Entrevista: Clóvis Panzarini
22 de janeiro de 2006, 9h34
Para os especialistas a marca histórica é motivo mais de preocupação do que de orgulho. “O Estado precisa arrecadar muito porque gasta demais”, lamentou em entrevista à Consultor Jurídico o economista e ex-coordenador da Administração Tributária de São Paulo, Clovis Panzarini.
Para o economista também não é motivo de festa a carga tributária de 38% do PIB que faz do Brasil um dos campeões na matéria. “Na realidade, o Estado brasileiro custa apenas 33%”, afirma Panzarini. Os outros 5% a são arrecadados para pagar a farra de gastos do Estado no passado”.
O economista sabe bem do que fala. Durante 35 anos, trabalhou na Fazenda do Estado de São Paulo. Clóvis Panzarini é formado em Economia pela Universidade de São Paulo. Se especializou em Finanças Públicas e Tributação na Japan International Cooperation Agency, em Tókio. No final da década de 80, trabalhou como assessor especial da Comissão de Tributação, Orçamento e Finanças da Assembléia Nacional Constituinte. Hoje, aos 60 anos, é sócio da CP Consultores Associados.
Panzarini foi entrevistado, na sede da ConJur, em São Paulo, pelos jornalistas Adriana Aguiar, Aline Pinheiro e Maurício Cardoso. A entrevista teve ainda a participação especial do jornalista e advogado tributarista Raul Haidar.
Leia a entrevista
ConJur — Brasileiro paga muito imposto?
Clovis Panzarini — A carga tributária no Brasil é uma das mais altas do mundo. Mas o problema não está no tamanho da carga tributária, que é apenas uma conseqüência do tamanho do governo. Eu costumo comparar essa carga tributária com a taxa de condomínio. Não existe taxa de condomínio alta nem baixa. Existem custos a serem honrados altos ou baixos. Se os custos são altos, não adianta reduzir a taxa que, no mês seguinte, terá chamada extra. O mesmo vale para a carga tributária.
ConJur — Quanto do PIB brasileiro representa essa carga tributária?
Clovis Panzarini — Nossa carga tributária é de 38% do PIB. Na realidade, o Estado brasileiro custa 33% do PIB. Os 5% adicionais são a chamada extra, o superávit primário. Na prática, esses 5% representam aquilo que nós temos de contribuir a mais para pagar a farra fiscal do passado, quando os governantes se orgulhavam de gastar mais e arrecadar menos. O déficit de hoje é a dívida de amanhã.
ConJur — O Estado está conseguindo pagar sua dívida arrecadando esses 5% a mais?
Clovis Panzarini — Nós não estamos pagando nem os juros. O país custa 33% do PIB e o governo arrecada 5% a mais para pagar a dívida pública de R$ 1 trilhão. Só que os juros anuais são de 8%. Então, para a dívida parar de crescer, o superávit primário teria de ser de 8% do PIB. Com o superávit de apenas 5%, ficamos devendo 3%. Essa história de superávit primário é um discurso muito bonito, mas é mentiroso. Quando conseguirmos fazer a dívida parar de crescer, a relação dívida e PIB começará a cair, já que o PIB é crescente. Assim, poderemos baixar os juros e, consequentemente, o custo da dívida cairá. A taxa de juros é o chamado tiro no pé. O governo aumenta os juros para segurar a inflação, mas o grande devedor desse país é o próprio governo. Com isso, a carga tributária tem de ser aumentada para pagar essa dívida crescente por causa dos juros altos. No fim, quem paga essa conta sempre é o contribuinte.
ConJur — Qual é o peso da sonegação fiscal na carga tributária?
Clovis Panzarini — Essa é uma pergunta que é respondida de acordo com o humor do entrevistado. Já se falou que a sonegação representa 20%, 30%, 40%, 50% da arrecadação. Na realidade, sonegação é o submundo, não é registrada, e, por isso, cada analista tem a sua taxa. A sonegação também varia de estado para estado, de região para região, de setor para setor. Há setores em que a sonegação é de 70% a 80%. Em outros, é próxima de zero. Por isso, os estados estão concentrando sua massa de arrecadação em setores de mais fácil controle, como comunicação, energia elétrica e combustíveis. Esse três setores hoje respondem por 40% da arrecadação do país. A minha opinião é de que a arrecadação poderia aumentar em até 40% se não houvesse nem sonegação nem inadimplência.
ConJur — A taxa de sonegação de Imposto de Renda é alta?
