajuda a que se mantenham as esperanças, necessárias, reitero, para que as pessoas não desanimem e persistam a acreditar que haverá de haver soluções para os seus dilemas.
Finalmente, Senhor Presidente, e ainda como observação preliminar, a se tomar não apenas quanto a esse, mas em relação a qualquer julgamento de controle abstrato de constitucionalidade, preocupa-me o que foi aqui afirmado por um dos ótimos advogados que assomaram a tribuna, na sessão na qual teve início esse julgamento. Segundo o que anotei nas alegações lançadas da tribuna, afirmou um dos eminentes procuradores, que, no presente julgamento, não teria muito a fazer este Supremo Tribunal, pois não haveria um vazio legislativo sobre a matéria. A questão resumir-se-ia na indagação que poderia ser assim traduzida: que legitimidade teria o Poder Judiciário para afirmar inconstitucional uma lei que o Poder Legislativo votou, o povo quer e a comunidade científica apóia?
No Estado Democrático de Direito, os Poderes constituídos desempenham a competência que lhes é determinada pela Constituição. Não é exercício de poder, é cumprimento de dever. Ademais, não imagino que um cidadão democrata cogite querer um juiz-Pilatos dois mil anos depois de Cristo ter sido crucificado porque o povo assim queria. Emoção não faz direito, que é razão transformada em escolha jurídica. Quantos Cristos a humanidade já não entregou segundo emoções populares momentâneas? E quem garante quem será o próximo, que poderá sofrer uma injustiça, evitada pelo que o leigo, às vezes, considera ou apelida ser apenas uma “firula legal”? Anotava Hamilton, em O Federalista, que a “independência dos juízes é igualmente necessária à defesa da Constituição e dos direitos individuais contra os efeitos daquelas perturbações que através das intrigas dos astuciosos ou da influência de determinadas conjunturas, algumas vezes envenenam o povo e que – embora o povo rapidamente se recupere após ser bem-informado e refletir melhor – tendem, entrementes, a provocar inovações perigosas no governo e graves opressões sobre a parcela minoritária da comunidade. … é fácil imaginar que será necessária uma forte dose de retidão por parte dos juízes para cumprirem seus deveres como guardiões da Constituição se as invasões do legislativo tiverem sido instigadas pela maioria da comunidade” (HAMILTON, MADISON E JAY – O Federalista. Tradução de Heitor Almeida Herrera. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1984, p. 580).
É com o só compromisso com a Constituição que há de atuar esse Supremo Tribunal, neste como em qualquer outro julgamento. O juiz faz-se escravo da Constituição para garantir a liberdade que ao jurisdicionado nela é assegurado.
Passo, então, Senhor Presidente, aos fundamentos do meu voto.
No mérito
1. Nesta ação direta de inconstitucionalidade, põe-se em questão a validade constitucional do art. 5º e seus parágrafos da Lei n. 11.105, de 24.5.2005, que dispõe:
“Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”
2. O Procurador-Geral da República, autor da ação, afirma que seriam inconstitucionais aqueles dispositivos e que “a tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação.”
A partir deste marco assim exposto, segundo o qual o óvulo fecundado – o embrião em seus primeiros momentos – seria vida humana, cujo uso para pesquisa e terapia (nos termos dos dispositivos legais questionados) configuraria agressão ao direito à vida, nos termos constitucionalmente postos no art. 5º, da Constituição brasileira, o nobre Procurador-Geral da República afirma ser o zigoto – constituído por uma única célula – “biologicamente um indivíduo único e irrepetível” (fl. ). Sem mais, conclui ele que, ao permitir o uso dos embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, nos termos dos incs. I e II do art. 5º, da Lei n. 11.105/2005, com o consentimento dos genitores e sem fins comerciais (o que é constitucional e legalmente proibido), as normas em foco ofenderiam o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da Constituição) e a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º).
3. A indagação posta ao exame deste Supremo Tribunal marcou-se por densa manifestação da comunidade científica, de comunidade acadêmicas e religiosas, e da opinião pública, nesta preponderando a legítima presença daqueles que se vêem como potencialmente beneficiários de resultados das pesquisas que se poderão levar a efeito se o dispositivo legal se mantiver íntegro nos termos positivados.
Cogitou-se e divulgou-se que a ação teria o condão de transferir a este Supremo Tribunal a obrigação de afirmar “quando começa a vida”…
Para o específico fim de se ter a resposta à questão de saber se são, ou não, constitucionalmente válidas as normas enfocadas na presente ação, tenho que se há de afirmarem os princípios constitucionais e a sua aplicação ao caso, sem que se tenha, necessariamente, de afirmar, juridicamente, o momento de início da vida para os fins de garantia de direitos ao embrião ou ao feto.
Não que essa não seja uma questão que não tenha de vir a ser enfrentada por este Supremo Tribunal. Apenas para o desate da indagação feita na presente ação, tenho como sendo mister ponderarem-se os princípios constitucionais que haveriam de ter sido respeitados pelo legislador e verificar se o foram – caso em que a norma jurídica é constitucionalmente válida -, ou não.
A lei de biossegurança e a ética constitucional vigente
4. A lei n. 11.105/2005 cuida de múltiplas matérias. O único dispositivo argüido como inválido constitucionalmente pelo Procurador-Geral da República, como antes transcrito, foi o art. 5º e seus parágrafos, que cuidam, especificamente, da utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro e que, “não utilizados no respectivo procedimento”, a dizer, não tendo sido implantados no útero materno, podem servir àqueles objetivos mediante o consentimento dos genitores e desde que não se voltem à comercialização do material biológico.
Os embriões a que se referem os dispositivos são apenas aqueles tidos pela lei como inviáveis (art. 5º, inc. I) ou “congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação … (da) Lei, ou que, já congelados na data da publicação (da) Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento”.
5. Tem-se, pois, nas normas havidas no art. 5º e seus parágrafos da Lei n. 11.105/2005, que:
a) Objeto do procedimento legalmente permitido há de ser
a.1) embriões produzidos in vitro (art. 5º, caput);
a.2) embriões inviáveis ou congelados há três anos ou mais, na data da publicação da lei ou que, já congelados naquela data, venham a completar três anos, contados a partir da data do congelamento (art. 5º, incs. I e II);
b) São fins únicos da utilização de células-tronco embrionárias a pesquisa e a terapia (art. 5º, caput);
c) São condições para a utilização legalmente permitida:
c.1) o consentimento dos genitores (art. 5º, § 1º);
c.2) a aprovação prévia do comitê de ética da entidade pesquisadora (art. 5º, § 2º);
d) São vedações legais expressas (não apenas no art. 5º, questionado, mas também no art. 6º, daquele mesmo diploma legal):
d.1) a comercialização de embriões, células ou tecidos (art. 5º, § 3º);
d.2) a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto e embrião (art. 6º, inc. III)
d.3) a clonagem humana (art. 6º, inc. IV).
6. O caput do art. 5º da Lei n. 11.105 dispõe ser permitida a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizadas no respectivo procedimento para duas finalidades: pesquisa e terapia.
7. Há que se distinguir, pois, as finalidades pesquisa e terapia para o específico objetivo de se analisar a validade constitucional da norma posta em exame. Especialmente porque os princípios constitucionais relativos à liberdade de pesquisa aliam-se, mas não se confundem com aqueles que informam o legislador infraconstitucional na questão relativa à utilização de terapias.
8. A ética constitucional vigente afirma o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, do que decorre a impossibilidade de utilização da espécie humana – em qualquer caso e meio – para fins comerciais, eugênicos ou experimentais.
9. Ao escrever – antes do advento da Lei n. 11.105/2005 – sobre o tema, acentuava que “Não há determinismo ou definitividade no sofrimento do ser humano. Nem se há de admitir o sofrer pelo sofrer. O homem existe para ser feliz. Quer ser feliz. Tudo o que tolhe, limita, dificulta ou impede este estágio de realização humana pode conduzir à indignidade da pessoa. Paralelamente, o que alargue as humanas condições tende a ser benéfico à dignidade. …Por isto o direito há de cuidar da vida do homem com a indisponibilidade que o caracteriza, com a integridade que a assegura, com a liberdade que a humaniza, com a responsabilidade que a possibilita. Enfim, a dignidade humana não pode ser elemento de mínima concessão. Cabe ao direito assegurar que assim se cumpra. Mas esta garantia não se restringe a uma competência estatal; há que se converter em compromisso social. Na medida em que a ciência deixou de ser fechada e estática e passou a ser aberta e dinâmica e a atuar não apenas para sarar os homens, mas para transformá-los ou até mesmo permitir a sua vida e a sua morte em formatos forjados em laboratórios, a ciência … passou a constituir um fator de determinação social, até mesmo de organização político-social, pelo que passou a ser, paralela e necessariamente, objeto de cuidados jurídicos. É que a organização social legitima-se pelo pleno atendimento dos direitos humanos, os quais não podem ser sonegados, menosprezados ou desprestigiados em benefício de novos comportamentos que venham a ser adotados, ainda que sob o signo da melhoria das condições de vida de algumas pessoas. A ciência não pode, sozinha, legitimar-se como fonte nova e exclusiva da organização sócio-política, nem pode pretender que a dignidade humana seja subtraída de sua matricial importância e primado sobre todos os outros princípios, que se põem na base da ordem segundo a qual se organiza a sociedade contemporânea. O desenvolvimento cientifico e tecnológico não podem ser negados ou impedidos, nem é o que se propõe, por ser ele elemento de melhoria das condições humanas. O que não se pode admitir é que o direito deixe de considerar este novo quadro científico que faz valer os seus conhecimentos sobre o homem, sobre o seu corpo, a sua vida psíquica e o seu espírito. Chamar-se à responsabilidade de todos e de cada um não é suficiente para garantir o pleno respeito à liberdade dos homens, menos ainda para assegurar a dignidade humana. A fragmentação do corpo humano, a venda de órgãos, ou, de maneira mais geral, a comercialização do corpo humano esquartejado em vida e dissecado como se fossem objetos soltos de um quadro e que, em certos casos, pode não trazer mal imediato e direto à saúde do comerciante de si mesmo, pode agradar ao negociador do laboratório e permitir o uso que até mesmo beneficie uma outra pessoa, mas agride, fragorosamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, não podendo ser aceita, menos ainda deixada ao exclusivo cuidado particular (ou de particulares). Desconhecer que o negócio de embriões, a sua venda, a concepção para o uso posterior de embriões, indesejados como seres em fase de formação, buscados apenas como bem a ser manipulado para fins cumpríveis por laboratórios, é desatender as funções primárias dos Estados e das sociedades de proteger o princípio da dignidade humana, que não se pode render a lucros materiais ou imateriais dos pesquisadores ou médicos encarregados dos procedimentos….”(O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, p. 82).
