A verdade formal e a real têm relacionamento harmônico
5 de junho de 2008, 18h18
Os princípios jurídicos têm sido motivos de muitos debates, na contemporaneidade, especialmente após os excelentes trabalhos de Ronald Dworkin e Robert Alexy sobre o tema, trazidos inicialmente para o que se convencionou chamar de doutrina clássica da língua portuguesa por J. J. Gomes Canotilho e Paulo Bonavides. Sem dúvida, os princípios estão no centro das novas concepções sobre o fenômeno jurídico, derivadas do pós-positivismo, incluindo a incorporação deles no texto constitucional, seja de forma implícita ou explícita. Todos os ramos do Direito estão à mercê dessas novas concepções e o Direito Processual não é exceção, pois a doutrina e a jurisprudência continuam avançando sobre os princípios processuais, apesar da lentidão do legislativo quando do trato dessas questões — deixando “para depois da última CPI” as várias alterações que tramitam, ou melhor, dormitam, nas casas legislativas do Congresso Nacional.
Um princípio que mantém praticamente o mesmo conteúdo, inobstante todo avançar dos demais, é o da verdade formal ou do dispositivo probatório. Ainda hoje, sua melhor expressão é o brocardo latino quod non est in actis non est in mundo (“o que não está nos autos não está no mundo”), tendo a intenção de estabelecer os limites da prova utilizável pelo julgador para proferir sua decisão, ou seja, a prova constante dos autos. Ele indica que, apesar de tantas fontes de dados disponíveis, ainda mais depois do advento da internet, mensagens SMS, TVs online, a cabo e até digital, deve o magistrado, quando for decidir, ater-se às provas contidas, ainda que implicitamente, nos autos. Ele é sempre associado, em reverso, ao princípio da verdade real, mas entendê-los como contrários não corresponde à melhor técnica.
O princípio da verdade real, apesar dessa denominação, não guarda tanta sincronia com “a real verdade”, a verdade fática, objetiva ou que realmente ocorreu. Preferimos a denominação que de imediato dá sua noção: princípio da livre iniciativa probatória. Através dele, o magistrado não está obrigado a se satisfazer apenas com as provas trazidas ou solicitadas pelas partes, podendo assumir uma postura ativa na sua produção. Ele possui liberdade para determinar a vinda aos autos de documento que sabe existir ou presume a existência, de ouvir testemunha sequer apontada pelas partes, a realização de perícias não requisitadas, etc., desde que pertinentes ao fato. Também dispõe esse princípio de outros nomes, como: princípio da verdade material ou substancial, da investigação, instrutório ou inquisitório, estes últimos menos esclarecedores da sua finalidade.
Os princípios da verdade formal e real atuam em campos diferentes, não sendo um oposto ao outro. A verdade formal delimita a prova utilizada na racionalização da decisão e a verdade real permite trazer aos autos provas independentemente da vontade ou iniciativa das partes. Os momentos da aplicação desses princípios, não são os mesmos, também impedindo qualquer colisão entre eles, pois enquanto que a verdade real é utilizada nos momentos instrutórios do processo, a verdade formal é utilizada nos momentos decisórios.
Não faz sentido o magistrado decidir, utilizando-se do princípio da verdade real — ele nada tem a ver com a verdade fática, a não ser por propiciar ou facilitar a sua busca. Decidir em sintonia com a verdade real, seria o mesmo que encontrar numa sentença a seguinte frase surreal: “isto posto, apesar da prova dos autos indicar que o réu é culpado, sabendo o que eu sei e não está nos autos, absolvo-o”. Se algum magistrado se sente inclinado por fazer isso é por que não foi competente (em sentido não-jurídico) de realizar uma instrução correta, utilizando-se do princípio da livre iniciativa probatória, ou, noutra hipótese, deveria averbar a própria suspeição e sugerido seu nome como testemunha.
Já foi dito por muitos doutrinadores mais antigos que a verdade real seria própria do Direito Processual Penal e a verdade formal, do Processo Civil. Isso provavelmente já foi tido como verdade, por conta do caráter eminentemente publicista dos direitos tratados no ramo penal e a disponibilidade de que gozam boa parte dos direitos da esfera cível. Entretanto, aquela afirmação não mais corresponde à verdade e, dentre os motivos, podemos lembrar que o exemplo do parágrafo anterior sugere que a verdade formal deve, indubitavelmente, ser aplicada no Direito Processual Penal. E, ainda, o fato da verdade real estar invadido cada vez mais o âmbito do Processo Civil, fenômeno que se iniciou a partir dos direitos civis indisponíveis e se ampliam continuamente, cf. demonstra a jurisprudência:
PROCESSO CIVIL. Agravo no Recurso Especial. Iniciativa probatória do juiz. Perícia determinada de ofício. Possibilidade. Mitigação do princípio da demanda. Precedentes. — Os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhes aprouverem, a fim de firmar seu juízo de livre convicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do CPC. — A iniciativa probatória do magistrado, em busca da verdade real, com realização de provas de ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça. (AgRg no REsp 738.576/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T, j. em 18.08.2005, DJ 12.09.2005, p. 330)
Torna-se possível chegar à conclusão de que o princípio da demanda probatória, derivação do princípio da demanda (dispositivo), seria, ao menos na maioria dos casos, completamente suprimido pelo princípio da livre investigação probatória do magistrado. Somente concebemos como exceção quando, no curso de uma demanda de direitos totalmente disponíveis, as partes transigem, não mais sendo de interesse do (Estado-)juiz qualquer busca pelo que efetivamente aconteceu.
Toda verdade é relativa e diante da impossibilidade de se constatar efetivamente o ocorrido, deve o magistrado, utilizando-se da sua liberdade probatória, tentar trazer aos autos, ao menos, algo que conforme a sua noção ideológica obtida com as provas colacionadas (a verdade dos autos) com a realidade (a verdade objetiva), não podendo, obviamente, por conta dos deveres de efetividade e de razoável duração do processo, se estender demasiadamente na tentativa de diligência que sequer tenham indícios de obter um resultado proveitoso.
Ao final, quando da certeza de que coletou as provas possíveis aos autos e/ou que mesmo que existam outras, o resultado do processo não seria diferente do escolhido, deve julgar com a prova neles constantes.
Não há qualquer censura ao magistrado que dá o melhor de si e, apesar disso, absolve o réu por insuficiência de provas da autoria ou da materialidade ou, ainda, que julga improcedente uma ação cível, por não ter restado suficientemente provadas as afirmações da inicial e que dariam guarida ao direito buscado. A justiça perfeita é a divina e a honrosa tarefa do magistrado, mesmo sabendo que jamais a alcançará, por conta de suas incontáveis limitações, em especial pela ausência da onisciência, é apenas tentar aproximar aquela da pálida justiça dos homens.
Assim, a verdade formal e a real, apesar de não serem objetos de grandes evoluções em seu conteúdo, têm relacionamento harmonioso — ao contrário do outrora afirmado pela doutrina — e asseguram a sua grande importância no âmbito penal e cível, sendo tal noção interessante para o conhecimento do operador do Direito.
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