Mensagem de Reinhard Zimmermann sobre a tradução de The Law of Obligations
9 de novembro de 2016, 7h00
O Direito Romano e o Direito Privado moderno pareciam constituir dois mundos intelectuais diferentes. Mesmo para um estudante de segundo ou terceiro ano de Direito, no entanto, era fácil notar que existiam conexões entre eles: as máximas jurídicas latinas como in pari turpitudine[2], interpretatio contra proferentem[3], impossibilium nulla obligatio[4]; conceitos jurídicos fundamentais como delito, negotiorum gestio [gestão de negócios], diligentia quam in suis [ padrão de diligência esperado de um depositário ao cuidar das coisas alheias como se suas fossem[5]]; as subdivisões sistemáticas como aquelas entre contrato e delito; o direito das obrigações e direitos reais; ou ainda, entre empréstimos de consumo [mútuo] e empréstimos de uso [comodato]: em praticamente todos os níveis de terminologia para regras, princípios, institutos e argumentação jurídica, muito do existente no Direito moderno, sob vários aspectos, reputava-se tão familiar quanto interessantemente diferente para o estudante de Direito Romano. Tal se mostrou verdadeiro quando analisei o Direito existente além das fronteiras da Alemanha moderna: o Direito francês, o Direito italiano e o Direito inglês apresentavam-se como construções intelectuais autocontidas e certamente pareciam ser diferentes em alguns aspectos. Havia, no entanto, algo que também parecia ser muito familiar.
Eu fui particularmente afortunado ao ser nomeado para meu primeiro cargo acadêmico, uma cátedra de Direito Romano e Comparado, na Universidade da Cidade do Cabo, em 1981. Eu, portanto, deveria lecionar duas matérias que atraíam a minha atenção. Além disso, a utilização do Direito romano-holandês[6] na África do Sul é de particular interesse tanto para o historiador do Direito quanto para o comparatista. De um lado, a tradição canônico-romana do ius commune sobreviveu e prevaleceu no continente europeu até ser substituída pelas grandes codificações. Por outro lado, o Direito romano-holandês clássico experimentou uma recepção de conceitos, regras e padrões de pensamento de common law inglês.
A África do Sul, portanto, deu margem à formação de um sistema jurídico misto: uma síntese de civil law e de common law com sua identidade característica própria. Na Universidade da Cidade do Cabo dos anos 1980, o Direito Romano ainda era uma matéria obrigatória. Era óbvio para mim que ela não deveria ser lecionada com um espírito antiquado, mas como os fundamentos de uma tradição que moldou, de maneira decisiva, nossa identidade jurídica. Foi essa a origem de meu livro sobre os fundamentos romanos da tradição civilista no Direito das Obrigações. Tem-se afirmado, ocasionalmente, que a abordagem adotada no livro tem um viés favorável à perpetuação de uma lógica de continuidade. Não acredito que isso seja verdade, uma vez que a ênfase se dá tanto na mudança quanto na continuidade. Nas palavras de Harold Berman[7], que eu tenho frequentemente citado: “O conceito de (…) um sistema jurídico dependeria, para sua vitalidade, da crença no caráter contínuo do Direito, de sua capacidade para o crescimento ao longo de gerações e séculos – uma crença que é unicamente ocidental. O corpo do Direito apenas sobrevive porque contém um mecanismo embutido para mudanças orgânicas.”
O Direito Privado europeu submeteu-se a constante adaptação e tem sido capaz de reagir às alterações de circunstâncias e novas situações, além de ter sempre demonstrado uma capacidade extraordinária de integração. O Direito Romano Medieval não era mais o Direito Romano da Antiguidade Clássica: o usus modernus pandectarum não correspondia mais ao usus medii aevi, e a doutrina jurídica pandectista estava a uma longa distância do usus modernus. Ao mesmo tempo, existiam consideráveis variações regionais na aplicação do Direito Romano. No início do período moderno, portanto, encontramos o Direito Romano-Holandês existindo lado a lado com o Direito Romano-Frísio, o Direito Romano-Escocês, o ius Romanum Saxonicum, o Hispanicum, etc.
Muitas questões jurídicas individuais eram resolvidas diferentemente em diferentes partes da Europa. Os textos contidos no Corpus Juris não eram mais considerados como uma autoridade vinculante: era possível generalizar e expandir as ideias neles contidas, examiná-los criticamente, ou ainda, declará-los ab-rogados em razão do desuso. Ainda assim, eles constituíam a “gramática jurídica” para a discussão dos problemas de Direito Privado, porque, em todas as universidades da Europa, ocupavam o lugar central nos estudos do direito secular. A tradição civilista, portanto, é marcada por uma considerável diversidade, tanto quanto por uma unidade intelectual fundamental e pela mudança, tanto quanto pela continuidade.