O estudo das normas questionadas na presente ação patenteia, entretanto, a preocupação do legislador em atender, quanto à pesquisa, de um lado, a liberdade que há de permiti-la e, de outro, os limites que a compatibilizam com os princípios constitucionais, na forma acima exposta, pelo que se há de analisar as assertivas do eminente Procurador-Geral da República, na peça inicial da presente ação, com todos os contornos postos na Lei, aí incluídas as vedações expressas em outras normas daquele diploma e que se compõem com o estatuído no art. 5º e seus parágrafos, objeto da presente ação. Desta composição é que se conclui o quadro legal estabelecido e que guarda consonância com os princípios constitucionais, aí incluído, primacialmente, o da dignidade da pessoa humana.
Quanto à permissão para fins de terapia da utilização das células-tronco embrionárias, também há que se compatibilizar, por meio de rigorosa interpretação, o quanto posto na lei questionada com os princípios constitucionais vigentes.
De pronto cumpre realçar a distinção entre tratamento, cuja remissão constitucional é expressa como forma de acesso aos cuidados com a saúde, direito fundamental da pessoa (art. 6º, 199, § 4º, da Constituição), e terapia. Palavras geralmente tomadas como sinônimas, a terapia pode ser tida como a adoção de práticas e procedimentos que conduzam a formas de tratamento. Entretanto, há terapias experimentais, o que poderia indicar, se adotado aquele conteúdo normativo sem o conformar aos princípios constitucionais, que também nestes e para estes casos estaria a lei validando a imediata utilização de embriões e o que é mais e pior, a utilização das pessoas submetidas a tais procedimentos. Terapias feitas a título de experimentação com o uso do ser humano não se compatibilizam com os princípios da ética constitucional, em especial, com o princípio da dignidade da pessoa humana. E neste caso, nem tanto pela utilização dos embriões, mas porque se utilizariam pessoas como verdadeiras cobaias, serventes que seriam à experimentação de técnicas ainda sem qualquer amparo em bases científicas e resultados concretos obtidos nas pesquisas.
A literalidade do texto do art. 5º, caput, da Lei examinada, na referência ali feita à utilização permitida de células-tronco embrionárias para fins de terapia, poderia conduzir à equívoca conclusão de que ela estaria agora – ou desde a vigência da norma – autorizada.
Ocorre que não há pesquisa sobre células-tronco embrionárias terminadas ou assentadas em sólidas bases científicas que pudessem admitir tal conclusão.
Em curso há apenas uma década, tais pesquisas não podem ainda ser consideradas validadas para fins de utilização como terapia, porque então não se teria tratamento, mas mera experimentação com seres humanos. Tanto não se compatibiliza com o princípio da dignidade da pessoa humana. Repita-se: não por causa da utilização das células-tronco embrionárias, da natureza de que ela se dote em face do ordenamento jurídico (pessoa ou não), mas pela singela circunstância de que a sua utilização seria no corpo daquele que precisa de qualquer alternativa para buscar viver ou para não se deixar morrer, entregando-se a experimentos ainda não completados em suas fases de viabilização e utilização com humanos. Daí a necessidade de se interpretar a norma, quanto à terapia, como dotando-se de conteúdo estrito e coerente com a regra constitucional, que assegura o direito ao tratamento, logo a terapia como forma de tratamento a partir de bases e resultados científicos consolidados e aceitos pelos órgãos e instituições competentes, impedindo-se, assim, a auto-oferta do paciente como experimentação com animal nobre, o que não há de ser tido como compatível com a dignidade humana.
Células-tronco embrionárias e princípios constitucionais: inviolabilidade da vida e dignidade da pessoa humana
10. As células-tronco embrionárias, imaturas, primitivas e pluri ou totipotentes, produzidas em laboratórios, é que são, portanto, objeto do dispositivo legal posto em questão.
Essas células são consideradas – no atual estágio da pesquisa científica – potencialmente aptas a gerar quaisquer tecidos do organismo humano, permitindo a renovação das células linfóides e mielóides e, assim, a produção de células diferenciadas no tecido sanguíneo.
É essa aptidão potencial das células-tronco embrionárias, não repetida nas células-tronco adultas, havidas no organismo desenvolvido, que distingue e valoriza as primeiras e torna-as especialmente atrativas para a pesquisa e para novos tratamentos que se disponibilizem para o bem e a dignidade do ser humano.
Podendo tornar-se diferentes tecidos do organismo são elas que podem conduzir a novos patamares de pesquisa em benefício de todas as pessoas, em especial das que padeçam de doenças degenerativas (mal de Alzheimer, mal de Parkinson, esclerose múltipla, diabetes, distúrbios cardiovasculares, dentre outras). E não são poucas as pessoas que sofrem destes males e que têm nas pesquisas a possibilidade – conquanto ainda não a certeza – de poder resgatar a sua condição de saúde ou, ao menos, de melhoria das condições para o viver digno.
Afirmou-se nas razões de apoiamento à tese de inconstitucionalidade do art. 5º e seus parágrafos da Lei n. 11.105/2005, argüida pelo Procurador-Geral da República, que não haveria motivo para se admitir o uso de células-tronco embrionárias, controvertido em razão de ponderações éticas, uma vez que a utilização de células-tronco adultas demonstraria a igual condição dessas àquelas.
Não é o que a pesquisa científica até aqui levada a efeito mostra: a célula-tronco embrionária tem a possibilidade de gerar todos os tecidos de um indivíduo adulto. Portanto, ao menos no plano das perspectivas das pesquisas até o presente, essa célula poderia originar todos os tipos de tecidos, razão pela qual ela é denominada totipotente (ou pluripotente). Em face desta sua característica, a célula-tronco embrionária não pode ainda ser substituída, sendo grande a expectativa sucitada de poder vir a ser aproveitada nos procedimentos reparatórios de tecidos devido àquela sua qualidade, pois implantada no tecido lesado ela se diferenciaria em células específicas do mesmo tecido, recuperando-o. É certo que o seu controle de diferenciação ainda não está completamente estudado, pois em diversos estudos feitos deu-se a formação de teratomas (tecidos não funcionais anômalos). Portanto, a pesquisa com esse tipo celular é de grande importância para a conclusão sobre o processo de diferenciação quando essas células são implantadas em tecidos hospedeiros.
Diferentemente do que foi carreado aos autos quanto às células-tronco adultas, não há dados científicos a mostrar poderem elas ser utilizadas para que se transformem em neurônios, o que é necessário para que se tenha o tratamento de doenças denegerativas. O seu aproveitamento é assegurado em tratamentos para doenças do sangue, como leucemia e talassemia, sendo comuns os procedimentos que delas se valem para a recuperação de músculo e ossos. Com mais de três décadas de pesquisa, as células-tronco adultas são utilizadas frequentemente nos procedimentos voltados à renegeração daqueles tecidos. Aqui no Brasil, a Rede Sarah, por exemplo, utiliza célula-tronco adulta mesenquimal para o reparo de tecidos que acometem o aparelho locomotor, ossos e músculos há mais de dez anos. Mas elas não se transformam em neurônios, portanto não servem para reabilitação de problemas neurológicos como lesão cerebral, medular (paraplegia, tetraplegia) e doenças neurodenegerativas (como, por exemplo, mal de Alzheimer, Parkinson, miopatias, neuropatias periféricas, dentre outras).
A alegação, portanto, de que haveria desnecessidade de continuação das pesquisas com células-tronco embrionárias, para se dar cumprimento aos princípios e regras constitucionais relativas ao direito à saúde e à dignidade da vida humana, não tem embasamento científico.
De resto, cumpre realçar que a lei em causa não está excluindo a utilização das células-tronco adultas em pesquisa e, nesse caso, até mesmo nas terapias já conhecidas e em outras novas, que possam vir a sê-lo. Não se cuidam de linhas de pesquisa e utilização em tratamento que se excluam as que se referem às células-tronco adultas e às células-tronco embrionárias. Antes, elas devem ser auxiliares para o benefício de quem necessite do tratamento com que pode ser acudido o doente conforme o seu caso e a sua necessidade.
11. Tem-se, na peça inicial da ação, que “a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação … a vida humana é contínuo desenvolver-se…estabelecidas tais premissas, o artigo 5º e parágrafos, da Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005, por certo inobserva a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião é vida humana e faz ruir o fundamento maior do Estado democrático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana…”.
