Opinião

A interpelação judicial e o erro da ministra Rosa Weber

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  • é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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23 de maio de 2016, 16h16

Dispõe o artigo 144 do Código Penal que "se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa".

Esse dispositivo da lei penal consagra em nosso ordenamento jurídico o que se convencionou chamar de "pedido de explicações em juízo", ou "interpelação judicial criminal". Nesse procedimento, o interpelado não é obrigado a comparecer em juízo, a prestar esclarecimentos, exibir documentos, fazer, deixar de fazer ou tolerar que se faça alguma coisa. O que se pretende com essa medida, de caráter meramente cautelar e preparatória, é o esclarecimento de frases ou expressões, escritas ou verbalizadas, caracterizadas por sua dubiedade, equivocidade ou ambiguidade, a fim de se verificar a prática de algum crime contra a honra do interpelante. Visa, portanto, em última análise, a instrumentalizar uma futura ação penal de natureza condenatória por um dos crimes contra a honra.

Assim, a finalidade única da interpelação judicial criminal é a de “fixar a intenção do responsável pelo escrito, no endereço da calúnia, difamação ou injúria contidas no mesmo”[1], não cabendo em absoluto “a apreciação de questão de fundo”[2], após o que os “autos serão entregues aos interessados, independentemente de traslado, abstendo-se a Corte de qualquer valoração sobre as explicações ofertadas”[3]

Como o Código de Processo Penal não estabelece um rito a ser seguido quando da interpelação judicial, deve ser observado o disposto no artigo 726 do Código de Processo Civil, como permite o artigo 3º do Código de Processo Penal.

Como se disse acima, após, e se prestadas as explicações, não cabe ao juízo qualquer avaliação acerca do seu respectivo conteúdo, tampouco exame da legitimidade jurídica de uma eventual recusa em prestá-las. Tais matérias devem ser enfrentadas em processo diverso, caso haja o exercício de uma ação penal imputando ao interpelado crime contra a honra do interpelante.

Igualmente, o interpelado não está compelido a responder ao pedido de explicações. Poderá ficar silente, simplesmente não responder à notificação, sequer sendo necessário comunicar ao juízo que não irá responder. Não é preciso, portanto, dar ciência porque não o fez ou não o fará. Suas razões não interessam ao Poder Judiciário. Decididamente, não é dessa atenção que o Poder Judiciário precisa em uma República.

Pois bem.

Sabe-se que seis deputados federais utilizaram-se do artigo 144 do Código Penal para "cobrar" explicações à presidente Dilma Rousseff em relação ao fato de ter afirmado em discursos, eventos públicos e pronunciamentos oficiais  que o processo de impeachment constituiria um suposto “golpe de Estado”. Os interpelantes pedem, então, que a presidente da República esclareça:

1) A interpelada ratifica as afirmações — proferidas em distintos eventos — de que há um golpe em curso no Brasil?
2) Quais atos compõem o golpe denunciado pela interpelada?
3) Quem são os responsáveis pelo citado golpe?
4) Que instituições atentam contra seu mandato, de modo a realizar um golpe de Estado?
5) É parte desse golpe a aprovação, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, da instauração de processo contra a interpelada, por crime de responsabilidade, nos termos do parecer da Comissão Especial à Denúncia por Crime de Responsabilidade 1/2015, dos senhores Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Conceição Paschoal?
6) Se estamos na iminência de um golpe, quais as medidas que a interpelada, na condição de chefe de governo e chefe de Estado, pretende tomar para resguardar a República?

Entendemos que a interpelação sequer deveria ter sido conhecida. A ministra Rosa Weber errou. Deveria ter negado seguimento ao pedido de explicações e determinado o seu imediato arquivamento. Senão vejamos.

A utilização da expressão "golpe" ou "golpe de Estado" vem sendo utilizada reiteradamente por diversos juristas do Brasil e do mundo, inclusive chefes de governo e de Estado de outros países. Vários parlamentares brasileiros e estrangeiros também. Personalidades das mais diversas áreas das ciências. Eu próprio, membro do Ministério Público e professor de Direito Processual Penal, já afirmei em diversos eventos que tenho participado que está em curso um golpe civil no Brasil e assim continuarei afirmando.

É preciso atentar-se para a semântica quando se utiliza a palavra "golpe" no (triste e lamentável) contexto pelo qual atravessa a história brasileira. Um dos maiores juristas do Brasil, por exemplo, o professor Marcelo Neves, já afirmou:

"Nessas circunstâncias, o processo de impeachment atua como um equivalente funcional a um golpe de Estado. O objetivo é, na verdade, destituir a Chefa de Estado com base na distorção de um instituto constitucional legítimo. Ao falar de equivalente funcional a um golpe de Estado no sentido clássico da expressão, não descarto ser também adequado afirmar-se que se trata de um golpe parlamentar, judicial e midiático. Retomando e relendo aqui uma velha distinção de Louis Althusser e entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológico de Estado, um tanto fora de moda, pode-se dizer que, enquanto na versão clássica do golpe, a dimensão repressiva do aparato estatal sobressai, na versão atual, “moderna” ou (se quiserem) “pós-moderna”, prevalece a dimensão ideológica de agentes estatais e atores da sociedade civil. (…) Tudo isso é a expressão de uma conspiração protagonizada por organizações empresariais midiáticas corruptamente parciais, por um parlamento dominado por uma cleptocracia, um Ministério Público ao mesmo tempo parcial e anfíbio, e um judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo politicamente capturado por um projeto golpista liderado em sua origem por um gângster, ainda solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e manipular o processo"[4] (grifamos).

