Foro especial

Leia íntegra do voto do ministro Pertence sobre foro especial

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5 de outubro de 2005, 21h41

O Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a concessão de foro especial para ex-autoridades. O julgamento, no ultimo dia 15, aconteceu em Ação Direta de Inconstitucionalidade que questionava a Lei 10.628, de 2002.

A norma acrescentou os parágrafos 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal e estabeleceu foro especial para ex-detentores de cargo público, por ato de improbidade administrativa.

Para o ministro Sepúlveda Pertence, ao contrário do que ocorre com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o fim do mandato da autoridade acusada. E concluiu o ministro “Julgo procedentes as ações diretas e declaro a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º apostos ao art. 84 do Código de Processo Penal pela L. 10628/02”

Leia a íntegra do voto:

22/09/2004 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.797-2 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE

REQUERENTE(S) : ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CONAMP

ADVOGADO(A/S) : ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA E

OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

REQUERIDO(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – A L. 10.628, de

2002, alterou o art. 84 CPrPen., no qual inseriu dois parágrafos, do que resultou o teor seguinte:

“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.”

02. As duas ações diretas em pauta — ADIn 2.797, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público — CONAMP, com pedido cautelar, e ADIn 2.860, pela AMB — Associação dos Magistrados Brasileiros — não impugnam a nova redação do caput do art. 84 — que reconhecem cuidar-se de mera adaptação aos textos constitucionais posteriores ao Código —, mas questionam a constitucionalidade de ambos os parágrafos incluídos pela lei nova.

03. Depois de sustentar, à vista da alteração estatutária que promoveu, a sua qualificação em tese para a propositura de ações diretas e a satisfação, na espécie, do requisito da pertinência temática, aduz a petição da CONAMP quanto à inconstitucionalidade dos parágrafos atacados:

“Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao rol exaustivo de competências de cada tribunal, além de se arvorar, desastradamente, em intérprete maior da Constituição.

Com efeito, é cediço que constitui tradição vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a repartição da competência jurisdicional, máxime da competência originária para processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva.

Se assim é com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais regionais federais e aos juízes federais, também o é com relação aos tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição Federal, litteris:

"Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça."(realce da Autora).

Ora, definir é pôr limites e, se os limites da competência dos tribunais estão no texto constitucional, quer federal, quer estadual, não pode o legislador ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se poder

constituinte fosse.

Que o rol de competência dos tribunais é de direito estrito e tem fundamento constitucional trata-se de entendimento reiteradamente proclamado por essa excelsa Corte”.


04. Invoca precedente (Pet 693-AgR, Galvão), na trilha, frisa, da jurisprudência do Tribunal, e segue:

“Não pode, pois, a lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode ter sede constitucional.

(…)

Especificamente quanto ao § lº, ora impugnado, o legislador ordinário se arvora em intérprete do texto constitucional, no que diz respeito à própria competência dos tribunais, inclusive dessa Suprema Corte, dando-lhe interpretação divergente daquela já firmada por esse Tribunal Maior, consubstanciada no cancelamento da Súmula 394 …”

(…)

Ora, se o intérprete maior da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já decidiu, há quase um lustro, que o texto constitucional não contempla a hipótese de prorrogação do foro por prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta, não pode o legislador ordinário editar norma de natureza constitucional, como se esta tivesse o condão de compelir a Suprema Corte a voltar à interpretação, já abandonada, de uma norma da Constituição.

Já quanto ao § 2º, o legislador ordinário, a par de travestir-se em poder constituinte e, também em intérprete da Constituição, tal como quanto ao 1º, pretende revelar, ainda, poderes premonitórios ou servir-se de seu mister legislativo como forma de pressão sobre esse Supremo Tribunal Federal, pois o tema nele posto constitui questão que é objeto de julgamento em curso.

Assim, ambos os parágrafos ora impugnados ofendem não apenas o artigo 102, I; 105, I; 108, I e 125, § 1º, da Constituição Federal, mas também a independência e a harmonia dos poderes do Estado, cravado no artigo 2º da mesma Constituição Republicana”.

05. No exercício da presidência do Tribunal, no curso das férias, o em. Ministro Ilmar Galvão, após receber as informações da Presidência da República, despachou — f.107:

“Anteciparam-se à requisição de informações a Presidência da República e a Advocacia-Geral da União que, após argüir a ilegitimidade da Autora para ajuizar ação da espécie, por tratar-se de associação integrada, a um só tempo, por pessoas físicas e associações; e a ausência do requisito da pertinência temática — alegações que, a um primeiro juízo prelibatório, se revelam improcedentes —sustentam, em resumo, que as normas impugnadas não introduzem competência adicional alguma às constitucionalmente previstas para os Tribunais, cuidando-se de mera explicitação do sentido e alcance de tais competências, observado o princípio da hermenêutica constitucional da máxima efetividade das normas constitucionais, sem nada lhe acrescentar.

Por fim, sustentam a necessidade de processamento da ação pelo rito do art. 12 da Lei n.’ 9.868/99, para o fim de solução pronta e definitiva da relevante questão constitucional suscitada, providência que terá por efeito a dispensa da medida liminar, que foi pleiteada como meio de obviar a paralisação processual das ações em curso perante os juízos de primeiro grau como conseqüência de remessa dos respectivos autos aos Tribunais considerados competentes, quando, na verdade, tal paralisação configura exatamente o provimento acautelatório adequado à espécie, considerado que o periculum in mora, no caso, reside justamente no julgamento precipitado de tais ações por juizes que poderão vir a ser declarados incompetentes pelo STF, o que, no caso das ações de improbidade, poderá ocorrer com a conclusão do julgamento da Reclamação nº 2.138, em que os cinco primeiros votos colhidos apontam para esse resultado.

Na verdade, não está a depender da medida liminar pleiteada a conclusão do julgamento da Reclamação nº 2.138, nem tampouco pode ser considerada razão suficiente para a suspensão da eficácia da lei impugnada a provável remessa de milhares de ações da espécie para os diversos tribunais, com a interrupção de seu processamento, se não é outra a medida que está a recomendar-se, enquanto a relevante questão constitucional não é dirimida pelo STF.

Ante tais considerações, indefiro a providência cautelar requerida”.

06. Depois, o Senado Federal prestou informações

(f.112).

07. Repisam elas a argüição da ilegitimidade ativa da CONAMP — à base de precedentes que a negam às chamadas “associações de associações” e às chamadas “entidades híbridas” (ADIns 79-QO, Celso, RTJ 147/3; ADIn 2.180 – AgR, Néri, Inf. STF 224; ADIn 2.221-AgR Jobim, DJ 2.8.02).