12. Quanto a ser a utilização de células-tronco embrionárias uma forma de violação do direito à vida, talvez conviesse se partir do que significa a violabilidade e o seu contrário, que é vedado constitucionalmente em relação ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput, da Constituição brasileira[1]).
Violar tem o sentido de infringir com violência, transgredir ou ofender o que posto pelo direito. A inviolabilidade do direito à vida, que o Procurador-Geral da República entende estaria sendo descumprido pelo art. 5º e parágrafos da Lei n. 11.105/2005, não pode ser interpretado a partir da idéia de direito absoluto. Todo princípio de direito haverá de ser interpretado e aplicado de forma ponderada segundo os termos postos nos sistema. Como acentuado pelo eminente Procurador-Geral da República em sua petição, dignidade humana é princípio, e esse se aplica na ponderação necessária para que o sistema possa ser integralmente acatado. Mesmo o direito à vida haverá de ser interpretado e aplicado com a observação da sua ponderação em relação a outros que igualmente se põem para a perfeita sincronia e dinâmica do sistema constitucional. Tanto é assim que o ordenamento jurídico brasileiro comporta, desde 1940, a figura lícita do aborto nos casos em que seja necessário o procedimento para garantir a sobrevivência da gestante e quando decorrer de estupro (art. 128, incs. I e II, do Código Penal).
Comentando aquelas normas penais (referentes ao aborto terapêutico e ao aborto necessário), acentuava Nelson Hungria que “o aborto terapêutico foi resolvido pelo nosso legislador penal com critérios de política criminal, e não com princípios da religião católica. Trata-se de um caso especialmente destacado de ‘estado de necessidade’. … Muito antes da Reforma, quando a religião católica era a religião do Estado e não sofria contrastes, já o direito secular não vacilava em admitir a impunidade do aborto terapêutico. A palavra de Santo Tomás de Aquino, de que innocentes nullo pacto occidere licet, não teve repercussão na lei social, que é editada para o plano terreno, e não para a Civitas Dei. Do ponto de vista humano-social, é despropósito sacrificar a gestante e o feto, quando aquela pode ser salva com sacrifício deste. Semelhante absurdo não passou despercebido ao padre Agostinho Gemelli, o maior sábio que a Igreja possui na atualidade, e no Congresso Obstétrico reunido em Milão, no ano de 1931, explicou ele, interpretando a encíclica Casti Connubit, que era permitido o aborto indireto, isto é, conseqüente à ministração de meios terapêuticos sem intenção positiva de eliminar o feto, ainda que este venha a morrer ou ser expulso prematuramente. Ora, esse apelo ao aborto indireto é apenas uma acomodação com o céu, um expediente ardilosamente excogitado para conciliar escrúpulos religiosos com a imperativa necessidade prática. Tanto vale querer um resultado quanto assumir o risco de produzi-lo” (Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. V, p. 307/8).
De pronto se registre que o presente caso nada tem a ver com o aborto, que é interrupção da gravidez. Na hipótese prevista na lei em foco, não há gravidez, logo não se há cogitar, sequer longiquamente, da questão do aborto. A citação aproveitada acima, portanto, tem o condão exclusivo de demarcar o estatuto jurídico-constitucional do direito à vida e sua aplicação a situações diferentes.
A inviolabilidade do direito à vida constitucionalmente positivada é, nos termos precisos de José Afonso da Silva “uma determinante normativa, como objeto da garantia, em que o artigo definido revela o conteúdo intrínseco dos direitos enunciados, valendo dizer que eles contêm em si a qualidade essencial de serem invioláveis. Não é a Constituição que lhes confere a inviolabilidade; ela reconhece essa qualificação conceitual pré-constitucional, e, por isso, preordena disposições e mecanismos que a assegurem…”(Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65).
Ao reconhecer a Constituição ser inviolável o direito à vida, expressa ela, em todo o seu texto e no contexto traçado em torno dos direitos fundamentais, outros direitos, como o da liberdade e o da saúde, que tornam possível a efetivação daquele primeiro. Há de se interpretarem todos eles para se concluir sobre a validade constitucional, ou não, do art. 5º e seus parágrafos, da Lei n. 11.105/2005.
O art. 5º, inc. IX, e art. 218, da Constituição brasileira e o art. 5º, da Lei n. 11.105/2005
13. Ao fixar a liberdade de pesquisar cientificamente, de informar e de ser informado sobre as pesquisas científicas e seus resultados, sobre usufruir deles quando positivos, segundo padrões éticos que se afinem com os princípios democráticos, a Constituição garante a efetivação do direto à vida digna, propiciando que vivam melhor aqueles que, por qualquer adversidade, não podem contar com a plena condição física, psíquica e mental de saúde. Põe-se na esteira destes princípios as normas contidas no art. 5º e parágrafos, da Lei n. 11.105, pelo que não há discordância entre o que neles contido e o que afirmado constitucionalmente.
A Constituição garante não apenas o direito à vida, mas assegura a liberdade para que o ser humano dela disponha liberdade para se dar ao viver digno. Não se há falar apenas em dignidade da vida para a célula-tronco embrionária, substância humana que, no caso em foco, não será transformada em vida, sem igual resguardo e respeito àquele princípio aos que buscam, precisam e contam com novos saberes, legítimos saberes para a possibilidade de melhor viver ou até mesmo de apenas viver. Possibilitar que alguém tenha esperança e possa lutar para viver compõe a dignidade da vida daquele que se compromete com o princípio em sua largueza maior, com a existência digna para a espécie humana.
14. Preceituam os arts. 5º, inc. IX, e 218, da Constituição brasileira:
“Art. 5º – …
IX. é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;…”
“Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.
§ 1º – A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências”.
A liberdade de expressão da atividade intelectual e científica é considerada um dos fundamentos constitucionais do art. 5º, da Lei n. 11.105/05. Bem assim o desenvolvimento científico e a pesquisa que podem servir à melhoria das condições de vida para todos. A compatibilização de tais regras com os princípios magnos do sistema, aí assegurada, sempre e em todo e qualquer caso a dignidade humana, dota-as do necessário fundamento constitucional, de modo a não se reconhecer nelas qualquer ponto de invalidade.
Não há violação do direito à vida na garantia da pesquisa com células-tronco embrionárias, menos ainda porque o cuidado legislativo deixou ao pesquisador e, quando vier a ser o caso, ao cientista ou ao médico responsável pelo tratamento com o que da pesquisa advier, a exclusiva utilização de células-tronco embrionárias inviáveis ou congeladas há mais de três anos. Se elas não se dão a viver, porque não serão objeto de implantação no útero materno, ou por inviáveis ou por terem sido congeladas além do tempo previsto na norma legal, não há que se falar nem em vida, nem em direito que pudesse ser violado.
Liberdade de pesquisa com células-tronco embrionárias e o direito à vida
14. Alguns dos amici curiae fazem a defesa da tese de inconstitucionalidade das normas questionadas pelo Procurador-Geral da República, com base no art. 4º do Pacto de São José de Costa Rica – tratado de direitos humanos firmado pelo Brasil –, segundo o qual “Artigo 4º – Direito à vida 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”
Se de um lado é garantido o direito à vida – e para os defensores da tese sustentada na peça inicial desta ação haverá inconstitucionalidade nas normas questionadas exatamente porque essa garantia vale desde a concepção e o embrião já seria vida garantida em sua inviolabilidade e não poderia, então, ser destruído -, de outro lado aquela norma pactuada internacionalmente há de receber interpretação a partir de todos os seus termos, nos quais se contém proibição de que alguém possa dela ser privado arbitrariamente.
Dá-se que a lei e o arbítrio são incompossíveis e, no caso agora analisado, não se cuida do segundo – arbítrio – exatamente porque os termos da norma legal apreciada firmam o sentido contrário a abuso levado a efeito com os embriões. Nem se há de afirmar que haveria arbítrio no aproveitamento de células-tronco embrionárias, porque ali se tem uma substância humana, que se propõe seja utilizada para a dignificação da vida daqueles que se podem ver tratados com os procedimentos a que podem dar ensejo as pesquisas feitas.
A sua utilização conforma-se aos cuidados e condições definidas na lei, pelo que de arbítrio não se há de falar aqui. O embasamento constitucional, neste caso, parece incontestável.
15. Dispõe o art. 199, § 4º, da Constituição brasileira:
“Art. 199 – …
§ 4º – A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.”
A célula-tronco embrionária, mencionada na Lei n. 11.105/2005, tem exatamente a natureza de substância humana. Logo, não apenas não haveria incompatibilidade entre a norma constitucional e a norma legal questionada, como ainda se poderia afirmar que a lei cuida de um fator humano que não mais pode ser utilizado para os fins a que inicialmente ele se destinou, pois os incisos I e II do art. 5º, daquele diploma legal, estabelecem que será permitido para pesquisa e terapia as células-tronco embrionárias inviáveis ou congeladas no período legalmente assinalado. Este período, de três anos de congelamento, registre-se, é aquele que determina um marco após o qual a viabilidade do procedimento implantatório da célula-tronco embrionária torna-se pequena. As clínicas de reprodução assistida dispõem de estatísticas, apresentadas em trabalhos divulgados cientificamente, a comprovar que após aquele período de três anos a chance de o embrião se viabilizar é baixa. Apesar de congelado, as membranas tendem a oxidar-se, não garantindo elas o resultado desejado.
