Segunda Leitura

A Constituição não justifica o descumprimento das obrigações

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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11 de junho de 2017, 8h00

Spacca
A Constituição de 1988 trouxe em seu longo texto o anseio de proteção dos direitos fundamentais e sociais. Tudo o que pudesse ser lembrado, nela foi introduzido, na legítima aspiração de uma sociedade democrática, justa e solidária. Muitos lutaram por isso e sentiram-se recompensados nos seus esforços, vendo incluídas na nossa Lei Maior as cláusulas de segurança do cidadão contra o Estado e eventuais maus governantes.

O passo seguinte foram os estudos sobre a Constituição. Livros, artigos, palestras, decisões judiciais, disseminados aos quatro ventos, sustentaram a inconstitucionalidade de tudo o que pudesse ameaçar algum parágrafo da Carta Magna. E nem era preciso que nela estivesse escrito. Poderia ser também um princípio implícito, muito embora isso seja algo tão pouco identificável quanto um espírito que acompanha o corpo.

Passados quase 30 anos, vê-se que os resultados não são animadores. A corrupção tornou-se endêmica, vários estados entraram em estado de insolvência, os serviços públicos pioraram, e a segurança pública não é mais um problema das grandes cidades, mas de todas, inclusive de capitais outrora tranquilas.

No âmbito do sistema de Justiça, se houvesse um Prêmio Nobel às avessas, seríamos fortes candidatos à primeira classificação, quem sabe com a distinção summa cum laude.

Na avaliação, os examinadores diriam, de boca cheia, que somos o único com quatro instâncias, levando um processo cível cerca de 15 anos para terminar, podendo levar outros 15 na fase da execução. E se surgisse alguma dúvida no prêmio, porque um outro país também estivesse em situação semelhante, um examinador diria que, no Brasil, um deputado federal que agride alguém no seu condomínio responderia a ação penal no Supremo Tribunal Federal e isso lhe daria 99% de chance de alcançar a prescrição. Assunto encerrado.

Mas, mesmo que seja raro, ainda há pessoas que não se conformam com tal estado de coisas e tentam dar efetividade ao sistema. Talvez até por uma razão existencial, porque ninguém, no seu íntimo, gosta de saber que seu trabalho é inútil. Nesta senda, alguns que dispõem de meios de melhorar o sistema não se deixam dominar pela apatia ou pelo pessimismo e, mesmo remando contra a correnteza, empenham-se ao extremo.

A juíza de Direito Andrea Ferraz Musa, da 2ª Vara Cível do Foro Regional de Pinheiros, em São Paulo, certeza é uma delas. Em uma execução proposta em 2013, observando que “todas as medidas executivas cabíveis foram tomadas, sendo que o executado não paga a dívida, não indica bens à penhora, não faz proposta de acordo e sequer cumpre de forma adequada as ordens judiciais, frustrando a execução”, determinou a apreensão de sua carteira de habilitação, o recolhimento de seu passaporte e o cancelamento de seus cartões de crédito[1].

Tais medidas foram tomadas com base no artigo 139 do Código de Processo Civil, que no seu inciso IV dispõe caber ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.

Fácil é ver que referido dispositivo visa dar efetividade à Justiça e que deve ser comemorado como uma das boas iniciativas do novo CPC. E mais fácil anda é ver que na sua aplicação não se poderá ferir a Constituição Federal. Por exemplo, determinando a prisão civil do devedor ou admitindo meios de cobrança constrangedores, como a colocação de um carro de som na frente da residência do devedor a pedir-lhe, em alto volume, que quite sua dívida.

Entretanto, a novidade tem suscitado dúvidas no Tribunal de Justiça de São Paulo. No caso da decisão ora comentada, poucos dias depois o desembargador Marcos Ramos, da 30ª Câmara de Direito Privado, concedeu liminar suspendendo a decisão de primeira instância, porque o artigo 5º, inciso XV, consagra o direito e de ir e vir e o artigo 8º do novo CPC protege a dignidade humana e prestigia o princípio da proporcionalidade.

Joice Bacelo comentou o assunto no Valor Econômico, registrando a tendência da jurisprudência da corte em negar tais medidas coercitivas, mas registrando que, em caso de ação proposta pelo Ministério Público contra servidor por improbidade administrativa, o tribunal paulista manteve as limitações decretadas pelo juiz de primeira instância[2].