08. No mérito, argumentam as informações do Senado, da lavra do Dr. Sérgio Lopes Fernandes – f. 117:

“O STF ao revogar a Súmula 394, entendendo que não haveria prorrogação da competência especial por prerrogativa de função, nada mais fez do que dizer que sem a prorrogação da competência especial aplicar-se-ia a legislação processual comum, ou seja, o Código de Processo Penal, que à época estabelecia como competente o juiz de primeiro grau. Mas, o Código de Processo Penal nessa parte foi alterado, e hoje ele prorroga a competência especial penal. E nada há de inconstitucional nisso.


A Constituição estabelece um mínimo de garantias para que os agentes políticos possam bem desempenhar suas funções, não podendo o legislador ordinário suprimir nenhuma delas.

Nada impede, porém, que o legislador disponha sobre o processo penal, mesmo que indiretamente amplie garantias constitucionais. E isso nada tem haver com interpretação da Constituição; trata-se apenas de uma opção do legislador, que é soberano no exercício de suas competências constitucionais”.

09. Seguiu-se o ajuizamento pela AMB da ADIn 2.860, que, na mesma linha da anterior, recorda o cancelamento da Súmula 394, para dela extrair a ilegitimidade de o legislador ordinário suprir a lacuna conseqüente, “ignorando decisão do Supremo Tribunal Federal, que repudiou o privilégio, com fundamento na exegese da própria Constituição”; e invoca Canotilho para quem “uma interpretação autêntica da Constituição feita pelo legislador ordinário é metodicamente inaceitável”.

10. Dada a identidade do objeto com a da ADIn 2.797, determinei a apensação dos autos para julgamento conjunto, considerando dispensáveis novas informações.

11. O então Procurador-Geral da República, em. Dr. Geraldo Brindeiro, opinou pela procedência parcial da ADIn 2.797, em longo parecer do qual extrato os passos mais relevantes – f. 121ss.

43. O § 1º viola o princípio da independência e harmonia dos poderes e usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal enquanto guardião máximo da Constituição, segundo o caput do art. 102. A lei neste ponto interpreta a Constituição, na verdade, revogando a exegese mais recente do Supremo Tribunal Federal e lembra o caso emblemático Marbury v. Madison da Suprema Corte Americana.

44. Aliás, como se sabe, toda a teoria judicial review começa com a inconstitucionalidade formal naquele caso, sob inspiração do Chief Justice MARSHALL, quando o Congresso Americano pretendeu, por lei, criar competência originária para a Suprema Corte relativa ao writ of mandamus. A competência originária daquela corte é somente a definida no próprio texto da Constituição e não em leis ("Statutes") do Congresso.

(…)

46. A decisão majoritária proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem no Inquérito nº 687-4, de que foi relator o eminente Ministro SYDNEY SANCHES, estabeleceu que "A tese substanciada nessa Súmula [394] não se refletiu na Constituição de 1988 acompanhando o relator os eminentes Ministros MOREIRA ALVES, OCTAVIO GALLOTTI, CELSO DE MELLO, MARCO AURÉLIO e, o então Presidente, CARLOS VELLOSO.

47. Não vejo, pois, como deixar de considerar que o § 1º do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido pela recentíssima Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, tenha afrontado a decisão do Supremo Tribunal Federal, que cancelou a Súmula 394, por maioria de votos, ainda que entenda, como entendo, ser correta a posição minoritária da Corte.

(…)

49. Há ainda inúmeras decisões da Suprema Corte dos EUA – a despeito de ser competência do Congresso Americano definir em lei a jurisdição das cortes federais inferiores — tendo como inconstitucionais normas legais restringindo o âmbito da competência em razão de decisões judiciais sobre matérias politicamente controvertidas (como aborto, ação afirmativa e outros) cujo mérito contrariam interesses e posições de facções eventualmente majoritárias no Congresso Americano (Vide Tinsley E.

Yarbrough, The Rehnquist Court and The Constitution, Oxford University Press, 2000).

50. Assim, é que deve ser declarado inconstitucional o § 1º, do art. 84, do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628/02, bem como a expressão "observado o disposto no § 1º”, constante do § 2º, in fine, por violar o art. 2º e o caput, do art. 102, da Constituição da República, na medida em que constituem afronta à exegese da norma constitucional (art. 102, I, b e c) adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao cancelar a Súmula 394 e expressamente estabelecer que a tese nela substanciada não se refletiu na Constituição de 1988.

51. É possível que o Supremo Tribunal Federal novamente reveja sua posição, com a nova composição da Corte (com os votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e do eminente Ministro GILMAR MENDES), inclusive no julgamento desta ação, restabelecendo em parte o entendimento anterior mediante a adoção de nova Súmula nos termos do voto do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE na citada Questão de Ordem. Se isso ocorrer, já serão os votos de cinco Ministros restando apenas um dos Ministros que já votaram na referida Questão de Ordem reconsiderar sua posição para aderir à proposta de nova Súmula.


Nesta hipótese, inexistindo incompatibilidade entre a norma legal e a interpretação do Supremo Tribunal Federal não se poderá considerá-la formalmente inconstitucional, por não mais se configurar confronto com o Judiciário, podendo ser convalidada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.”

12. Quanto à temática do § 2º questionado, o Procurador-Geral recorda o teor dos votos dos Ministros Maurício Corrêa e Gilmar Mendes, no julgamento inconcluso da Rcl 2.138, e argumenta:

59. O que o § 2º do art. 84, do CPP, introduzido pela Lei no 10.628, de 24 de dezembro de 2002, faz, na verdade, é reconhecer caráter penal (criminal) aos atos de improbidade administrativa. E isso pode o Congresso Nacional em tese fazer por ser a União Federal competente para legislar privativamente sobre Direito Penal (CF 88, art. 22, inciso I, c/c art. 48).

60. Não nos parece que a norma legal tenha aqui criado propriamente novas hipóteses de competência de Tribunais por prerrogativa de função, como sustentado na inicial. O que ela diz é que se o funcionário (por equívoco) ou a autoridade tem prerrogativa de foro em razão do exercício de função públicapara ser processado e julgado pela prática de crime comum (e isto obviamente já deverá estar previsto na Constituição), no caso de cometimento de ato de improbidade administrativa – a que se dá caráter penal – a ação de improbidade prevista na Lei no 8.429/92 será propostaperante o Tribunal competente”.

61. Não há falar, assim, na alegada violação do disposto nos arts. 125, § 1º; 102, I; 105, I, e 108, da Carta da República.