A substância humana aqui considerada consiste no que se denominou embrião, ou célula-tronco embrionária, que se origina após a fecundação de um óvulo por um espermatozóide com a formação da célula ovo, que contém em seu núcleo 46 cromossomos, sendo 23 originários do espermatozóide e os outros 23 do óvulo. Essa célula, substância genética, é resultado da junção de outras duas células humanas e tem a finalidade de gerar todos os tecidos de um indivíduo adulto devido a sua pluripotencialidade.
Nessa condição, resultado do que acima asseverado, pode-se dizer que essa matriz humana há ser tida como uma das substâncias humanas que a Constituição permite possam ser manipuladas com vistas ao progresso científico da humanidade e à melhoria da qualidade de vida dos povos, respeitados, como é óbvio, os demais princípios constitucionais afirmados e que se compatibilizam com o quanto posto naquela norma constitucional.
O art. 225, § 1º, inc. II, da Constituição brasileira estabelece o princípio da solidariedade entre as gerações, como forma de garantir a dignidade da existência humana, quer dizer, não apenas a dignidade do vivente (agora), mas a dignidade do viver e a possibilidade de tal condição perseverar para quem vier depois.
Reza aquele artigo:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá – lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…)
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
Concebido como direito social fundamental do homem, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, está inserido em um contexto constitucional segundo o qual ao Estado brasileiro compete atuar de modo a assegurar a sua efetividade.
Para tanto, como assevera José Afonso da Silva, no § 1º do art. 225 da Constituição da República foram estatuídos “instrumentos de garantia da efetividade do direito enunciado no caput, [que] não se trata[m] de normas simplesmente processuais, meramente formais, pois, nelas, aspectos normativos integradores do princípio revelado no caput se manifestam através de sua instrumentalidade. São normas instrumentais da eficácia do princípio, mas também são normas que outorgam direitos e impõem deveres …” (Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 838).
As normas impugnadas na presente ação direta de inconstitucionalidade, dão cumprimento à determinação de que se preserve a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e se fiscalizem as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.
Daí a importância em se afirmar que as pesquisas e o tratamento devem pautar-se pelos princípios da necessidade, segundo o qual deve haver comprovação real de que o experimento científico a ser realizado no material genético humano é necessário para o conhecimento, a saúde e a qualidade de vidas humanas; da integridade do patrimônio genético, proibindo-se a manipulação em genes humanos voltada para mudanças na composição do material genético com o fim de melhorar determinadas características fenotípicas; da avaliação prévia dos potenciais e benefícios a serem alcançados; e, ainda, o princípio do conhecimento informado, que impõe a garantia de manifestação da vontade, livre e espontânea, das pessoas envolvidas, com a divulgação de informações precisas sobre as causas, efeitos e possíveis conseqüências da intervenção científica.
Dignidade humana e utilização de células-tronco embrionárias
16. Afirma-se que a dignidade da pessoa humana teria sido contrariada pelas normas legais em exame, porque a permissão do uso de células-tronco embrionárias, mesmo que inviáveis e congeladas há mais de três anos, agrediria o direito à vida digna, pois nelas vida já se contém.
Há que se cuidar de sempre e sempre respeitar e resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana. Nem se cogita do contrário em qualquer situação. Mas há que se compreender esse princípio para o fim de se esclarecer se estaria ele sendo agravado na espécie em pauta e como aplicá-lo em face das múltiplas possibilidades abertas, por exemplo, pela liberdade humana, que com as suas pesquisas científicas podem conduzir à melhoria de sua condição, o que é uma forma de dignificação da vida.
17. Todos os homens têm garantida a vida digna, tem-se na Constituição do Brasil (art. 1º, inc. III).
Diferentemente do texto colhido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Organização das Nações Unidas, de 1948 – em cujo art. 1o se contém que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” – a Constituição da República brasileira, de 1988, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes…”.
Todos os homens, expressão adotada pela Organização das Nações Unidas, significa cada um e todos os humanos do planeta, os quais haverão que ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e igualdade em dignidade e direitos.
O que se verbaliza, ali, é a certeza do direito que a condição humana assegura a todos os que compõem a sociedade dos homens. Contrariamente ao que a história perversamente demonstrou existir – homem versus homem, diferenciando-se um e outro em situação de submissão e de imposição de uns sobre outros, aos mais fracos imputando-se status infra-humano – a Declaração vem estatuir para todas as sociedades que o homem tem status fundamental jurídico e político que o faz ser dignificado em seus direitos fundamentais pela sua só natureza. A humanidade afirmada, no caso daquele documento, com o nascimento faz reconhecer-se e assegurar-se o status de liberdade e igualdade em dignidade e direitos a todos os homens.
A Constituição da República brasileira, que se refere não apenas a todos os homens, mas a todos os que traduzam a expressão do humano, deixa mesmo em aberto a questão do momento em que se titularizam os direitos fundamentais.
É que a Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma que todos os homens nascem livres. A liberdade e o direito à igualdade em dignidade e direitos afirma-se, segundo o quanto ali se expressa, com o nascimento.
É bem certo que as Declarações que se sucederam e se agregaram àquele primeiro documento da ONU estenderam a condição de humanidade e de segurança dos direitos fundamentais a momentos antecedentes ao nascimento (por exemplo, e em especial, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, da UNESCO, de 1998), mas o que se tem é que a titularidade dos direitos fundamentais não pode ser questionada em sua integridade e eficácia a partir da humana condição havida com o nascimento.
Não se tem, portanto, que a condição de ser humano não anteceda o nascimento, nem que o Direito não atente e garanta estes momentos anteriores ao nascimento. Mas busca-se afirmar que com o nascimento as legislações não podem questionar ou regulamentar a condição de cada um e de todos os direitos que a humanidade do ser lhe garante.
No Brasil, a titularidade do direito – que é de todos – havido em sua positivação no art. 5o da Constituição da República expressa a) que todos os homens, tal como se tem também na fórmula da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, são sujeitos dos direitos fundamentais; b) que não apenas aos seres humanos se estende o princípio da igualdade jurídica, mas até mesmo aos seres criados no direito (pessoas jurídicas); c) que não apenas os brasileiros e estrangeiros, previstos, expressamente, no dispositivo, são titulares dos direitos fundamentais assegurados pelo Estado nacional, mas que todos os seres humanos titularizam tais direitos, porque o artigo tem de ser considerado em sua sistematização e, no § 2o, do mesmo art. 5o, se contém que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Pode-se, portanto, afirmar que todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais.
O que é solucionado pelo texto constitucional brasileiro com o termo todos, com a qual se inicia a redação do art. 5o, da Lei Fundamental da República, no sentido da extensão ou da compreensão de todos os membros da família humana, não é bastante a resolver a questão posta na presente ação. Persiste a discutibilidade de seus termos quanto ao momento a partir do qual cada pessoa humana titulariza o direito, vale dizer, se se tem esta condição humana apenas a partir do nascimento, ou se se tem este estatuto antes mesmo deste fato.
Dota-se de importância este ponto porque se todos são os que compõem a humanidade desde a concepção do ser que passaria a potencializar a condição de pessoa humana, então o direito à vida afirmado constitucionalmente (e em documentos jurídicos internacionais declaratórios de direitos humanos) estende-se àquele instante inicial da existência e não pode ser descuidado pelo Estado e pela sociedade.
18. O ponto salientado na questão posta na petição inicial desta ação estaria, pois, na formulação expressa pelo Procurador-Geral da República, em se concluir se o embrião é pessoa e se, em face de tal qualificação, estaria vedada constitucionalmente a utilização dos embriões produzidos in vitro. De se observar que mesmo que seja negativa a resposta quanto à personalidade antes do nascimento não se desapega do Estado a condição de titular de obrigações em relação ao embrião e ao feto, nem se teria – a ser negativa a resposta àquela questão – que a humanidade não reconhecesse importância ou cuidados específicos e dotasse de estatuto jurídico próprio o embrião e o feto.
Mas a resposta àquela questão altera o tratamento do tema e a forma de se dar direcionamento normativo específico aos direitos reconhecidos aos diretamente interessados na questão da concepção, fecundação, gestação e nascimentos dos seres humanos. Diz-se, aqui, diretamente interessados, porque todos os seres do planeta são interessados em qualquer ser novo que desponta e potencializa uma existência. O que muda em cada sistema jurídico é tão somente a forma de se cuidar do tema.
Como o direito à vida não se dota, constitucionalmente, de conteúdo hermético ou identificado em sua integralidade pela expressão normativa, conferiu-se, no caso brasileiro, à sociedade a maturação do seu entendimento sobre questões relativas ao nascimento, como, por exemplo, a que se refere ao estatuto do embrião e do feto antes do nascimento, observadas, como é certo, as restrições, limites e garantias que a legislação de direito internacional estabelece, nos casos em que o Brasil seja parte no tratado ou signatário do acordo ou convenção. Ao legislador infraconstitucional conferiu-se a competência para estabelecer o cuidado com as pesquisas, incluídas aquelas que decorressem da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas. E é nessas que se incluem os embriões, como matrizes de que poderia decorrer a vida, mas que para essa não segue pela sua não implantação no útero de uma mulher, conforme antes enfatizado.
Para garantir a existência digna, o direito constitucional assegura os direitos que a liberdade humana constrói para a dignificação permanente das condições do viver. E é aí que as pesquisas científicas possibilitam não apenas o exercício da liberdade, mas o sentido da libertação, que as descobertas e criações podem trazer para todos os homens.
A utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana, constitucionalmente assegurada. Antes, valoriza-a. O grão tem de morrer para germinar. Se a célula-tronco embrionária, nas condições previstas nas normas agora analisadas, não vierem a ser implantadas no útero de uma mulher, serão elas descartadas. Dito de forma direta e objetiva, e ainda que certamente mais dura, o seu destino seria o lixo. Estaríamos não apenas criando um lixo genético, como, o que é igualmente gravíssimo, estaríamos negando àqueles embriões a possibilidade de se lhes garantir, hoje, pela pesquisa, o aproveitamento para a dignidade da vida. A sua utilização é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se o saber da vida, que com outros objetos se alcança. Conhecer para ser. Essa a natureza da pesquisa científica com células-tronco embrionárias, que não afronta, mas busca, diversamente, ampliar as possibilidades de dignificação de todas as vidas.
Escrevi em outra ocasião que a Justiça somente é passível de concretizar-se, tornar-se dia-a-dia de cada pessoa se a dignidade for atendida em sua plenitude em relação à humanidade. Afinal, toda forma de aviltamento ou de degradação do ser humano – incluídas aquelas que decorrem de dados da natureza doente – faz-se injusta com a aspiração humana de viver bem e tentar ser feliz. E toda injustiça é indigna e, sendo assim, desumana.
A dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque se firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo para realizar as suas vocações e necessidades.
Pode-se mesmo afirmar que, ainda que um dado sistema normativo não concebesse, em sua expressão, a dignidade humana como fundamento da ordem jurídica, ela continuaria a prevalecer e a informar o direito positivo na atual quadratura histórica. Mais ainda: pode-se mesmo acentuar que a dignidade da pessoa humana contém-se explícita em todo sistema constitucional no qual os direitos fundamentais sejam reconhecidos e garantidos, mesmo que não ganhem nele expressão afirmativa e direta. Tal como agora concebidos, aceitos e interpretados aqueles partem do homem e para ele convergem e a pessoa humana e a sua dignidade não são concebidos como categorias jurídicas distintas.[2] Logo, onde aquela é considerada direito fundamental, tida como centro de direitos, igualmente essa é aceita como base de todo o ordenamento e incluído como pólo central emanador de conseqüências jurídicas.
A dignidade distingue-se de outros elementos conceituais de que se compõe o Direito, até porque esse traz em si a idéia da relação e toda relação impõe o sentido do partilhamento, conjugação e limitação. Diversamente disso, contudo, a dignidade não é partida, partilhada ou compartilhada em seu conceito e em sua experimentação. Mostra-se no olhar que o homem volta a si mesmo, no trato que a si confere e no cuidado que ao outro despende. A dignidade mostra-se numa postura na vida e numa compostura na convivência. Por isso a referência comum, hoje, à dignidade na morte, no processo que a ela conduz e no procedimento que se adota perante o sofrimento que pode precedê-la. E se diz mesmo que a vida é justa, ou injusta, quando trata de tal ou qual forma alguém, sujeito a experiências que não são consideradas compatíveis com o que suporta o homem com dignidade.
Para Kant, o grande filósofo da dignidade,[3] a pessoa (o homem) é um fim, nunca um meio; como tal, sujeito de fins e que é um fim em si, deve tratar a si mesmo e ao outro. Aquele filósofo distinguiu no mundo o que tem um preço e o que tem uma dignidade. O preço é conferido àquilo que se pode aquilatar, avaliar até mesmo para a sua substituição ou troca por outra de igual valor e cuidado; daí porque há uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele é um meio de que se há valer para se obter uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser rendido por outro de igual valor e forma, suprindo-se de idêntico modo a precisão a realizar o fim almejado.
O que é uma dignidade não tem valoração; é, pois, valor absoluto. Pela sua condição sobrepõe à mensuração, não se dá a ser meio, porque não é substituível, dispondo de uma qualidade intrínseca que o faz sobrepor-se a qualquer medida ou critério de fixação de preço.
O preço é possível ao que é meio porque lhe é exterior e relaciona-se com a forma do que é apreçado; a dignidade é impossível de ser avaliada, medida e apreçada porque é fim e contém-se no interior do elemento sobre o qual se expressa; relaciona-se ela como a essência do que é considerado, por isso não se oferece à medida convertida ou configurada como preço.
De conceito filosófico que é, em sua fonte e em sua concepção moral, a princípio jurídico a dignidade da pessoa humana tornou-se uma forma nova de o Direito considerar o homem e o que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade política. Por força da juridicização daquele conceito, o próprio Direito foi repensado, reelaborado e diversamente aplicadas foram as suas normas, especialmente pelos Tribunais Constitucionais.
Na espécie em apreço, a célula-tronco embrionária põe-se, na legislação examinada, como uma dignidade, não havendo como lhe atribuir um preço. Ao contrário. A busca tão apaixonada dos pesquisadores pela manutenção de liberdade de pesquisa com ela é exatamente por ser cada uma delas insubstituível e, por isso, na compreensão da dignidade que lhe é dado conferir e realizar, põe-se ao cuidado do cientista para realizar o único fim agora para ela vislumbrada, não implantável no útero como se terá tornado. Até porque se assim não fosse não seria ela aproveitável para os fins previstos na lei.
19. Toda pessoa humana é digna. A humanidade mesma tem uma dignidade, contida na ética da espécie. Essa singularidade fundamental e insubstituível é ínsita à condição do ser humano, qualifica-o nessa categoria e o põe acima de qualquer indagação.
Como as práticas contemporâneas demonstram que o ser humano (e não apenas o ser já dotado de personalidade, vale dizer, a pessoa humana) pode ser objeto de comércio ou de interesse do mercado, coube ao Direito impedir que isto seja factível e exercitável pela negociação de embriões, pelo aluguel de úteros para fecundações tendentes a não se completarem em gestações, mas apenas para fornecer material humano, tecidos, órgãos ou substâncias serventes a pesquisas e estudos, muitas vezes levados a cabo para cumprirem interesses de lucro de empresas específicas.
20. Mas é atenta a tudo isso que legislação brasileira – em especial a de que agora se cuida – estabelece a necessidade de controle e fiscalização das pesquisas e procedimentos efetivados com células-tronco – adultas ou embrionárias – por órgãos e instituições responsáveis pela avaliação do cumprimento dos princípios éticos (art. 5º, § 3º, da Lei n. 11.105).
É bem certo que esse dispositivo não deixa suficientemente claro e afirmado o rigor do controle determinado naquelas normas para a constituição e o desempenho das atividades destes comitês de ética e pesquisa. Porém, não parece caber aqui uma declaração de inconstitucionalidade. Talvez se pudesse afirmar declaração de déficit de constitucionalidade, pois o atendimento do disposto no art. 225, § 1º, inc. II, que outorga ao poder público o dever de “fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” reclama maior severidade no regramento das formas de controle das instituições de pesquisa e dos serviços de saúde que as realizem.
Mas esta competência é conferida ao Congresso Nacional, no qual já tramita o Projeto de Lei n. …, de 2008, apresentado pelo Deputado José Aristodemo Pinotti, que busca estabelecer maior rigor legislativo na matéria. Naquele projeto se definem condições para a habilitação das instituições especificamente voltadas às pesquisas mencionadas no caput do art. 5º, da Lei n. 11.105/2005, e da autorização especial a ser concedida pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (concedida pela ara as pessquisas igor legislativo pretendido na matocessamento e transfus e seu prosseguimentCONEP). A aprovação daquele ou de outro projeto que restrinja e torne mais seguros os mecanismos de controle de ética nas pesquisas e nos tratamentos com células-tronco obviamente suprirão aquele déficit de constitucionalidade e tornarão mais seguros os direitos constitucionalmente afirmados.
Estes dados encarecem o resguardo pretendido quanto à observância dos princípios da responsabilidade ética que há de marcar tais pesquisas e, futuramente, as terapias que vierem a poder ser adotadas em benefício de doentes. Atende-se, aqui, não apenas o que se contém na Constituição brasileira, mas também ao quanto determinado em normas internacionalmente fixadas.
Assim é que a Declaração dos Direitos sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO estabeleceu, em seus arts. 10 e 11, que
“Artigo 10
Nenhuma pesquisa ou suas aplicações relacionadas ao genoma humano, particularmente nos campos da biologia, da genética e da medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos indivíduos ou, quando for aplicável, de grupos humanos”
“Artigo 11
Práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem de seres humanos, não devem ser permitidas. Estados e organizações internacionais competentes são chamados a cooperar na identificação de tais práticas e a tomar, em nível nacional ou internacional, as medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na presente Declaração.”.” (O direito à vida digna. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2004, os. 55 e segs.)
Como acentuado antes, a Lei n. 11.105/2005 cuidou de estabelecer limites e condições às pesquisas que impedem a desobediência de tais princípios, de modo a deixar a salvo de qualquer prática conduta que pudesse ultrapassar ou afrontar os direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.
21. O direito à vida, expresso ou não, nos textos fundamentais nos quais ele se articulava em tempos pretéritos, garantia a intangibilidade do existir (não da existência) mais que a garantia da vida em sua configuração ampla e, especialmente, em sua condicionante humana plena, íntegra e intangível, que é dada exatamente pela dignidade.
Os desastres humanos das guerras, especialmente aquilo a que assistiu o mundo no período da Segunda Grande Guerra, como antes mencionado, trouxe, primeiro, a dignidade da pessoa humana para o mundo do Direito, como uma contingência que marcava a essência do próprio sistema sócio-político a ser traduzido no sistema jurídico. Agora, a tecnociência amplia a dimensão do princípio e o enfatiza para a dignidade da espécie humana, dignidade que se faz, assim, da humanidade, de todos e de cada um dos homens.