Ora, ora… Será que o professor Marcelo Neves desconhece significantes e significados[5]? Aliás, o sexteto indignado deveria interpelar, se tivesse coragem (e não tem, evidentemente), o ministro Marco Aurélio, que, ao ser questionado se a presidente da República tinha razão em chamar o processo de impeachment de "golpe", afirmou:

“Acertada a premissa, ela tem toda razão. Se não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento, esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como golpe.” (grifamos)[6].

Ademais, uma questão que passou desapercebida pela ministra Rosa Weber (e fez uma chefe de governo e de Estado passar por mais um — desnecessário — constrangimento) diz respeito à ilegitimidade (processual) dos interpelantes.

Apenas tem legitimidade para propor a interpelação judicial em matéria penal quem foi, ainda que de forma reflexa ou indireta, supostamente ofendido. Ora, a presidente da República não citou nomes, sequer instituições. Na verdade, os interpelantes "vestiram a carapuça" e, infelizmente, tiveram o respaldo da ministra Rosa Weber.

A propósito (e eu nem gostaria de fazê-lo), no próprio Supremo Tribunal Federal já foi arquivada a Petição 4.553, ajuizada contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva pelo cidadão brasileiro Clóvis Victorio Mezzomo, que alegava ter se sentido pessoalmente ofendido pela declaração do ex-presidente, feita à imprensa, de que a então crise econômica mundial era “fomentada por comportamentos irracionais de gente branca, de olhos azuis, que antes da crise pareciam que sabiam tudo, e que agora demonstra não saber nada”. Como cidadão de ascendência italiana, branco e de olhos verdes, o interpelante afirmou que se sentia pessoalmente ofendido e pretendia processar o ex-presidente. Ao analisar o caso, o ministro Celso de Mello explicou que a interpelação judicial, com pedido de explicações, só é cabível quando existe dúvida ou ambiguidade nas declarações questionadas, “ou onde inexistir qualquer incerteza a propósito dos destinatários de tais declarações”. Onde não houver dúvida quanto ao conteúdo das afirmações questionadas, não cabe a interpelação judicial, arrematou. Segundo Celso de Mello, é exatamente isso o que aconteceu no caso. "O interpelante não revelou dúvida ou incerteza quanto às afirmações do presidente, mas frisou que se sentiu pessoalmente ofendido pela declaração", disse o ministro.

No mesmo sentido:

“SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PETIÇÃO 4.005-8 – A interpelação processa-se perante o órgão judiciário que seria competente, em tese, para julgar a ação penal principal em face do suposto ofensor (cf., nesse particular, ressalto o julgamento da Questão de Ordem na Petição nº 851/SE, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno,unânime, DJ 16.9.1994).Tendo em vista que o interpelado é Senador da República, o processamento desta interpelação compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), nos termos do art. 102, I,“b”, da Constituição Federal. Quanto à legitimidade ativa para o pedido, cabe registrar o seguinte pronunciamento unânime do Plenário desta Corte no Agravo Regimental na PET nº 1.249/DF, Rel.Min. Celso de Mello, DJ 9.4.1999:“LEGITIMIDADE ATIVA PARA O PEDIDO DE EXPLICAÇÕES EM JUÍZO. Somente quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. A utilização dessa medida processual de caráter preparatório constitui providência exclusiva de quem se sente moralmente afetado pelas declarações dúbias, ambíguas ou equívocas feitas por terceiros.Tratando-se de expressões dúbias, ambíguas ou equívocas, alegadamente ofensivas, que teriam sido dirigidas aos Juízes classistas, é a estes – e não à entidade de classe que os representa – que assiste o direito de utilizar o instrumento formal da interpelação judicial. O reconhecimento da legitimidade ativa para a medida processual da interpelação judicial exige a concreta identificação daqueles (…) que se sentem ofendidos, em seu patrimônio moral (que é personalíssimo), pelas afirmações revestidas de equivocidade ou de sentido dúbio” – (AgRg na PET nº 1.249/DF, Rel.Min. Celso de Mello, Pleno, unânime, J9.4.1999 – RTJ 170/60/61).Não desconheço o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que, apesar do teor literal da parte final do art. 144 do Código Penal, no procedimento preparatório da interpelação para explicações de ofensas equívocas, não caberia ao juiz decidir sobre a significação penal da eventual recusa de prestá-las ou sobre serem elas satisfatórias.Tal assertiva não elide, contudo, o poder-dever de decidir, antes de ordenar a interpelação requerida,quanto à sua admissibilidade processual, que implica pronunciamento sobre os pressupostos do pedido da medida cautelar preparatória ou a respeito da viabilidade da prenunciada ação penal, a cuja eventual propositura vise o pedido de explicações (cf., nesse ponto, a decisão monocrática de minha lavra, na PET nº 3.556/DF, DJ18.11.2005).A interpelação judicial destina-se exclusivamente ao esclarecimento de situações alegadamente dúbias ou equívocas. Ou seja, não é cabível quando ausente a demonstração de circunstância ensejadora de ambigüidade no discurso supostamente contumelioso, à obtenção de provas penais pertinentes a definição da autoria do fato delituoso.Nesse particular, é pertinente transcrever o inteiro teor da ementa do julgamento da Questão de Ordem na PET nº 851/SE, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, unânime, DJ16.9.1994, verbis:“EMENTA: INTERPELAÇÃO JUDICIAL CONTRA MEMBRO DO CONGRESSO NACIONAL – LEI Nº5.250/67 (ART. 25) – PROVIDÊNCIA DE NATUREZA CAUTELAR PENAL – COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL –PRESSUPOSTOS DO PEDIDO DE EXPLICAÇÕES EM JUÍZO – INOCORRÊNCIA – DESCABIMENTO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL.- A interpelação judicial fundada na Lei de Imprensa (art. 25) ou no Código Penal (art. 144), desde que requerida contra membro do Congresso Nacional, deve ser formulada perante o Supremo Tribunal Federal, por constituir medida cautelar preparatória de ação penal referente aos delitos contra a honra.- O pedido de explicações em juízo acha-se instrumentalmente vinculado à necessidade de esclarecer situações, frases ou expressões, escritas ou verbais,caracterizadas por sua dubiedade,equivocidade ou ambigüidade. Ausentes esses pressupostos, a interpelação judicial,porque desnecessária, revela-se processualmente inadmissível.- A interpelação judicial, por destinar-se exclusivamente ao esclarecimento de situações dúbias ou equívocas, não se presta, quando ausente qualquer ambigüidade no discurso contumelioso, à obtenção de provas penais pertinentes à definição da autoria do fato delituoso.- O pedido de explicações em juízo não se justifica quando o interpelante não tem dúvida alguma sobre o caráter moralmente ofensivo das imputações que lhe foram dirigidas pelo suposto ofensor” – [PET (QO)nº 851/SE, Pleno, unânime, DJ 16.9.1994]. (…) Na espécie, a interpelação é incabível porque ausentes os indispensáveis pressupostos de “dubiedade, equivocidade ou ambigüidade, às expressões que dele sejam objeto” [PET (QO) nº 851/SE, Rel. Min. Celso de Mello,Pleno, unânime, DJ 16.9.1994]. Da simples leitura dos termos da inicial, a ausência de tais elementos é inequívoca, porque o requerente, dentre as indagações que pretende ver respondidas pelo requerido, em nenhum momento, coloca em dúvida a compreensão e a alegada ofensividade das declarações, procurando apenas obter sua eventual ratificação e/ou a contextualização de sua suposta divulgação pelo requerido.Ante o exposto, na linha da jurisprudência deste STF, nego seguimento a esta interpelação por se tratar de pedido manifestamente incabível, nos termos do art. 21, § 1º, do RI/STF.Após o trânsito em julgado desta decisão,arquivem-se estes autos.Publique-se.Intime-se.Brasília, 18 de junho de 2007.”

Portanto, não há dubiedade, equivocidade ou ambiguidade no uso da expressão "golpe de Estado" ou da palavra "golpe". Aliás, pelo contrário, é de uma clareza solar! E, não as havendo, incabível seria dar seguimento à interpelação. Onde reside a dúvida em relação às afirmações da presidente da República? Alguém as tem? Será que a ministra Rosa Weber? Evidentemente não se pode e não se deve explicar o que já está claro. Eventual discordância com as manifestações da presidente da República não autoriza a providência cautelar. Mais um erro de um ministro da suprema corte do Brasil, coincidentemente no bojo da crise política e no contexto do golpe (sem aspas).


[1] MIRANDA, Darcy Arruda, Comentários à Lei de Imprensa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 1995, p. 452.
[2] TACRIMSP – AC – Rel. Silva Pinto – JUTACRIM 82/338.
[3] Superior Tribunal de Justiça, Petição – Rel. Bueno de Souza – RT 656/336.
[4] http://www.ocafezinho.com/2016/05/08/marcelo-neves-um-dos-principais-constitucionalistas-do-brasil-denuncia-o-golpe.
[5] Professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Bremen, com bolsa do DAAD (1991). Obteve livre-docência pela Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça (2000). Foi bolsista-pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Frankfurt am Main, Alemanha (2000). Foi Jean Monnet Fellow no Departamento de Direito do Instituto Universitário Europeu, em Florença, Itália (2000-2001).
[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/marco-aurelio-diz-que-impeachment-sem-respaldo-juridico-transparece-como.

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  • é Procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (UNIFACS). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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