62. Creio, todavia (tal como, aliás, delineado nos votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e dos eminentes Ministros GILMAR MENDES, MAURÍCIO CORREA e ILMAR GALVÃO, proferidos no julgamento da mencionada Reclamação 2.138-6-DF, acompanhando o voto do Relator, o eminente Ministro NELSON JOBIM), concluindo sobre a caracterização de crime de responsabilidade em hipótese de suposto ato de improbidade administrativa praticado por Ministro de Estado, que não se pode – à luz da Constituição – dar a extensão que pretendeu dar à norma o legislador ordinário.

63. É que a improbidade administrativa é prevista no art. 37, § 4º, da CF 88 e nada leva a concluir pela norma lá inserta, o caráter penal que se pretende agora dar ao ato de improbidade. Pelo contrário, o seu caráter administrativo – e de Direito Administrativo – sobressai do próprio contexto constitucional em que é inserida a norma ao referir-se aos servidores públicos e aos princípios da administração pública.

64. Contudo, por existir também outra norma constitucional expressa definindo como crimes de responsabilidade os que atentem contra “a probidade na administração” (CF 88, art. 85, inciso V) é que penso ser possível atribuir tal caráter penal aos atos de improbidade administrativa desde que configurem tipicamente crimes de responsabilidade como previstos na Constituição e em lei federal.

65. Evidentemente somente há tais hipóteses relativamente a autoridades, que tenham foro por prerrogativa de função previsto no próprio texto da Constituição da República, para serem processados e julgados por crimes de responsabilidade pelos Tribunais competentes.

66. Não é o caso dos Governadores dos Estados e dos Prefeitos Municipais, em relação aos quais a Constituição de 1988 conferiu competência ao Superior Tribunal de Justiça e aos Tribunais de Justiça Estaduais, respectivamente, para processá-los e julgá-los por crimes comuns somente e não por crimes de responsabilidade (CF 88, art. 105, I, a, e art. 29, X). E o fez, aliás, coerentemente com o modelo federal, pois, não é competente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade. E mesmo na hipótese de crimes de responsabilidade de Ministros de Estado, somente é competente o STF se não forem conexos com aqueles da mesma natureza cometidos pelo Presidente da República (CF 88, art. 102, I, c, c/c art. 52, I)”.

13. Cita trabalho doutrinário do Dr. Aristides Junqueira — patrono da ADIn 2.797 —, no mesmo sentido de os atos de improbidade administrativa configurarem crimes de responsabilidade, para acentuar e concluir:

70. Assim, parece-nos que não poderia o Congresso Nacional aprovar e o Presidente da Republica sancionar lei definindo como crimes comuns todos os atos administrativos tipificados como de improbidade administrativa, trazendo como conseqüência a aplicação do foro por prerrogativa de função nos Tribunais, inclusive no STF.


71. A inconstitucionalidade do § 2º, pois, é a nosso ver parcial, sem redução de texto, para conferir interpretação conforme a Constituição (na linha dos cinco votos já proferidos na Reclamação no 2.138/DF), considerando aplicável apenas quando se trate de hipóteses de atos de improbidade administrativa configuradores de crimes de responsabilidade.

72. Ante o exposto, e pelas razões aduzidas, o parecer é, preliminarmente, no sentido do conhecimento da presente ação direta de inconstitucionalidade; e, no mérito, pela sua procedência em parte, para declarar a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, bem como da expressão "observado o disposto no § 1º", constante do § 2º, in fine, também acrescido pela mesma lei ao referido art. 84, salvo se o Supremo Tribunal Federal novamente reexaminar sua posição quanto ao cancelamento da Súmula 394, nos termos do item 51 acima; e ainda para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, conferindo interpretação conforme a Constituição ao mencionado § 2º, para considerá-lo aplicável apenas quando se trate de hipóteses de atos de improbidade administrativa configuradores de crimes de responsabilidade”.

14. É o relatório, a ser distribuído aos Senhores Ministros.

V O T O

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – (Relator): É certo que, na ADInMC 1.402, de 29.2.96, o Tribunal negou à CONAMP a qualificação de “entidade de classe de âmbito nacional”, para, nos termos do art. 103, IX, CF, propor ação direta de inconstitucionalidade.

16. Ficou vencido o relator, Ministro Velloso, que assinalou:

“As entidades que compõem a CONAMP (Confederação Nacional do Ministério Público) — confederação apenas no nome — porque se trata de uma entidade de classe — são entidades representativas de representantes de ministérios públicos. Além dessas entidades representativas, repete-se, a CONAMP, que se classifica expressamente como sociedade civil, é integrada por membros do Ministério Público da União e dos Estados, em exercício ou aposentados.

O fato de a entidade de classe se compor de sociedades civis representativas da classe e por pessoas físicas da mesma classe, não desvirtua, ao que penso, o caráter de entidade representativa de classe, tal como posto no inciso IX do art. 103 da Constituição.

Inegavelmente a CONAMP é uma entidade de classe, representativa da classe do Ministério Público, de âmbito nacional”.

17. O voto condutor do acórdão, do Ministro Maurício Corrêa, alinhou-se à jurisprudência dominante na Casa, que desqualifica para a iniciativa da ADIn as ditas “associações de associações (v.g., ADIn 1.580 , de 2.6.97 (QO), Corrêa; ADIn 1.159, 29.4.98, Galvão) —, ao que acrescentou o Ministro Ilmar Galvão a circunstância de a CONAMP admitir também a filiação direta de pessoas físicas, membros do Ministério Público.

18. Ausente daquele julgamento, minha tendência seria a de acompanhar o voto vencido do Ministro Velloso.

19. Jamais me alinhei no ponto à orientação do Tribunal, como repetidamente declarei.

20. Assim, por exemplo, assinalei ao votar, vencido, na ADIn 1.580, Corrêa 5.6.97, DJ 25.5.01: “…desde que pela primeira vez se discutiu o tema, a minha posição é perfeitamente conhecida: para mim, o fato de [a entidade] se organizar, por mimetismo à própria organização federativa do País, mediante a congregação de entidades de base regional, não lhe tira a característica de associação de classe, sempre que a sua destinação institucional seja a defesa dos interesses de determinada classe e não, obviamente, a defesa dos interesses das associações que lhe são filiadas. Tenho-as, pois, como legitimadas à ação direta, nos termos do art. 103, XI, parte final, da Constituição”.

21. E não dou relevo decisivo a que, então, a CONAMP admitisse, além das associações regionais, a filiação direta de integrantes individuais da categoria.

22. Na espécie, contudo, a reabertura da discussão é ociosa.

23. De logo, porque a exclusão das entidades de classe de segundo grau – as chamadas “associações de associações” – do rol dos legitimados à ação direta vem de ser abandonada pelo Tribunal (ADIn 3153-AgRg, 12.08.04, Pertence, Inf STF 356).