Quando retorna com novo conteúdo e contornos fundamentais no Direito contemporâneo, o uso da palavra dignidade, referindo-se à pessoa humana, ganha significado inédito, qual seja, passa a respeitar à integridade, à intangibilidade e à inviolabilidade do ser humano, não apenas tomados tais atributos em sua dimensão física, mas em todas as dimensões existenciais nas quais se contém a sua humanidade, que o lança para muito além do meramente físico.
22. A Carta das Nações Unidas, de 1945, traz em seu preâmbulo a referência à dignidade da pessoa humana, afirmando-se que “nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, assim como nas nações grandes e pequenas…”.
Em idêntica linha, a Declaração dos Direitos do Homem elaborada pela ONU, em 1948, inicia o seu preâmbulo afirmando que “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo…”. Mais uma vez, pois, põe-se no frontispício de uma declaração o valor que enuclea a idéia mesma de justiça própria e inafastável numa convivência política.
E no art. 1o daquela Declaração se tem que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade”.[4]
A dignidade da pessoa humana passa a ser, pois, encarecida sobre qualquer outra idéia a embasar as formulações jurídicas do pós-2a Grande Guerra e acentua-se como valor supremo, no qual se contém mesmo a essência do direito que se projeta e se elabora a partir de então.
Sendo valor supremo e fundamental, a dignidade humana é transformada em princípio de direito a integrar os sistemas constitucionais preparados e promulgados, alterando-se, com essa entronização do valor e a sua elevação à categoria de princípio jurídico fundamental, a substância mesma do quanto constitucionalmente construído.
Como a Declaração dos Direitos do Homem da ONU tornou-se vertente de muitos dos textos constitucionais subseqüentes na parte relativa àqueles direitos, foram eles formulados de maneira a expressar, tal como ali se fizera, aquele enunciado como princípio fundante dos direitos fundamentais e da própria ordem política.
23. Ultrapassou-se, assim, o direito à vida com o conteúdo que se adotara desde os textos constitucionais setecentistas, reformulando-se e fortalecendo-se essa definição jurídica, agora sob o influxo de um núcleo de direito muito mais amplo do quanto antes se tivera.
O limite positivo e negativo de atuação do Estado e das autoridades que o representam passou a ser base de todas as definições e de todos os caminhos interpretativos dos direitos fundamentais, a partir do entendimento ali esposado e tornado de acatamento obrigatório porque constituído em norma-princípio matriz do constitucionalismo contemporâneo, exatamente o da dignidade da pessoa humana.
Aliás, o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se, então, valor fundante do sistema no qual se alberga, como espinha dorsal da elaboração normativa, exatamente os direitos fundamentais do homem. Aquele princípio converteu-se, pois, no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana estampado nos direitos fundamentais acolhidos e assegurados na forma posta no sistema constitucional de cada povo.
24. A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana não retrata apenas uma modificação parcial dos textos fundamentais dos Estados contemporâneos. Antes, traduz-se ali um novo momento do Direito Constitucional, o qual tem a sua vertente no valor supremo da pessoa humana considerada em sua dignidade incontornável, inquestionável e impositiva é uma nova concepção de Constituição, pois a partir do acolhimento daquele valor tornado princípio em seu sistema de normas fundamentais, mudou-se o modelo jurídico-constitucional que passa, então, de um paradigma de preceitos, antes vigente, para um figurino normativo de princípios.
Antes, estabeleciam-se modelos de comportamentos impostos ou defesos para a ação do Estado e para a conduta dos indivíduos. Tais modelos continham-se nos preceitos constitucionais que os estabeleciam de maneira contingente. Agora, estatuem-se princípios que informam os preceitos, constitucionais ou legais, a partir dos quais e para a concretização dos quais se dão a realizar os fins postos como próprios pelo povo no seu sistema fundamental. Transformada a formulação básica da Constituição, tem-se como critério de interpretação a finalidade que o povo busca concretizar com a adoção do sistema positivo.
25. A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana modifica, assim, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda a elaboração do Direito, porque elemento fundante da ordem constitucionalizada e posta na base do sistema. Logo, a dignidade da pessoa humana é princípio havido como superprincípio constitucional, aquele no qual se fundam todas as escolhas políticas estratificadas no modelo de Direito plasmado na formulação textual da Constituição.
No inciso III do art. 1º da Constituição brasileira, ele é posto como fundamento da própria organização política do Estado Democrático de Direito nos termos do qual se estrutura e se dá a desenvolver, legitimamente, a República Federativa do Brasil.[5] A expressão daquele princípio como fundamento do Estado brasileiro significa, pois, que esse existe para o homem, para assegurar condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins; que o seu fim é o homem, e esse é fim em si mesmo, quer dizer, como sujeito de dignidade, de razão digna e superiormente posta acima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado. É esse acatamento pleno ao princípio que torna legítimas as condutas estatais, as suas ações e as suas opções.
Mais que à pessoa humana, os sistemas constitucionais e as declarações internacionais de direitos humanos, nas últimas décadas, passaram a considerar a dignidade da espécie humana como princípio. Quer dizer, o conteúdo daquele princípio estendeu-se para além do indivíduo e a intangibilidade e indisponibilidade da vida passaram a considerar cada um e todos, como antes realçado.
Daí que relativamente às pesquisas e aos procedimentos médicos da embriologia ou dos tratamentos de doentes deles dependentes, a ética e o direito passaram a considerar o princípio da dignidade humana, de cada um dos diretamente interessados e do seu enlaçamento a todos os outros que convivem na mesma aventura humana. E até mesmo para os da espécie que vierem depois.
A espécie humana é agora constitucionalmente tomada em sua integralidade, pelo que alguns direitos fundamentais são considerados em sua potencialidade, quer dizer, em relação aos efeitos que poderá carrear para as gerações futuras (neste sentido o art. 225, caput, da Constituição da República brasileira, por exemplo; no plano do direito internacional, art. 1o, da Declaração Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos; também o item 6 da Declaração da Conferência de ONU no Ambiente Humano, de Estocolmo, de 1972, dentre outros).
A espécie humana há que ser respeitada em sua dignidade, manifestada em cada um e em todos os homens, pois a condição digna de ser membro desta espécie toca todos e cada qual dos que a compõem.[6] Por isto é que as Constituições mais recentes mencionam a humanidade como o ponto que se busca atingir no respeito aos direitos.
Significa que o princípio constitucional da dignidade humana estende-se além da pessoa, considerando todos os seres humanos, os que compõem a espécie, dotam-se de humanidade, ainda quando o direito sequer ainda reconheça (ou reconheça precariamente, tal como se tem na fórmula da Convenção Nacional de Ética francesa de pessoa humana em potencial) a personalidade. É o que se dá com o embrião e com o morto, que não tem as condições necessárias para titularizar a personalidade em direito (pelo menos em todas as legislações vigentes, hoje, no mundo), mas que compõem a humanidade e são protegidos pelo direito pela sua situação de representação da humanidade.[7]
Daí a adoção pelos sistemas jurídicos contemporâneos, aí incluído o brasileiro, do princípio da solidariedade entre gerações, que impõe a uma geração que ela se comprometa com quem vier depois (art. 225 da Constituição brasileira).
A expressão constitucional da dignidade da espécie humana é o realce mais óbvio e denso daquele princípio, que se faz mais amplo do que a vida humana digna (daí porque algumas Constituições, como a brasileira, referem-se à existência digna), chegando a ser observado antes que haja a vida livre (dotada de autonomia, o que o embrião e o feto não têm) e depois que a vida já se fez passar, mas que pode permanecer como substrato jurídico para a tutela por meio de utilização de órgãos que vivem em outros e até mesmo quando o cérebro pára e o coração persiste em suas batidas.
Daí também porque o saber científico que somente poderá atingir resultados concretos em benefício da espécie humana se persistir em sua labuta, de maneira livre e responsável, compõe o complexo de dados que tornam efetiva a dignificação do viver e, portanto, a sua garantia de continuidade não agride, tal como posto nas normas em foco, antes permite que se venha a realizar o princípio constitucional.
26. Intangível e inviolável, a dignidade humana não permite desconhecer o que a liberdade pode possibilitar em termos de dignificação do homem. E por isso mesmo é que, também em ocasião anterior, salientei que “como o direito não pode deixar de considerar o direito à vida digna como o direito fundamental excelente, aquele que se sobrepõe axiologicamente a qualquer outro e que informa o sistema constitucional e infraconstitucional de modo determinante em toda a sua extensão, não se há de desconsiderar a bioética para o cuidado normativo dos novos realces a serem dados aos princípios que estão na base da concretização daquele direito, a saber, o da liberdade, o da igualdade e o da responsabilidade. As questões biomédicas tangenciam, assim, diretamente, o princípio da dignidade humana porque consideram o homem em seu físico e em sua psique, pelo que a proteção dos direitos humanos há que lhe conformar a quadratura normativa.