Clovis Panzarini — Tanto o Fisco federal quanto o estadual estão se instrumentalizando de tal forma que está ficando cada vez mais difícil sonegar. Eu cito um exemplo de que forma o uso da informática está reduzindo a sonegação. Até o ano de 1995, a sonegação de IPVA no estado de São Paulo representava 80% da arrecadação. Isso porque, até 1994, o IPVA era pago da seguinte forma: o contribuinte ia até uma papelaria, comprava um formulário e contratava um despachante para preencher. Era o contribuinte quem dizia quanto devia ao Fisco, qual carro ele tinha. Além disso, ele dava o dinheiro para o despachante que, nem sempre, entregava para o governo. Isso era possível porque a base de dados da Secretaria da Fazenda não conversava com a base de dados do Detran. Hoje, com o cruzamento de dados entre a Fazenda e o Detran, a sonegação é quase igual a zero. Aquele que não paga não consegue licenciar o veículo. Até 1995, a arrecadação de IPVA era de R$ 500 milhões. Hoje, chega a R$ 4 bilhões. Claro que teve um aumento da frota de veículos, mas que representa apenas 30%.
ConJur — Para o senhor, a elisão fiscal é legítima?
Clovis Panzarini — Eu acho que sim. Entendo elisão fiscal como a busca do contribuinte pela fragilidade da norma para fazer economia tributária. Mas, existem no mercado aqueles chamados de planejadores tributários, que eu chamo de estelionatários tributários. São os vendedores de teses. Eles dizem: “Olha, tem uma tese nova. Joga a crédito tudo o que você puder e lá na frente a gente vê o que faz”. O contribuinte acredita, faz o que foi mandado, então o estelionatário pega o seu honorário e vai embora. Lá na frente a bomba estoura nas mãos do contribuinte de boa fé.
ConJur — Como o senhor vê a possibilidade da eliminação do IPI ou então sua fusão ao ICMS, para formar o IVA — Imposto sobre Valor Agregado?
Clovis Panzarini — Eu estenderia essa fusão a todos os impostos e contribuições sobre consumo — ICMS, IPI, ISS e PIS/Cofins. Hoje, o IPI tem pouca representatividade e, do total arrecadado, 58% é distribuído para os estados. A proposta de fusão dos impostos e da criação do IVA surgiu na Comissão Tripartite [de Reforma Tributária, formada no ano 2000, com representantes do governo federal, dos governos estaduais e da Câmara dos Deputados)], da qual eu participei representando o estado de São Paulo. Na ocasião, os estados tinham chegado a um consenso de que, para acabar com a guerra fiscal entre estados e municípios, o ideal era aplicar o princípio do destino. Essa é a única forma de acabar com a guerra fiscal. Não adianta mudar a legislação porque, na teoria, ela já é inconstitucional.
ConJur — O IVA teria caráter nacional?
Clovis Panzarini — O ICMS, por exemplo, tem natureza nacional. Ele não poderia nunca estar no nível estadual. O ICMS foi colocado no nível estadual em 1965 e funcionou bem até 1985, porque não existia federalismo. Nós vivíamos em um Estado unitário. Não existia guerra fiscal. A partir da abertura democrática, começou essa guerra. O ICMS é um imposto em que a decisão de um estado tem conseqüência na vida econômica de outro estado, e é por isso que dá confusão. Mas, hoje, acho politicamente impossível federalizar esse imposto. Mesmo assim, poderíamos fazer um grande IVA norteado por legislação nacional.
ConJur — Como o senhor vê a Reforma Tributária?
Clovis Panzarini — A proposta é um desastre. Ela não vai simplificar, mas tornar o sistema tributário extremamente complexo. Se for aprovada da forma como está sendo feita, cada contribuinte terá de cumprir burocracias determinadas pelos 26 estados mais o Distrito Federal. Teremos 27 legislações somadas. De repente, uma empresa de alta tecnologia de São Paulo terá de cumprir norma que hoje é imposta a um pescador artesanal do Amapá. Por isso, tenho muito medo da simplificação, que é o grande charme da Reforma Tributária. Quando eu começo a ler as notícias sobre essa PEC [Proposta de Emenda Constitucional], fico assustado porque existem armadilhas terríveis. Por exemplo, cada contribuinte que promoveu operação estadual haverá de se inscrever em tantos fiscos quantos forem os estados onde ele tem cliente e será fiscalizado pelos fiscos de todos esses estados.
ConJur — E isso não aumentaria muito o custo operacional do contribuinte?
Clovis Panzarini — Aumentaria infinitamente. Imagina só: pela PEC, os contribuintes terão de se inscrever nos 27 fiscos e serão fiscalizados por todos eles. Por outro lado, cada fisco terá de fiscalizar o Brasil inteiro. Além disso, se a padronização de alíquotas for aprovada da maneira como está, pelo teto, implicará em um brutal aumento da carga tributária.