24. De qualquer sorte, instrui a petição o novo estatuto da CONAMP — agora Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – arquivado em 24.10.2001 e cujo art. 5º preceitua:


“Art. 5º – O quadro institucional da CONAMP compõe-se das seguintes categorias: I – Associados Efetivos – os membros do Ministério Público da União e dos Estados, ativos e inativos; II – Associados Agregados – os pensionistas de Associados Efetivos falecidos; III – Afiliadas – as Associações de Ministério Público.

Parágrafo único – A manutenção do vínculo com a CONAMP de Associado que vier a ser desligado do quadro da Associação Afiliada dependerá de expressa manifestação do interessado”

25. A qualidade de “associados efetivos” ficou assim adstrita às pessoas físicas integrantes da categoria, – o que basta a satisfazer a jurisprudência restritiva —, ainda que o estatuto reserve às associações afiliadas papel relevante na gestão da entidade nacional.

26. Afasto, pois, a preliminar.

27. Entendo presente, em ambas as ações diretas, a relação de pertinência temática entre a finalidade institucional das duas entidades requerentes e os dispositivos legais questionados.

28. Em contrário invocam as informações da Presidência da República a decisão do Tribunal na ADInMC 913, 18.8.93, quando, por maioria, o Tribunal negou à AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – a satisfação do requisito para impugnar a validade da EC 3/93, no ponto em que instituíra a ação declaratória de constitucionalidade.

29. O voto condutor do em. Ministro Moreira Alves motivou o julgado: “No caso, trata-se de questão interna do Poder Judiciário, cujo pretenso interesse da magistratura é colocado em termos de contraposição de poderes entre seus órgãos sob a alegação de que os acrescidos a um – que é o seu órgão-cúpula – coartam a independência dos que lhe são hierarquicamente inferiores. Questões dessa natureza, que dizem respeito, lato sensu, à organização do Poder Judiciário, sem lhe coartarem a independência e as atribuições institucionais, não têm pertinência com as finalidades da autora, quer encarada estritamente como entidade de classe, quer encarada excepcionalmente como entidade de defesa do Poder Judiciário, porque, no caso, quanto a ele em si mesmo, nada há que defender por lhe ter a Emenda Constitucional impugnada ampliado o âmbito do controle concentrado da constitucionalidade dos atos normativos”.

30. A argumentação, não o nego, poderia transplantarse para o caso presente, no qual, das questionadas ampliações legais do âmbito material da competência por prerrogativa de função, o que resulta é a transposição, para os Tribunais e os correspondentes órgãos superiores do Ministério Público, de poderes e funções que as argüições pretendem devessem remanescer na alçada do primeiro grau de jurisdição.

31. Com todas as vênias, sigo convicto, no entanto, de que o precedente invocado restringiu a qualificação das entidades de classe muito além do que permitiria a construção pretoriana da “pertinência temática”.

32. Na referida ADInMC 913, fiquei vencido – na companhia honrosa dos Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso – e assim fundei o meu voto, em suas passagens essenciais: “2 … a preliminar suscitada pelo eminente Relator é do maior relevo, porque se trata de gizar, de demarcar essa qualificação específica para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade – a chamada “pertinência temática” – que o Tribunal extraiu do sistema constitucional, especificamente com relação às entidades de classe, e, eventualmente, com relação a outras das autoridades ou entidades qualificadas no art. 103 CF, para a provocação do controle abstrato de normas.

3. É afirmação elementar que a ação direta de inconstitucionalidade é modalidade de processo objetivo, o que faria heterodoxa qualquer tentativa de identificar a legitimação para a causa das entidades, em tese, qualificadas para propô-la, com a legitimatio ad causam do processo de partes, na qual a legitimação envolve uma relação estreita de interesse substancial entre o autor e o objeto da lide, ou, pelo menos, nos processos coletivos, entre a categoria representada pela entidade autora e o objeto material do processo.

4. Não obstante, Senhor Presidente, o Tribunal construiu, com a minha adesão, esse requisito, esse conteúdo específico da legitimação para causa na ação direta a que, com felicidade, o eminente Ministro Celso de Mello deu a denominaç&o adequada de “pertinência temática", que sempre interpretei como uma conexão objetiva entre o universo finalístico da associação de classe, de que se cogite, e o conteúdo da norma impugnada.

5. Afirmamo-lo, creio que pela primeira vez, em termos decisivos, na Ação Direta nº 138, em que foi Relator o Senhor Ministro Sydney Sanches, atinente à Associação dos Magistrados Brasileiros: então se reconheceu a pertinência entre o seu objetivo estatutário e – a expressão da ementa é muito significativa – “a preocupação política de defesa do tratamento que, em matéria de vencimento, pareça-lhe adequada à Magistratura em face do ordenamento constitucional".


6. Posteriormente, na Ação Direta 305, contra o voto do Relator, eminente Ministro Paulo Brossard, o Tribunal, chamado preliminarmente a decidi-lo, afirmou existir, no processo de controle abstrato, da ação direta de inconstitucionalidade, o requisito da pertinência temática; votei com a maioria. Então, assinalei, repisando observações esparsas em outros casos em que o problema, incidentemente, fora tratado – ADIN 305, 22.5.91: “Senhor Presidente, também já me havia antecipado para admitir, ao menos nessa hipótese (a das entidades de classe) – que obviamente se aplicará, mutatis mutandis, pelo menos às autoridades estaduais – a exigência do que o Ministra Celso de Mello chamou, com felicidade, de uma relação de pertinência temática entre o objeto social da instituição da entidade de classe e o tema constitucional posto.

Friso, mais uma vez, que, quando adotei essa terminologia, e já o fizera na ADIN nº 42, foi exatamente para não a identificar com a legitimação para a causa (do processo subjetivo), ainda que mestre Buzaid vá identificar os termos – para caracterizar a legitimação com a pertinência subjetiva da lide.

Creio que o liame a exigir na ação direta entre a argüente e o tema da argüição de inconstitucionalidade pode ser sensivelmente mais flexível que o que há de ligar, por exemplo, as próprias entidades de classe ao objeto do mandado de segurança coletivo. O que não admito é que haja absoluto alheamento entre a temática da ação direta e a finalidade institucional da associação, o que, de certo modo, limita a sua própria personalidade jurídica.

Portanto, Senhor Presidente, com essas premissas, que delimitaram minha adesão à construção do requisito da pertinência temática, não posso reduzi-la a uma relação de interesse pessoal, corporativo ou profissional, entre os membros de uma determinada categoria profissional ou funcional, individualmente considerados, e a argüição de inconstitucionalidade proposta. Se fosse assim, bastaria que o inciso IX do art. 103 tivesse legitimado as confederações sindicais, para a defesa dos interesses corporativos, profissionais, do trabalhador, enquanto tal. Na luta por condições de trabalho ou por melhorias salariais, a instituição constitucional é o sindicato, hoje aberto a todas as categorias, inclusive às dos funcionários públicos, com a única exceção dos militares.