Da normatividade que a bioética patrocinou, desde o início dos anos 70 com esta denominação e compreensão objetiva, até o domínio jurídico da matéria, houve uma trajetória que fez entronizar o tema das questões morais do direito à vida digna nos textos normativo-jurídicos e na doutrina, tendo conduzido alguns doutrinadores a apelidarem mesmo, novidadeiramente, de biodireito o tratamento sistêmico da matéria e a sua aplicação.[8]
Bioética e biodireito têm o seu fundamento na Constituição. É a constitucionalização do direito à vida e a ênfase no princípio matricial e substantivo da dignidade humana que asseguram o fundamento da intangibilidade, da sacralidade, da inviolabilidade e da responsabilidade da vida do ser humano. É este fundamento que haverá de ser considerado pelas normas, doutrinas, decisões jurisprudenciais e práticas de qualquer natureza (incluídas as biomédicas particulares) que atinem à vida humana.
A utilização das células-tronco embrionárias, não aproveitadas no procedimento de implantação, travada assim para a sua potencial transformação em vida futura de alguém, poderá ter o destino da indignidade, que é a sua remessa ao lixo. E o mais nobre e o mais grave: lixo de substância humana. O seu aproveitamento, guardado o respeito às condições afirmadas na legislação enfocada, permite a dignificação da célula-tronco embrionária, que não será então descartada, antes, será transformada em matéria dada à vida, se bem que não ao viver.
27. Reafirme-se que a liberdade, princípio constitucional por excelência, inerente à vida digna, não é um gesto ou um momento, mas um processo.
A biomedicina há de se comprometer mais do que com a liberdade, com a libertação do ser humano. Sem a possibilidade de pesquisar e transformar para melhorar o homem em suas condições de fragilidade e de dor, o homem seria um ser dado à escravidão de sua própria prisão física, psíquica e mental. O que a liberdade de saber, que se expressa na liberdade da pesquisa, garante é a possibilidade de libertação do homem de seus limites e a regeneração não apenas de suas condições físicas, mas a recuperação de condições que o dignifiquem em seu status de membro da família humana, com a qual tem compromissos, especialmente o de continuar a viver para cumprir os seus papéis com os outros.
Se a pesquisa pode e quando a pesquisa chegará a resultados buscados com as células-tronco embrionárias talvez ainda dependa de um longo caminhar. O que não se há é deixar de lhe garantir o andar, porque cada passo dado pode ser em direção à melhoria e à dignificação da espécie humana, tudo nos termos dos valores que animam os princípios constitucionais.
E neste sentido é que concluo que a legislação posta aqui em questão não se desarvora da Constituição, nem se afasta do princípio da dignidade da pessoa humana.
O princípio da justiça, aliada ao da liberdade responsável do homem – no caso, em especial do pesquisador, do cientista assim como de qualquer outro ser humano -, fazem valer a autonomia e os benefícios que os resultados das pesquisas podem levar aos que mais carentes de seus resultados estejam.
Reafirmo, então, que o princípio da dignidade humana não se atém a quem seja ou não pessoa, mas o que é constitucionalmente garantido no sistema é o dever do Estado e da sociedade de criarem condições para uma existência digna, observados os limites da ética constitucional acolhida no sistema vigente.
À parte o que antes acentuei, de que as células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e inviáveis ou congelados há mais de três anos dos marcos temporais fixados na lei, serão destruídas se não forem aproveitadas na forma ali estabelecida, deve-se enfatizar que a dignidade informa o direito à existência (art. 170), pondo-se a claro que o direito pensa o futuro, não se apega ao passado; pensa o que se dá a ser, e não o que se põe para o não ser. As células-tronco embrionárias não utilizadas no procedimento para o que se deu a fertilização voltam-se ao não ser, a dizer, põem-se ao descarte e à destruição, pois é o respeito à liberdade do casal que assegura a opção pelo seu não uso ou a prática médica que aconselha o seu não aproveitamento.
Direito ao saber, direito de pesquisa, direito de se informar e de ser informado
27. Afirma o Procurador-Geral da República, em Memorial oferecido, que “a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º, da Lei 11.105, significa, tão somente, o impedimento de uma e única linha de pesquisa: aquela que se vale de embriões humanos. Permanece amplíssimo o horizonte de pesquisas com as chamadas células tronco adultas, nome esse, adultas, inadequado, visto que o cordão umbilical é fonte de pesquisa nessa diretriz”.
Todavia, duas observações cabem nesse passo: a primeira é a de que atalhar, embaraçar ou impedir qualquer linha de pesquisa, se jurídica e eticamente válida for, significa – aí, sim – um constrangimento constitucionalmente inadmissível ao direito à vida digna, à saúde, e à liberdade de pesquisar, de informar e de ser informado sobre as possibilidades que a vida pode vir a oferecer, a depender dos resultados científicos.
A segunda é a de que – conforme comprovam numerosos estudos expostos na audiência pública ocorrida no curso desta ação e nos trabalhos apresentados pelos interessados das duas correntes contrárias de pensamento sobre o tema aqui cuidado – a pesquisa com células-tronco embrionárias abre possibilidades não obtidas com qualquer outra, sequer com as células-tronco adultas, porque essas não dispõem das características de totipotência que naquelas se contém, como antes acentuado. A potencialidade terapêutica das células-tronco embrionárias decorrente da plasticidade que as caracteriza não há de ser impedida, porque se estaria a estancar o que sequer é plenamente conhecido nos resultados possíveis para a dignidade da espécie humana.
A pesquisa com células-tronco embrionárias não é certeza de resultados terapêuticos promissores. Mas a não pesquisa é a certeza da ausência de resultados, pois sem a tentativa não há a conquista no campo científico.
Também em outra ocasião acentuei o cuidado que há de se ter com as pesquisas científicas, a fim de que a ética não seja desrespeitada e, assim, a dignidade da espécie humana não seja ferida. Dizia então ser certo que a liberdade humana compreende a liberdade de pesquisas e de avanços tecnocientíficos, tais como os que estão se dando, com rapidez inédita, no campo da medicina. E tentar reprimir a pesquisa científica, que pode ser conduzida no sentido do benefício da humanidade, da descoberta de formas consagradoras de melhoria das condições de vida das pessoas, é tarefa não apenas inglória, mas também nefasta no que concerne à vedação dos caminhos que podem conduzir ao aperfeiçoamento e à melhoria das condições de saúde do homem. O medo que persiste é a desumanização das técnicas e das conseqüências de sua utilização para a humanidade. … Ao lado da dignidade humana, há que se enfatizar a responsabilidade de todos, uns em relação aos outros e em relação às gerações presentes e futuras, o que determina a busca de equilíbrio na equação liberdade de pesquisa/liberdade individual. A experimentação feita com o corpo da pessoa pode atingir a integridade humana que o faz um ser muito além do meramente físico. Os direitos humanos fortalecem-se, pois, como fator garantidor da humanidade contra a manipulação genética que pode eliminar a individualidade, a singularidade, a diversidade que se consagra na espécie humana e a torna viva, contínua e plural em sua dinâmica.
Daí a ênfase a ser posta no direito de obter informações, que podem ser conduzidas para o benefício das pessoas por meio das pesquisas levadas a efeito na forma legalmente prevista, a fim de que o saber para a vida não esgote o saber da vida.
A Constituição brasileira garante a toda pessoa humana o direito de se informar e de ser informado sobre o que diga respeito aos seus direitos. E em especial há de se reconhecer e garantir tal direito àqueles que estão em situação de sofrimento para além da dor de viver, que faz parte da aventura humana, e que podem ter a esperança de superar tal situação por novos conhecimentos científicos. Não se há negar o direito das pessoas de ver prosperarem as condições para que a tanto se chegue e que do melhor resultado possam os que carecem dele se aproveitar para submissão aos tratamentos que amainem as adversidades físicas, psíquicas ou mentais que provoquem o sofrer.
28. Nem se afirme que a Constituição impede que os doadores do material genético não disponham de autonomia para consentir sobre o aproveitamento das células-tronco embrionárias por delas não ser dono. Também não se pretenda que a “liberdade” daquela substância humana em estado de congelamento seja superior à daqueles que a ele deram origem e que verão, nas condições legalmente estipuladas, uma de duas alternativas: o descarte do material ou a sua utilização para o que poderá vir a ser o bem da vida, por meio da pesquisa e, quando sobrevierem os resultados científicos consolidados, do tratamento que a partir de então se terá.
As possibilidades vislumbradas nos resultados das pesquisas – com boas perspectivas de chegarem a bom termo – somente puderam chegar a esse estágio de momentos promissores porque até aqui houve a permissão de se prosseguir com liberdade e responsabilidade na busca de melhorias benéficas ao ser humano. Do que decorre que pode até ser que a discussão que aqui se põe possa ser superada por outras possibilidades até agora não vislumbradas. Mas isso somente a continuidade das pesquisas livremente levadas a efeito vai demonstrar, donde a imperiosidade de seu prosseguimento livre e responsável. Voltada à utilidade para o ser humano, dúvida não me fica dever prevalecer tal permissão legal quanto ao aproveitamento daquela substância humana em pesquisas e, quando o momento chegar, em tratamentos que tenham como base resultados científicos consolidados, ressalva feita, como antes anotei, a que não se prestem as pessoas a meras experimentações.
A importância deste debate está em que nele se enfatiza e se decide sobre a liberdade com responsabilidade ética da pesquisa científica, pois sem ela o ser humano poderia ter impedido o seu desenvolvimento e a melhoria de suas condições de vida. E é em nome dele que se há de assegurar a pesquisa científica livre, ética e responsável para a garantia da dignidade da vida. Tal como se põe na Lei cujas normas são questionadas, na forma apresentada pelo Procurador-Geral da República.