A primeira observação a respeito é a de que estamos, uma vez mais, entre o velho e o novo Direito. Tal qual o Direito Penal, que tem tipos penais dos tempos em que Elvis Presley cantava nas festinhas de sua escola em Tupelo, o processo civil também tem regras dos tempos em que o Brasil era o grande campeão de futebol. No entanto, qualquer um pode ver, estamos em outro mundo, e neste, entre as múltiplas novidades, está a mudança de valores. A antiga frase, atribuindo a um moço ser “pobre, mas honesto”, portanto de valor, tão comum no passado, soa hoje quase como uma ofensa. Se mudaram os costumes, tem que mudar o Direito.

A segunda observação diz respeito à decisão do desembargador relator no caso em estudo. Invocou-se afronta ao direito de ir e vir com a apreensão da CNH e do passaporte. Ora, a apreensão da CNH é sanção administrativa aplicada diariamente e a restrição é apenas quanto ao uso de automóvel. Portanto, salvo a hipótese excepcional do uso do veículo ser necessário para o exercício da profissão (por exemplo, vendedor que faz entregas), nada mais razoável que impedir alguém, propositadamente inadimplente, de dirigir.

Quanto ao passaporte apreendido, diariamente, em ações penais de crimes financeiros, os magistrados determinam a entrega de tal documento. E nenhum tribunal concluiu pela inconstitucionalidade de tal medida. Apreensão de cartão de crédito não impede a locomoção. E quanto à dignidade humana, esse é o princípio “abre-te-sésamo” do Direito, porque cabe em qualquer situação. Pode ser invocado para tudo e para todos. Credores também têm dignidade. Sócios de pessoas jurídicas também. Portanto, sua invocação deve demonstrar, no caso concreto, por que e como foi ferido, não bastando uma frase aleatória para que deva ser reconhecido a favor de alguém.

Terceira observação, o estímulo judicial ao descumprimento de obrigações. Disciplina, hierarquia e respeito são valores aos quais não se dá mais importância. Para ficar só em um exemplo, citam-se diretoras de escolas públicas, hoje sujeitas a ações judiciais caso tomem qualquer medida disciplinar ou até a sofrerem represálias ou ameaças a seus familiares. Pois bem, estimular-se devedores que colocam seus bens em nome de outros, não pagam de forma alguma, mas postam no Facebook viagens de navio, exibem na garagem vistosos veículos ou frequentam ostensivamente caros restaurantes, é estimular tal estado de coisas.

A quarta observação é a contradição entre a aplicação diferente da norma quando a dívida for de um particular ou quando o caso for de improbidade administrativa. Dir-se-á que, neste, o interesse é público e, naquele, privado. Ocorre que, além do legítimo interesse do credor privado em querer receber o que lhe cabe, inclusive porque é do pagamento de seus créditos que terá capital para sustentar seu negócio e seus funcionários, há, sim, um interesse público em que as dívidas e os compromissos sejam honrados. Uma sociedade só se desenvolve se a maioria de sua população cumprir as obrigações assumidas.

Pelo que foi exposto, conclui-se que o artigo 139, IV, do CPC é um valoroso instrumento de efetividade da Justiça. Evidentemente, deve ser aplicado com cautelas e analisado o caso concreto, com expressa menção a datas e fatos que mostram a necessidade das medidas extremas. Não é adequado para os que devem por circunstâncias alheias às suas vontades e tentam acordos. Mas, em caso de inadimplentes habituais e que se valem do sistema para frustrar cobranças, evidentemente deve ser utilizado.

Na verdade, o Judiciário encontra-se em um momento histórico em que terá que optar entre uma efetividade mínima ou aceitar que outras instâncias assumam o espaço de poder que lhe foi destinado. Por ora, ele vem sofrendo revezes seguidos, seja pela transferência de julgamentos de questões importantes para tribunais arbitrais, seja pela justiça informal aplicada por líderes do tráfico de drogas em regiões de maior pobreza. Se reagir a tempo, será um poder respeitado. Se ficar inerte, seu destino será cada vez mais opaco.


[1] Processo 4001386-13.2013.8.26.0011 – Execução de Título Extrajudicial, Grand Brasil Litoral Veículos e Peças Ltda. contra M. A. S.
[2] TS-SP suspende decisões de bloqueio de passaporte e CNH de devedores. In: Valor Econômico, 24/1/2017: http://www.valor.com.br/legislacao/4845168/tj-sp-suspende-decisoes-de-bloqueio-de-passaporte-e-cnh-de-devedores, acesso 8/6/2017.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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