(…)

9. A ação direta de inconstitucionalidade não pode ser reduzida, ainda quando proposta por uma entidade de classe, a um macroscópico mandado de segurança coletivo, instrumento apenas da defesa coletiva de direitos subjetivo individuais dos membros de uma determinada categoria de classe. Não é novidade alguma, na minha perspectiva, o que estou afirmando.

10. Na Ação Direta nº 42, em voto-vista, permiti-me uma longa digressão sobre a minha leitura do significado do plexo de autoridades e entidades públicas e privadas, a que a Constituição de 88 deu qualificação para provocar o controle abstrato de inconstitucionalidade, cedendo à grita contra o monopólio inicial desta qualificação pelo Procurador-Geral da República.

11. Permito-me integrar a este voto o que, naquele caso, acentuei: “Entre as indagações em que se desdobrou o douto voto do Ministro Brossard uma delas se fixou na natureza indiscutivelmente privada das associações não sindicais: é que, não obstante o alargamento da legitimação para a ação direta, os legitimados pelo art. 103, ponderou S. Exa., são ou autoridades de alta expressão na hierarquia políticoadministrativa do País ou entidades de caráter público, categoria em que incluiu não apenas a Ordem dos Advogados, mas também as confederações sindicais (no que, de logo, peço vênia para dissentir). A mim me parece, contudo, data venia, que aqui está um indicativo a mais no sentido de uma compreensão ampla do conceito de – entidade de classe de âmbito nacional para os fins do art. 103 da Constituição. À minha leitura da Constituição e das discussões que a antecederam, no particular, afigura-se manifesto que, da legitimação dessas associações, além da outorgada aos partidos políticos, à OAB e às confederações sindicais, o novo texto fundamental quis efetivamente fazer a grande válvula de abertura e descentralização social da iniciativa do controle direto da constitucionalidade das leis.

(…)

As sugestões para liberalização da legitimidade para a ação direta foram muitas, chegando algumas à ação popular – v.g., Fábio K. Comparato, Muda Brasil – Uma Constituição para o desenvolvimento democrático, ed. Brasiliense, 1986, p. 81, art. 14: Qualquer cidadão é parte legítima para propor diretamente, perante o Tribunal Constitucional, ação de Inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público.


Na grande maioria das propostas que não chegaram à solução extrema da ação popular, embora de conteúdo vário, é possível identificar a preocupação constante de legitimar para a ação direta, além do Procurador-Geral da República e de autoridades governamentais e legislativas da União e dos Estados, uma ou mais entidades, nas quais se reconheceram qualificações para o papel de veiculo das instâncias da sociedade civil.

A ampliação da legitimidade ainda para a antiga representação por inconstitucionalidade às altas autoridades da União e dos Estados, ao Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados e ao das Confederações Profissionais – o que lhe parecia possível por simples disposição do Regimento do Supremo Tribunal Federal -, foi sugerida por Victor Nunes Leal, em 1978, na tese que ofereceu à VII Conferência Nacional da OAB, em Curitiba (Representação de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal: um aspecto inexplorado, nos Anais, OAB, 1978, p. 479). –

A proposta da emenda constitucional nº 11/84 – conhecida por emenda Leitão de Abreu acompanhada, neste passo, pelo anteprojeto da Comissão Afonso Arinos (art. 311) mantinha a legitimação privativa do Procurador- Geral da República, mas tornava compulsório o oferecimento por ele da representação, quando fosse provocado pelas autoridades referidas ou pelo Conselho Federal da Ordem. Prevaleceu na Constituinte, desde o início, a ampliação direta da legitimidade, sem a intermediação do Procurador-Geral. Nos anteprojetos das comissões temáticas, o da Comissão de Organização dos Poderes (relator o Deputado Egydio Ferreira Lima), além das autoridades, qualificava para a ação direta apenas a Ordem e as Confederações Sindicais (art. 103), ao passo que a da IV Comissão (relator o Deputado Prisco Viana), no capítulo “Da Inviolabilidade da Constituição”, suprimia a referência às confederações, para manter a legitimação da Ordem e, em geral, das "entidades associativas de âmbito nacional, criadas ou reconhecidas por lei e com mais de um ano de funcionamento”(art. 38).

Os primeiros substitutivos do relator, o nobre Deputado Bernardo Cabral, de agosto e setembro de 1987, adotaram a proposta mais restrita da Comissão de Organização dos Poderes: além das autoridades e da Ordem, apenas, as confederações sindicais. Na votação plenária em primeiro turno, é que se chegou à fórmula, que prosseguiu vitoriosa até o final, de legitimar, além das autoridades e da Ordem, qualquer “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”: esta cláusula final, desse modo, reduziu a legitimação das associações civis às de caráter classista, mas a libertou da exigência de criação ou reconhecimento por lei, como fora proposto pela IV Comissão.

Dessa breve e apressada recordação dos antecedentes da norma constitucional ora discutida, resulta para mim que iniludivelmente prevaleceu, na Constituição de 1988, uma orientação ampliativa da qualificação para a ação direta, com a evidente preocupação de abri-la à participação ativa da sociedade civil no controle da legitimidade constitucional do exercício do poder do Estado.

(…)

Mas, os partidos políticos estão de permeio entre o Estado e a sociedade civil.

Ora, é uma evidência, hoje difundida, do pensamento político – que, entre nós, Victor Nunes, em 1954, já percebia (A Divisão dos Poderes no Quadro Político da Burguesia, em Cinco Estudos, FGV., 1955, p. 93) – e, em 1980, voltaria a insistir no tema (Liberdade, desenvolvimento e advocacia, nos Anais da VIII Conf. Nacional da OAB, p. 358) -, que, em particular, a doutrina da separação e da independência dos poderes e, em geral, todos os mecanismos estatais de proteção das liberdades, construídos com vistas ao Estado absenteísta, a serviço do liberalismo econômico, tiveram comprometida a sua eficácia, na medida em que a incoercível demanda de crescente intervenção estatal na economia e em toda a vida social levou, na busca da eficiência, à concentração de poder e ao agigantamento do aparelho burocrático.

De tal modo, quis advertir, naquele ano já longínquo, a aguda lucidez de Victor Nunes, que “fora do Estado e não dentro do Estado é que se haveriam de construir os instrumentos mais eficazes de defesa dos direitos humanos” (Anais, cit., p. 364).

