Saulo Ramos reescreve a história do Brasil em causa própria
27 de junho de 2007, 19h32
O livro Código da Vida do advogado Saulo Ramos é saudado pelo humorista Jô Soares, em sua contracapa, com uma frase do escritor francês Antoine de Rivarol, para quem o historiador e o romancista fazem entre si uma troca de verdades e de ficções. “Acho que esta citação foi feita pensando no seu livro”, disse Jô Soares. Faz sentido.
A pretexto de registrar suas memórias, Saulo Ramos, consultor-geral da República e ministro da Justiça no governo Sarney, misturou ficção e realidade para edulcorar sua biografia, elogiar-se e martirizar desafetos. Também reescreve episódios do qual participou dentro de uma ótica bastante peculiar. Mas contestada por seus protagonistas.
O advogado afirma ser o criador da fórmula da súmula vinculante, do Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), das leis de proteção ao deficiente físico e de ter introduzido no Brasil as leis e a preocupação com o meio ambiente. Sem ele, a Constituição brasileira seria um amontoado de besteiras e foi ele também quem salvou o arquipélago de Fernando de Noronha. Narra casos em que juízes foram a sua casa pedir ajuda para produzir sentenças e de ensinamentos dados por ele a ministros do STF e do STJ — embora o advogado praticamente não tenha atuado junto a esses tribunais, conforme os registros disponíveis.
Quem inventa é inventor
Saulo reivindica para si também a criação das seções de notas curtas que fazem sucesso em jornais. Afirma que foi na seção “Semanascópio” que ele escrevia na Tribuna de Santos que o Jornal do Brasil e a Folha de S.Paulo se basearam para instituir o Informe JB e o Painel. Não é bem assim.
Ele faz revelações espantosas: teria sido Fidel Castro quem preparou a morte de Che Guevara na Bolívia — ao mandar ao encontro do guerrilheiro uma mulher que, Fidel sabia, estava sendo perseguida pela CIA. Outra: Luís Carlos Prestes, para não ser preso, teria barganhado com a política a entrega de suas famosas cadernetas que acabaram por fundamentar o inquérito que indiciou 74 pessoas e que levou à condenação de 54 na primeira instância da Justiça Militar, em junho de 1966. Outro furo internacional: na briga com a Petrobras, Evo Morales, da Bolívia, “não afinou por temor ao governo brasileiro, mas porque os traficantes do Rio de Janeiro ameaçaram importar somente cocaína da Colômbia”.
Saulo, conhecido como o Spielberg da advocacia, inicia sua obra contando uma glória pessoal: como fez para enganar um policial rodoviário que o flagrou falando ao celular, enquanto dirigia a 100 quilômetros por hora na Via Anhangüera. É a primeira das muitas passagens em que o advogado se vangloria de ter ludibriado pessoas e a ética. Fica apenas uma dúvida. O episódio teria ocorrido na década de 80. Os telefones celulares só chegaram em São Paulo em 1993.
Outra situação complicada é a narrativa de uma reunião em que, então na Presidência da República, José Sarney debateu com os ministros uma proposta da equipe econômica do governo. A inflação corria na explosiva faixa dos 80% ao mês. O presidente eleito, Fernando Collor, e sua equipe davam entrevistas espantosas. O então ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, preocupado com o perigo do completo descontrole da economia, aventou a possibilidade de antecipar a posse do novo governo, a exemplo do que se fizera na Argentina.
Pela narrativa de Saulo, Maílson teria sido acusado de traição e o ministro do Exército à época, general Leônidas Pires Gonçalves, teria chegado a ponto de ameaçar sair no braço com o então ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações, general Ivan de Souza Mendes, que concordou com as preocupações de Maílson e seu colega do Planejamento, João Batista de Abreu.
Ao tomar conhecimento da versão, esta semana, Ivan de Souza Mendes riu bastante. “Esse Saulo é mesmo um trêfego”, afirmou, repetindo o adjetivo que costumava usar para definir seu antigo colega de governo. Maílson também rebateu: “Isso é invenção. Esses diálogos não existiram”. E lembrou que estava sentado ao lado de Leônidas e Ivan naquela reunião.
Leônidas foi além: “Esse cidadão está maluco”. O ex-ministro do Exército, dono de memória prodigiosa, refez o relato da reunião e reafirmou que “havia muita compostura e respeito nessas reuniões. Não havia a menor possibilidade de uma grosseria dessas”. De quebra, o general corrigiu outros relatos feito por Saulo. “Ele não está bom da cabeça”, concluiu.
Procurado, o senador José Sarney preferiu não fazer comentários a respeito do livro do amigo.
Exercício de leviandade
Os trechos mais perversos do panegírico que Saulo escreveu em sua homenagem são os que mencionam o ministro do Supremo Tribunal Federal, José Celso de Mello Filho. O advogado diz que, quando se ia examinar a validade do domicílio eleitoral de José Sarney no Amapá, Celso de Mello teria telefonado para avisar que só se encontravam no STF ele e o ministro Marco Aurélio. E que seria arriscado entrar com o pedido, já que Marco Aurélio, por ser primo de Collor, poderia complicar as coisas para Sarney. Na vida real, os onze ministros do STF encontravam-se na Corte naquele dia, conforme atesta a própria Ata de Distribuição de processos.