Conclusão
Indagava Norberto Bobbio se “a história, em si mesma, tem um sentido, a história enquanto sucessão de eventos, tais como são narrados pelos historiadores? A história tem apenas o sentido que nós, em cada ocasião concreta, de acordo com a oportunidade, com nossos desejos e nossas esperanças, atribuímos a ela. E, portanto, não tem um único sentido. … Concluo com Kant. O progresso para ele não era necessário. Era apenas possível. Ele criticava os ‘políticos’ por não terem confiança na virtude e na força da motivação moral, bem como por viverem repetindo que ‘o mundo foi sempre assim como o vemos hoje’. …Desse modo, retardavam propositalmente os meios que poderiam assegurar o progresso para o melhor. Com relação às grandes aspirações dos homens de boa vontade, já estamos demasiadamente atrasados. Busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder” (BOBBIO, Norberto – A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.64).
A ciência que pode matar, é certo, também pode salvar, é mais certo ainda. E se o direito ajusta o que a ciência pode melhor oferecer para que viva melhor àquele que mais precisa do seu resultado, não há razões constitucionais a impor o entrave desse buscar para a dignificação da espécie humana. Entendo que a utilização da célula-tronco embrionária para a pesquisa e, conforme o seu resultado, para o tratamento – indicado a partir de terapias consolidadas nos termos da ética constitucional e da razão médica honesta – não apenas não viola o direito à vida. Antes, torna parte da existência humana o que vida não seria, dispondo para os que esperam pelo tratamento a possibilidade real de uma nova realidade de vida.
Pelo exposto,
voto no sentido de julgar improcedente a presente ação, para considerar válidos os dispositivos questionados, a saber, o art. 5º e parágrafos da Lei n. 11.105/2005.
[1] Preceitua o art. 5º, caput, da Constituição do Brasil:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes…”
[2] “En France la majorité de la doctrine juridique continue à affirmer que la personne (humaine), c’est le sujet de droits. ‘C’est l’être à qui le droit objetctif accorde des droits subjectifs réunis en un patrimoine’. Or ‘l’individu humain n’est pas nécessairement sujet de droit. Il le drevient et il ne bénéficie de cette qualité que si elle lui est attribuée par le droit positif lequel peut en subordonner l’attribution aux conditions qu’il définit lui même… Si la remarque de Virally est incontestable en droit positif, elle signifie que le sujet de droits est une catégorie indépendante de la notion de dignité de la personnne humaine. Les droits n’en découlent pas, mais bien du droit positif qui résulte du bom plaisir du Prince, roi, assemblée, peuple ou dictateur. L’être humian-sujet de droit est un ayant-droit. La dignité n’a rien à voir dans ce concept. En positivisme strict, elle est strictement inutile. Le juriste est ainsi conduit à refuser le débat le plus fondamental de notre époque”. (BORRELLA, François . Le concept de dignité de la personne humaine. In PEDROT, Philippe . op. cit., p. 33)
[3] “Kant est le témoin par excellence de cette révolution copernicienne qui fait désormais tourner l’univers moral autour du sujet. Ce qui organise as réflexion morale, ce n’est pas la référence au bien commun, au bonheur mais la volonté pure como ‘principe suprême de la moralité’. … Dans les fondements de la métaphysique des moeurs, Kant met ainsi le principe de dignité ‘infiniment au-dessus de tout prix’.”(PEDROT, Philippe. Op. cit., XVI)
Fosse correto ou, melhor diríamos, aceitável aquele entendimento e ter-se-ia de considerar jurídico que o direito não tem como único e necessário fim o homem, que o poder não emana do povo, senão que da boa vontade do poderoso de ocasião. Todos estes dados, contudo, não são postulados, mas axiomas jurídicos.
[4] A Organização das Nações Unidas proclamou, também, em 9 de dezembro de 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, estabelecendo em seu artigo 3o que: "As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadão da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar uma vida decente, tão normal e plena quanto possível".
[5] Com base naquele princípio, conforme observado acima, o Direito formula as normas infraconstitucionais e os tribunais pátrios consideram todos os casos que tenham como fundamento a aplicação ou a sua negativa. Nesse sentido, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vem reforçando a fundamentalidade daquele princípio:
“STF – Pleno – HC nº 70.389-5-São Paulo; Rel. Min. Celso de Mello; j. 23.07.1994.
“A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana . A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete (enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva) um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade , a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969).”
“IF-114 / MT INTERVENCAO FEDERAL Relator: Ministro NERI DA SILVEIRA
Publicação DJ 27-09-96 p. 36154
Julgamento 13/03/1991 – Tribunal Pleno
EMENTA: – Intervenção Federal. 2. Representação do Procurador-Geral da República pleiteando intervenção federal no Estado de Mato Grosso, para assegurar a observância dos "direitos da pessoa humana", em face de fato criminoso praticado com extrema crueldade a indicar a inexistência de "condição mínima", no Estado, "para assegurar o respeito ao primordial direito da pessoa humana, que é o direito à vida". Fato ocorrido em Matupá, localidade distante cerca de 700 km de Cuiabá. 3. Constituição, arts. 34, VII, letra "b", e 36, III. 4. Representação que merece conhecida, por seu fundamento: alegação de inobservância pelo Estado-membro do princípio constitucional sensível previsto no art. 34, VII, alínea "b", da Constituição de 1988, quanto aos "direitos da pessoa humana". Legitimidade ativa do Procurador-Geral da República (Constituição, art. 36, III). 5. Hipótese em que estão em causa "direitos da pessoa humana", em sua compreensão mais ampla, revelando-se impotentes as autoridades policiais locais para manter a segurança de três presos que acabaram subtraídos de sua proteção, por populares revoltados pelo crime que lhes era imputado, sendo mortos com requintes de crueldade. 6. Intervenção Federal e restrição à autonomia do Estado-membro. Princípio federativo. Excepcionalidade da medida interventiva.
7. No caso concreto, o Estado de Mato Grosso, segundo as informações, está procedendo à apuração do crime. Instaurou-se, de imediato, inquérito policial…”
[6] É de Jürgen Habermas a lição segundo a qual: “Nos conceptions de la vie humanine antépersonnelle – et la manière que nous avons de nous y rapporter – constituent pour ainsi dire, pour la morale raisonnable des sujets des droits de l´homme, um environnement stabilisateur du point d´une éthique de l´espèce – um contexto d´enchâssement qu´il ne faut pas briser si lón veut éviter que la morale elle-même ne se mette à dérape … À cet égard, nous sommes appelés à distinguer la dignité de la vie humaine et la dignité humaine que le droit garantit pour toute personne – une distinction qui, d´ailleurs, se reflète dans la phénoménologie du rapport charge d´émotions et de sentiments que nous avons au morts.”(HABERMAS, Jürgen – L´avenir de la nature humaine.Paris: Gallimard, 202, p. 102).
[7] Ronald Dworkin salienta a sacralidade da dignidade da vida, construindo vasto e fecundo trabalho sobre o seu domínio, no qual expõe que “A segunda afirmação que se pode fazer mediante o uso da conhecida retórica é muito diferente: a vida humana tem um valor intrínseco e inato; a vida humana é sagrada em si mesma; o caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha movimento, sensação, interesses ou direitos próprios. … Se as grandes batalhas sobre o aborto e a eutanásia são realmente travadas em nome do valor intrínseco e cósmico da vida humana, como acredito que o sejam, então essas batalhas têm ao menos uma natureza quase religiosa, e não chega a surpreender que muitas pessoas acreditem que o aborto e a eutanásia sejam profundamente condenáveis e, ao mesmo tempo, que não cabe ao governo tentar estigmatizá-los com a força bruta das leis penais”(DWORKIN, Ronald – Op. cit., p.18).
[8] Começam a aparecer títulos de trabalhos sobre biodireito, acentuando-se neles o conteúdo pertinente ao cuidado jusprivatista do direito à vida em sua conotação biológica (o direito de escolher o momento da própria morte), o direito de ter, ou não, um filho em momento em que ele não é desejado, aguardado, o direito de dar um fim à própria vida, mesmo que para tanto se necessite de auxilio de terceiro, o direito de escolher em laboratório o filho que se deseja ter, dentre outros). O biodireito seria, na concepção dos que se valem deste termo, um ramo do direito civil. Afinal, o fundamento constitucional do direito à vida digna constitucionalmente protegido é a liberdade. E é no exercício dos direitos individuais livres que a pessoa leva a sua vida, expressando aqueles direitos da forma que melhor lhe pareça possível para se fazer feliz. Como o direito civil é que cuida do exercício particular do direito, daqueles que se exercem entre particulares, no espaço de sua vida privado, o biodireito seria uma via aberta a partir do cuidado com a vida sob aquela ótica privada.
Por isto é que, a partir da constitucionalização de alguns dos vislumbres do direito à vida, tem-se a situação do denominado biodireito em alguns recantos estanques do direito, pensando-se mesmo numa autonomia ou numa dogmática do biodireito. Ainda é cedo para tanto, mas é bem certo que da bioética ao biodireito já há um caminho palmilhado. Tão logo a legislação de um Estado, ou da normativização no plano internacional sobre os temas do direito à vida digna se põem, questões novas surgem a serem cuidadas pela doutrina e pela jurisprudência Em alguns Estados, como a França, por exemplo, autores costumam marcar até a data da chegada ao outro lado da ponte: da bioética ao biodireito, tal como se vê com a fala de Jean-Jacques Israel, segundo o qual “on est donc, depuis fin juillet 1994, passé de la bioéthique à um bio-droit” (ISRAEL, Jean-Jacques – Droits de libertes fondamentaux. Paris: Librairie General de Droit et de Jurisprudence, 1998, p. 365).
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