Essa linha de preocupação – que tem levado, em todas as áreas, à criação de instituições de democracia participativa, em especial, de controle permanente da ação estatal pela sociedade civil -, está subjacente no nosso tema à legitimação para a ação direta da OAB, das confederações sindicais e das entidades nacionais de classe.


(…)

No último inciso do art. 103, portanto, é que efetivamente a Constituição abriu a ação direta de inconstitucionalidade às concepções contemporâneas de pluralismo e participação social, inclusive no âmbito da jurisdição, na linha, como notou o parecer de Cândido Dinamarco, de “intensa movimentação em prol da efetividade do processo, que constitui, observou em seguida, uma “vivíssima tendência contemporânea da doutrina processual legitimada na realidade da sociedade pluralista deste fim de século”.

(…)

12. À luz dessas premissas sobre o significado da legitimação das entidades de classes para a ação direta de inconstitucionalidade, não posso esvaziá-la, data venia, a ponto de reduzi-la a mero instrumento de defesa coletiva de interesses corporativos de uma determinada categoria profissional ou econômica; o requisito da “pertinência temática” não pode ser levado a esse extremo sem comprometer a finalidade institucional do processo de controle abstrato, que é sempre a de defesa objetiva da Constituição.

13. O grande argumento de hoje – afora o de inexistência de um interesse profissional de cada magistrado na temática da reforma constitucional, que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade – é que, afinal, essa emenda constitucional, no ponto questionado, seria apenas uma redivisão interna das funções do Poder Judiciário. Est modus in rebus.

14. Diz a Associação dos Magistrados Brasileiros que essa emenda constitucional (e só por isso argúi a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional) agride duas limitações materiais, ou segundo a metáfora consagrada, duas cláusulas pétreas da Constituição: a que diz que "com a separação e a independência dos Poderes”; e a que diz com "os direitos e garantias individuais”, particularmente com os dogmas, com os corolários, do princípio do devido processo legal.

(…)

16. Aqui, o que se dá é que o tema é pertinente à posição institucional da Magistratura, ao desenho da função judicial e de função jurisdicional, no ordenamento jurídicoconstitucional brasileiro.

17. Trata-se de uma relevante alteração no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, com evidente fortalecimento do subsistema de controle concentrado, em detrimento do controle difuso, que, como poder inerente à própria jurisdição, cabe a cada órgão jurisdicional do País. E isso me basta, Senhor Presidente, como me bastou na Ação Direta nº 292, para sustentar que não negava legitimação, que não contestava a pertinência temática entre as finalidades institucionais da mesma Associação dos Magistrados Brasileiros e a proibição, por meio de medida provisória, de concessão de liminares ou medidas cautelares em determinados processos”.

33. Tudo isso para concluir, naquele caso: “… se, de outro lado, a pertinência temática, como a entendo, não se confunde com a legitimação ad causam do processo entre partes, do processo subjetivo, não creio que se possa indagar – ou que o órgão judicante da ação direta, o Supremo Tribunal, possa ajuizar – da posição que, em face de um tema constitucional, de um problema constitucional que diz respeito à Magistratura, se a posição assumida, em concreto, pela Associação é, ou não, a que mais interessa à Magistratura. A indagação da pertinência temática, para mim, cessa, quando se afirma que o tema, que o problema constitucional posto têm a ver com o objeto institucional da associação de classe. A posição que, in concreto, no tema constitucional suscitado, venha a tomar a Associação, argüindo a inconstitucionalidade ou defendendo a constitucionalidade de determinada norma, diz respeito à própria Associação. Não entra na indagação estrita sobre se a matéria guarda relação de pertinência temática com a própria Associação.”

34. Essas considerações, mutatis mutandis, servem ao caso presente: basta-me aqui, para afirmar a presença da questionada “relação de pertinência”, que as normas legais questionadas se reflitam na distribuição vertical de competência funcional entre os órgãos do Poder Judiciário – e, em conseqüência, entre os do Ministério Público -, a que se verifique que as alterações tachadas de inconstitucionalidade têm a ver com as finalidades institucionais das respectivas entidades nacionais de classe.

35. À legitimação delas, repiso, são irrelevantes, neste momento, tanto o mérito da argüição de inconstitucionalidade, quanto a decisão das associações requerentes de fazê-la objeto das presentes ações diretas.


36. Rejeito igualmente a preliminar relativa à pertinência temática.

III

37. O novo § 1º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada no Inq 687-QO, 25.8.97, rel o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente.

38. Tanto é assim que a redação do dispositivo legal questionado se aproxima substancialmente da proposta, então recusada pelo Tribunal, que formulei no meu voto vencido, de redução do alcance daquela Súmula, nos termos seguintes – RTJ 179/912, 938:

“Cometido o crime no exercício da função ou a pretexto de exercê-la, prevalece a competência por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício funcional”.

39. Também no texto ora impugnado, recorde-se, a extensão da competência por prerrogativa de função além da cessação da investidura que a determinara se reduz às acusações relativas a “atos administrativos do agente([1])

40. Em contrário, porém, da minha proposta, no Inq 687 prevaleceu o cancelamento puro e simples da Súm. 394, por entender a maioria do Tribunal ser inaceitável em qualquer hipótese, à luz da Constituição, que a incidência da regra de foro especial por prerrogativa da função se prolongasse com relação a quem já não fosse titular da função pública que o determinava.

41. É ver no ponto, o que ficou posto na ementa do julgado, da lavra do em. Ministro Sydney Sanches – RTJ 179/912:

“1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segundo a qual, “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

2. A tese consubstanciada nessa súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, b, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”, nos crimes comuns.

Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice- Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, b e c).

Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato.

Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce.

Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo Tribunal.

Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo.

Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos.

Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os exexercentes de tais cargos ou mandatos.

3. Questão de ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal.

Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do plenário.

4. Ressalva, também unânime, de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394, enquanto vigorou.”

42. Improcede a tentativa das informações de dissimular a disparidade gritante entre a decisão do Tribunal e a Lei superveniente à base da suposição de que o cancelamento da Súm. 394 estaria fundada na ausência de lei ordinária que a consagrasse.

43. Tanto quanto a própria Súm. 394, que cancelou, a decisão do Tribunal no Inq 687 derivou de interpretação direta e exclusiva da Constituição.


44. Li e reli a íntegra das notas taquigráficas da exaustiva discussão: nela – salvo a evocação incidente e não decisiva pelo em. Ministro Marco Aurélio do art. 87 C.Pr.Civ. – não se cogitou de legislação ordinária alguma, mas exclusivamente de normas e princípios constitucionais.