Mas o fato é que o pedido caiu nas mãos de Marco Aurélio, que deu a liminar em favor de Sarney. E relata Saulo: “Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura de Sarney.”
Corria o ano de 1990. No dia seguinte, Celso de Mello, na versão de Saulo, teria lhe explicado que “quando chegou minha vez, o presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu.” A explicação atribuída ao ministro foi que seu voto contrário se devia a uma notícia da Folha de S.Paulo, informando que Celso de Mello votaria a favor do presidente que o nomeou para o STF. Pela narrativa de Saulo, ele teria dito um palavrão ao ministro, batido o telefone e nunca mais falado com ele, certamente inconformado com a absoluta independência e integridade que o ministro Celso sempre demonstrou no exercício de sua função, como é notório e reconhecido pela comunidade jurídica do país.
Correções ao livro: os arquivos da Folha não mostram a tal notícia. Saulo Ramos, na própria publicação, cita outros diálogos posteriores com o ministro — sempre para ofendê-lo gratuitamente — sem contar que compareceu à posse de Celso quando este assumiu a Presidência do Supremo, em 1997.
Celso de Mello não foi o último a votar no caso mencionado. Ele era um dos mais jovens integrantes da Corte e, nessa condição, votava antes. Ele foi o terceiro a se manifestar, logo depois do relator, Marco Aurélio, e de Carlos Velloso — ambos favoráveis a Sarney. Celso votou contra, em voto longo e fundamentado, acompanhado por Sydney Sanches e Octávio Galotti, em momento no qual o resultado do julgamento estava longe de se definir.
Entre outras agressões ao ministro, Saulo alude à “tendência do ministro Celso de Mello em favorecer os poderosos”, no STF. Correção: levantamento feito para o Anuário da Justiça 2007, produzido pela equipe deste site, mostra, estatisticamente, que, em seus votos, nas questões que dividem empresas e consumidores, Celso de Mello vota com os consumidores; o Fisco leva a pior nos confrontos com os contribuintes; vota mais com empregados que com empregadores; com o cidadão, em desfavor do Estado; e é permanentemente garantista em relação aos direitos fundamentais.
Saulo Ramos confundiu franqueza com fraqueza. Bem poderia gabar-se de ter contribuído para a nomeação de um dos melhores ministros da história do STF. Em vez disso, usou seu livro para tentar comprometer a biografia de um brasileiro contra quem jamais se fez qualquer acusação e que é reconhecido e respeitado pela dignidade com que sempre se conduziu.
“Quem der crédito a tudo que o livro diz, facilmente verá que a maior e mais frutífera obra do autor foi apoiar a indicação de Celso de Mello para o Supremo Tribunal Federal”, afirma o advogado Arnaldo Malheiros Filho. “Pena que ele se arrependa de algo tão positivo. Celso de Mello se revelou um juiz constitucional de uma grandeza tão proeminente que agressões chulas não chegam nem perto de arranhá-lo. E esse testemunho público de que ele judica sem se dar ao compadrismo só pesa em seu favor”, conclui o criminalista.
Caçador de bagres
Saulo Ramos conta, triunfante, como conseguiu impedir a circulação do livro que um ex-mordomo de Roberto Carlos escreveu sobre o cantor. Outra tesourada conseguida por ele foi no livro de Adelaide Carraro, no capítulo que ela dedicara ao ex-presidente Jânio Quadros.
Ainda com Roberto Carlos, Saulo narra como enganou os diretores da gravadora do artista, na renovação de um contrato, dizendo que negociava o passe do cantor com uma outra empresa, a Basf. Confessa que vendia cargas de café em grão do interior de São Paulo, no porto de Santos, como se fossem do Paraná, já que o produto desse estado alcançava preço melhor. E que, quando foi convidado a redigir um pedido de Habeas Corpus, para ser assinado pelo advogado Pedroso Horta, em favor de Jânio Quadros, fez o que ele chama de “quase-molecagem”: citou como doutrina trechos de uma obra penal inexistente. O autor do livro citado: “o jurista Saulo Ramos”. Conta também, entre uma patifaria e outra, como fazia para barganhar cargos e favores quando estava no governo. “Aprendi a conviver com a minha consciência”, consola-se.
Aprendeu, de fato. Em meio aos trechos que sobraram no livro está o suicídio de uma jovem. Segundo Saulo, a moça matou-se por alimentar uma paixão não correspondida por ele. Com orgulho mal disfarçado, o escritor relata que, ao comparecer ao velório, foi enxotado pelos parentes a golpes de guarda-chuvas.
Não se pode negar originalidade nem bom humor ao escritor Saulo Ramos. Embora coerência e fidelidade aos fatos não seja seu forte. Afinal, nem ele próprio — que chega a se chamar de “caçador de bagres” escapa da sua língua: “Dizem que, quando voltou ao mundo, para castigar os homens, Deus mandou ao Egito a praga dos gafanhotos; e ao Brasil a praga dos advogados”. O advogado Saulo Ramos, parece, seria uma agravante dessa pena.
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