ConJur — Mas existe espaço para aumento de carga tributária?
Clovis Panzarini — O espaço não existe, mas talvez o mercado se ajuste sonegando mais. O fato concreto é que os secretários terão de definir as alíquotas padrões e não aceitarão nivelar por baixo. Vamos pegar o exemplo do óleo diesel, que é o mais eloqüente. Em São Paulo, ele é tributado a 12%, em Minas Gerais, a 18%, e chega a até 25% em outros estados. Não precisa ser expert no assunto para imaginar qual será a alíquota padronizada do óleo diesel no Brasil. Os estados que cobram 18% não aceitarão jamais reduzir a alíquota de seus contribuintes para 12%. O mesmo vai acontecer com a energia elétrica, que tem alíquotas que variam de 18% a 30%. A tendência é sempre nivelar por cima.
ConJur — Como o estado de São Paulo conseguiu aumentar a arrecadação do ICMS, reduzindo a alíquota de diversos produtos na área têxtil e de couro, por exemplo?
Clovis Panzarini — Eu vou colocar um argumento novo. Na verdade, pouco se fez em termos de redução efetiva. Na área têxtil e de couro, não reduziu nada, simplesmente deslocou a responsabilidade do imposto. Se a indústria paga 12 e vale 18, esses seis pontos haverão de ser pagos pelo varejista, que repassará para o consumidor. O que o governo fez, na maioria dos casos, foi transferir para o setor varejista um pedaço da carga tributária. Claro que algumas reduções efetivamente ocorreram, como, por exemplo, louças e materiais sanitários. Mas são coisas pontuais. O resto foi mera deslocação de responsabilidade.
ConJur — Mas houve aumento na arrecadação pelo estado paulista?
Clovis Panzarini — O aumento é conseqüência do crescimento da economia e da modernização. A arrecadação cresceu porque a economia cresceu.
ConJur — Parte desse crescimento não teria sido também por causa daquela discutível forma de cálculo de ICMS, a chamada cobrança por dentro, que é feita nos outros estados também? O consumidor vê, na conta de luz, que a alíquota é de 25%, mas tem de pagar 33%. Isso não é injustiça?
Clovis Panzarini — Isso acontece com tudo, seja energia ou açúcar. No caso da energia elétrica, isso ficou mais transparente porque aparece na conta. Mas, se eu compro um par de sapatos, eu não estou pagando a alíquota de 18%, como é determinado, mas 21,96% (valor resultante da cobrança por dentro também). O consumidor não se dá conta disso porque não aparece na nota fiscal. Mas isso é assim desde janeiro de 1967, por determinação da lei do ICMS. Os estados, mesmo que quisessem, não poderia cobrar diferente. Isso está errado? Eu acho que sim. É um vício do regime. Em todo o PIB se cobra por dentro.
ConJur — Mas se está errado, por que os estados não eliminam a cobrança por dentro?
Clovis Panzarini — Os estados não podem alterar isso. Tem de ser corrigida a lei nacional. Essa forma de cobrança vem desde 1967. O governo militar criou isso para esconder a carga tributária. Cobrava alíquota de 15% por dentro porque ficou com vergonha de cobrar 17% por fora.
ConJur — O senhor é a favor de uma emenda constitucional que obrigue a explicação da carga tributária em todos os produtos?
Clovis Panzarini — Eu sou a favor sim, e também defendo que o imposto deveria ser cobrado por fora. Repito: a cobrança por dentro é feita porque o governo tem vergonha de dizer qual alíquota quer cobrar. Então, se o governo quer cobrar 33% de ICMS, ele cobra 25% por dentro. Poderia usar a alíquota de 25% para cobrar por fora. Mas a lei nacional do ICMS manda cobrar pode dentro, então os estados não podem dispor diferente. Eles podem baixar a carga tributária para 22%, por exemplo, mas não podem cobrar de maneira diferente da que mande a lei nacional. Eu acho que é totalmente irrelevante essa questão de cálculo por dentro ou por fora. Tem a ver com transparência, e não com carga tributária. Se o governo quer arrecadar 33%, ele fixa alíquota em 25%. Se ele quisesse arrecadar 25%, era só baixar para 20%.
ConJur — A substituição tributária viabiliza a recuperação de créditos inexistentes?
Clovis Panzarini — Pela concepção original da substituição tributária, o lançamento seria definitivo. Mas o Fisco começou a ir com muita sede ao pote, superestimar a margem presumida de valor agregado e aumentar artificialmente a carga tributária. Os contribuintes se rebelaram e acabou sendo aprovada a Emenda Constitucional 3, em 1993. A negociação foi difícil porque o que se pretendia na época era revogar o dispositivo que previa a substituição tributária. Ele foi mantido, mas ficou decidido que o que fosse cobrado a mais seria devolvido e o que fosse cobrado a menos seria pago depois.
