Embargos culturais

Benjamin Cardozo e o falso problema do direito como literatura

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca
Benjamin Nathan Cardozo nasceu em 1870 e faleceu em 1938. De ascendência judaico-sefardita, Cardozo foi juiz em Nova York e posteriormente ocupou uma vaga na Suprema Corte em Washington. Estudou Direito em Columbia e estagiou no escritório de seu pai. Albert Cardozo, o pai, foi juiz em Nova Iorque, e ao que parece foi afastado por suspeita de corrupção. Logo após o nascimento de Benjamin, renunciou ao cargo de juiz para evitar um processo de impeachment; manteve, no entanto, a prerrogativa para advogar, profissão que exerceu com razoável sucesso.

Cardozo tinha irmã gêmea, além de outros seis irmãos, entre os quais uma irmã mais velha, Ellen, que o criou, após a morte da mãe, o que aconteceu quando tinha nove anos. A herança deixada pelo pai permitiu vida confortável. Vivia em Nova Iorque, na Madison Avenue. Cardozo destacou-se como advogado. Bons relacionamentos nos meios jurídicos lhe abriram as portas para a judicatura. Em 1932 foi indicado para a Suprema Corte pelo Presidente Herbert Hoover; ocupou a vaga de Oliver Wendell Holmes Jr. 

Cardozo foi um realista no sentido que adaptava as circunstâncias normativas às instâncias da vida real, percebia o Direito como instrumento das necessidades humanas. Não admitia servidão aos desejos de mandarins e poderosos. Cardozo foi um dos mais importantes juízes da administração Franklin Delano Roosevelt, que na década de 1930 tentou aprovar a legislação que implementou um programa anti-recessivo, o New Deal, fortemente inspirado no intervencionismo de John Maynard Keynes. Cardozo materializou o realismo jurídico, em momento de fortíssima interferência judicial na vida nacional.

A afinidade de Cardozo com o programa de Roosevelt, com os objetivos sociais que norteavam as medidas tomadas, bem como a convicção de que os tempos estavam mudando e de que a Constituição necessitava de modelo interpretativo mais flexível marcaram suas opções jurisprudenciais. Escreveu livro importante para a compreensão do realismo jurídico norte-americano, A Natureza do Processo Judicial- The Natureofthe Judicial Process. Trata-se de opúsculo no qual demonstrou conhecer o pensamento jurídico da época, especialmente os autores alemães, a exemplo de Eugen Ehrlich e de Rudolf Von Iehring, bem como a sociologia francesa, a propósito das referências a Emile Durkheim.

Percebia no juiz papel judicial criativo, positivo, produtor de normas, a exemplo da atividade do legislador propriamente dito, embora, em princípio, em espaço mais limitado. Ao imputar ao juiz o papel de produtor do direito, de alguém que faz a norma, e que não de alguém que a cria, desafiava a tradição que radica em Montesquieu e que vê o magistrado apenas como a boca da lei. Ao afirmar que há várias maneiras de se julgar um mesmo caso e que a personalidade do julgador é o termômetro das decisões que toma, Cardozo, ele mesmo um reputadíssimo magistrado, oferecia a própria biografia em holocausto, para confirmar assertivas nas quais se assentava o realismo jurídico norte-americano. Cardozo escrevia com beleza, profundidade, sentimento; balizando-se por expressiva retidão moral.

Cardozo era hostil para com concepções metafísicas de justiça, de justo, e de direito. Insistia no direito como atividade literária. O texto essencial de Cardozo relativo ao direito como literatura foi originariamente publicado em 1925. Com elegância, e com humor, principiava afirmando que amigos tinham lhe dito que uma decisão judicial em nada se assemelha à Literatura.

Ao citar um literato que absorvia literatura jurídica como referencial estilístico, firmou tese no sentido de que direito seria também literatura. Advogados, em geral, não teriam posição ativa quanto a problemas literários. Quando muito, exprimiriam admiração, ou indiferença. Cardozo lembrava que os advogados com os quais convivia observavam que perdiam tempo com literatura, porque somente a substância os interessava; no entanto, faziam literatura…

Cardozo tratou do problema a partir de questões de forma e substância. A substância (jurídica) circulava por meio de forma (literária). E não haveria como se dissociar as duas grandezas. Lembrou que os filósofos tentavam especificar diferenças entre substância e aparência, no mundo material; e não teriam melhor sorte se o tentassem também no mundo do pensamento. A forma não se adere à substância como mero adereço; forma e substância fundem-se, matizam unidade única. Direito e literatura, substância e forma, nesse sentido, subsistiriam amalgamados.

Insistia que a decisão de um juiz, além de clara, deveria ser também absolutamente persuasiva. A sinceridade deveria informá-la, como virtude; seria acompanhada por força vinculante de provérbios e máximas. A negligência para com a clareza, a persuasão e a sinceridade seriam as marcas de estilo jurídico fracassado.

Cardozo identificava seis modelos de narrativa jurídica, estilisticamente demarcados: 1) Profissional ou imperativo; 2) Lacônico ou sentencioso; 3) Conversador ou familiar; 4) Refinado ou artificial; 5) Demonstrativo ou persuasivo; 6) Aglutinativo.

O modelo profissional ou imperativo seria o mais adequado em dignidade e poder. Exuberante em exemplos e em analogias, substancializaria a força do silogismo. Seu destinatário ouviria a voz da lei. O poder judiciário seria exercido com o propósito de se revelar a vontade do legislativo, da lei, em desfavor dos desejos próprios do magistrado. O estilo profissional ou imperativo identificaria homens conscientes do próprio poder, marcando-se o desenvolvimento do direito como processo contínuo de adaptação e ajuste. Os lacônicos pouco diziam.

O estilo conversador ou familiar é repleto de lugares comuns, de significados condicionados a conhecimento prévio do repertório. É o que encontramos em algumas decisões, que se propõem didáticas, mas que pecam pela repetição e pela multiplicação de lugares-comuns. Esse modelo refinado marca praga narrativa que aprisiona o direito. É o recurso clássico do latim macarrônico, de expressões fora de uso, de estrangeirismos, a exemplo de espanholismos como “sem embargo”, um dos mais repetidos.

O estilo persuasivo pode ser identificado nos textos ricos em notas de rodapé e de argumentos de autoridade. O modelo aglutinativo é marcado pelo exagero, pelo uso interminável de referências, citações e indicações. Toma-se o galho, perde-se a árvore. Cardozo identificou na fala jurídica um sentido narrativo, classificando-o. É nesse aspecto que se pode falar em tentativa intelectual que marca a fixação de modo literário no direito. E além deste esforço classificatório há também uma poética na redação jurídica que o marcou.Estilo, retórica, hermenêutica e imaginação criadora identificam suas decisões judiciais.

Trata-se de um interessante autor, cuja leitura é proveitosa para quem nos preocupamos com as várias formas expressivas com as quais se revela o direito. Cardozo não admitia que o caminho mais seguro para a tranquilidade da alma consistia em ter opinião nenhuma, ainda que opinemos em permanente erro.

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