45. Aliás, no Inq 687 – assim como nos demais inquéritos e ações penais, conjuntamente apreciados -, quando se decidiu pelo cancelamento, sem ressalvas, da Súm. 394, cuidava-se unicamente de procedimentos criminais contra congressistas: a circunstância basta a evidenciar que não fazia sentido levar em conta a legislação ordinária pertinente – vale dizer, unicamente, o C.Pr.Penal, de 1941 -, pois a competência por prerrogativa de função para processar Deputados e Senadores só surgira com a Carta de 1969, como contrapeso à drástica redução que aquele edito constitucional da ditadura impusera às imunidades parlamentares materiais e formais.

46. A indagação que assim logo se põe é saber se lei ordinária é instrumento normativo apto a alterar jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal, fundada direta e exclusivamente na interpretação da Constituição da República.

47. A resposta é negativa.

48. Certo, a Constituição não outorgou à interpretação constitucional do Supremo Tribunal o efeito de vincular o Poder Legislativo, sequer no controle abstrato da constitucionalidade das leis([2]), quando as decisões de mérito só terão força vinculante para os “demais órgãos do Poder Judiciário e Poder Executivo”([3]).

49. Menos ainda cabe cogitar de vinculação do Legislativo às decisões do STF que diretamente aplicam a Constituição aos fatos: ao contrário das proferidas no controle abstrato de normas, são acórdãos que substantivam decisões tipicamente jurisdicionais, de alcance restrito às partes.

50. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição.

51. A circunstância de que a interpretação constitucional convertida em lei ordinária contrarie a jurisprudência do Supremo Tribunal – guarda da Constituição – não é, assim, determinante, por si só, da inconstitucionalidade, embora evidencie o desconcerto institucional a que pode conduzir a admissão da interpretação da Constituição por lei ordinária.

52. A petição inicial da CONAMP invoca com pertinência a lição de Canotilho([4]), no sentido de que “Uma interpretação autêntica feita pelo legislador ordinário deve excluir-se no âmbito constitucional”

53. “Por um lado” – preleciona o mestre de Coimbra -, o legislador ‘não pode pretender “fixar” o sentido de uma norma constitucional tal como o faz em relação às leis editadas. Neste último caso, ele é o seu “criador”, admitindo-se que, se ele pode criar e revogar uma lei, por maioria de razão a poderá interpretar. (…) Todavia, em relação às normas constitucionais o legislador não está nesta situação privilegiada. Ele é um dos destinatários das normas constitucionais (e em relação a algumas normas o destinatário por excelência), cumprindo-lhe concretizar a constituição, mas não é “dono” das normas constitucionais para poder, ex voluntate, fixar o sentido dessas normas.

Acresce que uma lei hipoteticamente interpretativa da constituição poderia conter uma interpretação inconstitucional, daí decorrendo o perigo, já assinalado, da formação de um “concentrado constitucional” paralelo, conducente à substituição do princípio da constitucionalidade das leis pelo da legalidade da constituição, legalidade essa que poderia até ser inconstitucional.”

54. “De acordo com os princípios” – acentua de sua vez o preclaro Jorge Miranda([5]) – interpretação autêntica só pode ser feita “por lei com força constitucional – ou seja, em Constituição rígida, por lei decretada pelo processo peculiar de revisão, e não de lei ordinária. Pode, não, raro, a lei ordinária interpretar as disposições constitucionais regulamentando-as ou tornando-as exeqüíveis e, de qualquer sorte, concretizando e desenvolvendo o seu conteúdo; mas, ainda que se pretenda vocacionada para conferir um sentido “correcto” ou “autêntico” a certa e determinada norma constitucional, a lei ordinária não tem capacidade ou força jurídica para tal e está ela própria sujeita ao juízo de inconstitucionalidade (e à interpretação que este pressupõe) a cargo dos órgãos de fiscalização competentes”

55. No Brasil, vem do vetusto Maximiliano([6]) a assertiva peremptória de que Interpretação autêntica do texto constitucional só se obtém pelo processo estabelecido no art.

217 da Constituição de 1946, isto é, por meio de emenda ao estatuto básico”.


56. “É controvertida” – anota hoje Luiz Roberto Barroso([7]) – “a possibilidade de interpretação autêntica da Constituição. Pela interpretação autêntica se edita uma norma interpretativa de outra preexistente. A maior parte da doutrina, tanto brasileira como portuguesa, admite a interpretação constitucional autêntica, desde que se faça pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta”; para o autor, no entanto, cuidando-se de uma constituição derivada do poder constituinte originário – que, “uma vez concluída a sua obra, o poder constituinte originário se exaure, ou, melhor dizendo, volta ao seu estado latente e difuso”, a rigor “não se pode falar em interpretação constitucional verdadeiramente autêntica”; e invoca, no mesmo sentido, as opiniões de José Afonso da Silva e de Anna Cândida da Cunha Ferraz.

57. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional.

58. Tanto pior se, de sobra, contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal: aí, é claro, haverá indício veemente de inconstitucionalidade material, salvo recuo da Corte.

59. O ponto vale uma reflexão.

60. O Supremo Tribunal – escusado é dizê-lo – também não está vinculado à sua precedente compreensão da Constituição.

61. Por isso, é do jogo, por exemplo, que possa o legislativo reeditar lei de conteúdo similar à de outra, declarada inconstitucional e, assim, provocar a rediscussão do tema pela jurisdição constitucional: aí, a questão será de constitucionalidade ou inconstitucionalidade material, conforme a Corte nele persevere ou reveja o seu entendimento anterior.

62. Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia superior.

63. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisdição constitucional, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental.

64. A jurisdição constitucional na democracia – e a afirmação tem hoje a força do óbvio – é um poder contramajoritário: incumbe-lhe impor à maioria política da conjuntura as regras constitucionais do jogo político e as limitações substanciais da Constituição ao conteúdo das decisões legislativas e administrativas.

65. Quando, ao contrário, a lei ordinária (ou o ato de governo) é que pretendam inverter a leitura da Constituição pelo órgão da jurisdição constitucional, não pode demitir-se este do seu poder-dever de opor o seu veto à usurpação do seu papel.

66. São razões que realço para explicar por que, vencido no Tribunal quando da derrubada da Súmula 394, deixo, no entanto, de reconhecer a validade da lei superveniente que, em termos, se aproxima da solução que então defendi: sobreponho à opinião pessoal, então rejeitada por expressiva maioria, o que me parece um imperativo da sustentação do papel do Tribunal, “guarda da Constituição”.

67. Admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria a Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames.