ConJur — Cobrar na fonte não subverte a ordem natural do IVA?
Clovis Panzarini — Sem dúvida. Por isso, acho que a substituição tributária é absolutamente incompatível com o IVA. A devolução do imposto cobrado a mais atenuaria isso. É um mecanismo, mas mantém o imposto sobre as verdadeiras margens.
ConJur — Hoje, o motorista tem de pagar o IPVA em janeiro e licenciar o carro no meio do ano. Antigamente, o IPVA era cobrado ao longo do ano, de acordo com a placa do carro. Essa mudança não gera problemas financeiros para as empresas ou famílias que têm muitos carros? Além disso, não aumenta a burocracia para o contribuinte? Não seria mais razoável que o IPVA fizesse parte da burocracia do licenciamento?
Clovis Panzarini — Essa mudança ocorreu por causa da necessidade de caixa do governo.
ConJur — Mas quando esse mudança foi feita, lá na década de 80, a inflação era de 45%. Hoje, a inflação é baixa.
Clovis Panzarini — Mas não é uma questão de inflação. É questão de necessidade de caixa do governo no começo do mês. Isso também ocorre com o ICMS, que foi antecipado para o terceiro dia útil. O contribuinte, então, recolhe o imposto antes de receber a fatura do mês anterior. O mesmo acontece com o empregador, que paga o encargo social no segundo dia útil antes de pagar o salário, no quinto dia útil. Isso tudo decorre da necessidade de caixa do governo. Como é ele quem faz a lei, ele procura proteger o seu caixa. Todas essas discussões sobre a forma de cobrar, por dentro ou por fora, em janeiro ou em julho, são discussões periféricas. O que está por trás disso é a necessidade de financiamento do Estado. A ferida é justamente essa: fazer um novo pacto social. Todo o resto é periférico.
ConJur — O contribuinte paga imposto mas, ao mesmo tempo, não tem a contraprestação de serviços como escola e saúde adequados. Então, paga instituições particulares. Isso pode ser chamado de privatização do Estado?
Clovis Panzarini — É por isso que a carga tributária dói mais ainda. Nós temos um Estado que custa 33 % do PIB, e arrecadamos 38% do PIB paga pagar a farra fiscal do passado. Desses 33 %, só os inativos custam 8%.
ConJur — A Lei de Responsabilidade Fiscal teve algum efeito na redução dos gastos públicos?
Clovis Panzarini — Essa lei foi um dos grandes avanços dos últimos 10 anos. Em São Paulo, o governador Márcio Covas implantou essa lei em 1995, muito antes de ela existir. Eu diria que a regra surgiu de Covas, que determinou: só se gasta aquilo que se arrecada. A partir de 1995, em São Paulo, o governo não gastava mais do que arrecadava. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, os agentes públicos passaram a responder penalmente pelo desrespeito à norma. Por isso, hoje o governo pode fazer superávit para pagar a farra do passado.
ConJur — Mas continua gastando mal, já que os serviços públicos, no geral, não têm boa qualidade.
Clovis Panzarini — O estado gasta mal, os serviços públicos são de péssima qualidade e isso é o que torna a carga tributária mais dolorida. Como já dissemos, o contribuinte paga imposto, mas tem de pagar convênio de saúde, escola particular, e assim por diante.
ConJur — A falta de um código nacional de defesa do contribuinte possibilita a indevida autuação de contribuintes por policiais, quando a fiscalização é privativa de agentes fiscais?
Clovis Panzarini — Eu acho que sim. Essa ausência de uma lei nacional acaba ensejando uma série de distorções. Nesse ponto, o estado de São Paulo já avançou. Uma lei paulista, bem ou mal, traz alguma sustentação para o contribuinte.
ConJur — O que o senhor pensa sobre o teto de remuneração para agente fiscal? Têm fiscais que estão no cargo há mais de 20 anos e teriam direito a receber mais de R$ 20 mil, mas recebem apenas R$ 8 mil por causa desse teto. Isso não seria um desestímulo para o fiscal permanecer na carreira?
Clovis Panzarini — Esse teto simplesmente acabou com o plano de carreira. Com esse limite, os fiscais de rua têm uma remuneração total maior do que a dos dirigentes. O salário é igual para todo mundo, mas os fiscais de rua têm o auxilio transporte. Na medida em que o coordenador ganha uma remuneração final menor do que a dos fiscais recém contratados, acaba a hierarquia. Aí, ninguém quer mais ser dirigente, porque só tem responsabilidade. Não tem remuneração mais alta e nem é respeitado pelos subordinados.
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