Hoje, essa unidade intelectual fundamental é obscurecida pela existência de uma grande variedade de sistemas jurídicos nacionais, e, acima de tudo, pelo fato de que esses sistemas jurídicos nacionais são amplamente vistos como sistemas de regras jurídicas compreensivas e autônomas. Obviamente, existem muitas diferenças entre as modernas codificações do Direito Privado. É igualmente óbvio, entretanto, que elas constituem manifestações de uma e da mesma tradição jurídica. Contrariamente ao que tem sido dito algumas vezes, o estudo comparativo envolve a exploração tanto das similitudes quanto das diferenças; e o estudo histórico pode contribuir para explicar essas diferenças (podem as diferenças ser atribuídas ao ambiente cultural, ao desenvolvimento social, à base econômica, a acidentes históricos, a desentendimentos, ou à escolha de fontes diferentes?) e também para recriar uma consciência sobre o que nossos modernos sistemas jurídicos têm em comum. Esse tipo de questionamento crítico, eu creio, pode pavimentar o caminho para discussões racionais incluindo, no âmbito da tentativa de harmonização das leis vigentes na Europa, a ocorrência de uma discussão racional sobre como as diferenças atualmente existentes podem ser superadas.
É com prazer que vejo o início do empreendimento destinado à tradução de meu livro sobre os fundamentos civilistas do Direito das Obrigações para a língua portuguesa. Eu gostaria de agradecer a todos os que estão contribuindo para a tradução, em particular ao meu amigo e colega Otavio Luiz Rodrigues Jr., bem como o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e seu presidente, o doutor João Pedro Lamana Paiva. Espero que a tradução sirva para relembrar os estudantes e profissionais do Direito no Brasil que eles fazem parte de uma grande tradição jurídica, que une nossos países e continentes.
Reinhard Zimmermann. Diretor do Instituto Max-Planck para o Direito Estrangeiro e Privado Internacional, Hamburgo, Alemanha. Senador da Sociedade Max-Planck. Professor Catedrático de Direito Civil, Direito Romano e História do Direito da Universidade de Ratisbona (Baviera, Alemanha). Presidente da Associação Alemã de Professores de Direito Civil. Membro da Academia Bávara de Artes e Ciências. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo
[1] As notas de rodapé e os trechos entre colchetes não integram o texto original.
[2] “Onde ambas as partes tiverem agido de forma ilícita ou imoral, o possuidor está, comparativamente, em uma melhor posição, e portanto, não deverá ser obrigado à restituição.” (ZIMMERMANN, Reinhard. Direito Romano e Cultura Europeia. Tradução de Otavio Luiz Rodrigues Junior e Marcela Paes de Andrade Lopes de Oliveira. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 7. ano 3. p. 241-276. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun. 2016.)
[3] “Em caso de dúvida, determinada cláusula deverá ser interpretada desfavoravelmente àquele que a estipulou, e favoravelmente àquele que se obriga” (tradução livre) (LEWIS, Carole. Interpretation of Contracts. In: ZIMMERMANN, Reinhard; VISSER, Daniel. Southern Cross: Civil Law and Common Law in South Africa. Oxford: Clarendon, 1996, p. 214.)
[4] “Nula é a obrigação impossível.” (ZIMMERMANN, Reinhard. Direito Romano e Cultura Europeia. Tradução de Otavio Luiz Rodrigues Junior e Marcela Paes de Andrade Lopes de Oliveira. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 7. ano 3. p. 241-276. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun. 2016.)
[5] Nesta linha, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Clarendon, 1996, p. 210.
[6] Direito não codificado, aplicado na Holanda nos séculos XVII e XVIII, que consiste em uma variante do direito continental europeu de matriz romano-germânica. Foi substituído pelo modelo de codificação napoleônica após a invasão da República dos Países Baixos pelas forças francesas. Esse direito permaneceu sendo aplicado na África do Sul e em várias colônias holandesas em África e Ásia.
[7] Harold J. Berman (1918-2007), jurista norte-americano, especialista em Direito Comparado, Direito Internacional e Direito Russo-Soviético, além de Filosofia do Direito e História do Direito. Foi catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Harvard.
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