68. Tenho, pois, por inconstitucional o § 1º do art. 84 CPrPenal, acrescido pela lei questionada.

IV

69. O § 2º que a mesma lei inseriu ao dispositivo do art. 84 do Código veicula duas regras: a primeira estende à ação de improbidade administrativa a competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário; a segunda, manda observar, quanto à mesma ação de improbidade, o § 1º, é dizer, a regra de extensão no tempo do foro especial ao momento posterior à cessação da investidura na função dela determinante.

70. Essa regra final é atingida por arrastamento pela declaração de inconstitucionalidade do § 1º, que manda observar.

V

71. Resta indagar da outra regra contida no também questionado novo § 2º do art. 84 do C.Pr.Penal.

72. Nele, estendem-se à ação de improbidade administrativa as previsões constitucionais e legais de competência originária para o processo penal contra determinadas autoridades.


73. Em linha de princípio, no plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação.

74. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual.

75. A assertiva é duplamente evidente, quando se cuida do Supremo Tribunal, ele próprio, órgão especial também relativamente aos demais juízes e tribunais da União([8]).

76. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar.

77. Certo, a nota de exaustividade do rol de tais competências originárias há de ser compreendida cum grano salis: diversas tem sido, no ponto, as hipóteses de extração pretoriana de competências implícitas dos tribunais federais, aceitas sem maior contestação ao longo da República.([9])

78. Assim, por exemplo:

a) no âmbito do Supremo Tribunal, a de conhecer originariamente do mandado de segurança não apenas contra o ato das Mesas das Casas do Congresso Nacional, mas também contra os das próximas câmaras e de seus órgãos fracionários, a exemplo das comissões permanentes e de inquérito;

b) ainda no campo da competência originária do Supremo Tribunal, o do conhecimento originário de habeas corpus contra atos de Ministros de Estado, quando relativos a extradições, e, mais recentemente, do habeas corpus contra decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais;

c) na esfera do Superior Tribunal de Justiça, a de conhecer de habeas corpus quando atribuída a coação a juízes dos Tribunais de Alçada;

d) na órbita dos Tribunais Regionais Federais, a de processar, originariamente, por crimes da competência da Justiça Federal, os dignitários estaduais que, de regra, estejam, por prerrogativa de função, sujeitos à competência originária dos Tribunais de Justiça locais.

79. São todas elas – as recordadas e, quiçá, outras mais – repita-se, construções pretorianas, que o Supremo Tribunal pretendeu inferir de regra expressa ou da conjugação de regras expressas da Constituição.

80. O que se impugna, no caso, é a declaração por lei de competência originária não prevista na Constituição.

81. Ora, como livre criação de competências originárias dos tribunais federais, a lei é inválida, dada a taxatividade do rol constitucional delas.

82. E, quando se pretenda sustentar a validade da lei como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões anteriormente aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional.

83. De qualquer sorte, substancialmente, como interpretação da Constituição, o § 2º, que se analisa, é insustentável.

84. A ação de improbidade administrativa é uma ação civil: evidencia-o o art. 37, § 4º, da Constituição, ao explicitar que as sanções que comina à improbidade administrativa serão impostas “sem prejuízo da ação penal cabível”.

85. O Tribunal jamais deduziu de sua competência originária para o processo penal contra os mais altos dignitários da República a de conhecer de ações civis contra eles propostas por atos de ofício, ainda que delas possa decorrer a condenação da autoridade a diferentes sanções civis: a ação popular é o exemplo mais freqüente dessa nítida distinção jurisprudencial.([10])

86. Anote-se, por sua vez, que, quanto aos tribunais locais, afora o disposto nos seus arts 29, X e 96, III, a Constituição Federal reservou explicitamente às constituições dos Estados-membros a definição da competência aos seus tribunais, o que afasta, por si só, que possa ela ser alterada por lei federal ordinária.

87. É verdade, no tocante à improbidade administrativa, que a inclusão constitucional, entre as sanções a ela cominadas, da suspensão dos direitos políticos e da perda da função pública tem induzido a relevar a similitude da ação respectiva, não com o processo penal por crimes comuns, mas sim com a persecução dos chamados crimes de responsabilidade; e, daí, à tese de que a competência constitucional para julgar esses últimos haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade administrativa.

88. A tese, rejeitada por voto de desempate no Superior Tribunal de Justiça – e retomado depois por trabalho conjunto de Arnold Wald e Gilmar Mendes ([11]).


89. No Supremo Tribunal, a questão foi agitada na Rcl 2138, cujo relator, o em. Ministros Nelson Jobim, acolhe a tese da extensão à ação de improbidade administrativa proposta contra Ministro de Estado da competência originária da Corte para processá-lo e julgá-lo por crimes de responsabilidade; o julgamento – depois de acompanhado o Relator pelos Ministro Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Maurício Corrêa e Ilmar Galvão, foi interrompido pela vista concedida ao Ministro Carlos Velloso (DJ 20.11.02).

90. O eventual acolhimento da tese dessa reclamação não prejudica nem é prejudicado pela inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 C.Pr.Penal, introduzido pela L. 10628/02, que ora se sustenta.

91. De logo, a competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo impeachment é da competência de órgãos políticos – por certo, a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade.

92. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado.

VI

93. De tudo, julgo procedentes as ações diretas e declaro a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º apostos ao art. 84 do Código de Processo Penal pela L. 10628/02: é o meu voto.

[1] Cf. v.g., Inq 1772, DJ 10.3.03, Pertence; Inq 718-QO, Pertence,

23.04.03, DJ 16.05.03

[2] v.g., ADInMC 864, 23.6.93, Moreira Alves, RTJ 151/416

[3] Constituição, art. 102, § 2º e STF, Rcl 1880-AgR, 6.11.02,

Maurício Corrêa, DJ 19.3.04.

[4] J.J. Gomes Canotilho – Direito Constitucional, 5ª ed, ed.

Almedina, Coimbra, 1991, p. 239

[5] Jorge Miranda – Manual de Direito Constitucional, 2ª, Coimbra Ed, 1983, II/231

[6] Carlos Maximiliano – Hermenêutica e Aplicação do Direito, 10ª, Forense, 1988, p. 315.

[7] Luiz Roberto Barroso – Interpretação e Aplicação do Direito, 5ª, Saraiva, 2003, p. 118

[8] João Barbalho – Constituição Federal Brasileira, Rio, 1902, p. 235; Pedro Lessa – Do Poder Judiciário, p. 44

[9] João Barbalho – ob. loc. cits; Castro Nunes – Teoria e Prática do Poder Judiciário, Forense, 1943, p. 215

[10] Pet. 1282-AgR, Pl, 26.5.97, Sanches, DJ 27.6.97

[11] Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes – Competência para ação de improbidade administrativa, Rev. Inf. Legislativa, 128/213

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