Lei deve — e precisa — ser cumprida até por quem age em seu nome
9 de junho de 2016, 19h19
*Texto originalmente publicado na edição desta quinta-feira (9/6) do jornal Correio Braziliense.
Mostra-se típico de determinados regimes os agentes da autoridade do Estado exercerem suas atribuições com manifesto abuso de poder. É do ilegítimo excesso acrescentado à ordem pelo agente que a executa — mesmo emanada esta de autoridade competente e aparentemente expedida dentro dos parâmetros normativos disciplinadores da questão sobre que versa — que aqui se está a falar. Os franceses denominam tal deformidade da atividade pública de détournement de pouvoir — literalmente desvio de poder —, excrescência que acomete a sinergia estatal, derivada da inclinação mais ou menos atrabiliária ou perversa do executor material da ação, que passa então a atuar não no interesse público, mas movido por inferiores razões pessoais.
Da perspectiva do Estado Democrático de Direito, por exemplo, ordem de prisão expedida por juiz competente no bojo de feito criminal em que esteja observado o devido processo legal é para ser cumprida nos estritos parâmetros da legalidade, da razoabilidade e, sobretudo, dentro dos limites que no mandado se contêm. Nem mais, nem menos. Fazer saber ao cidadão que sofre a limitação em seu direito de liberdade o nome da autoridade que a ordenou (mesmo que se trate de “condução coercitiva inaugural”… se esta porventura existisse no nosso ordenamento jurídico), os motivos determinantes do ato, os fundamentos jurídicos da medida constritiva, o direito à guarda do silêncio, e seu encaminhamento ao estabelecimento prisional que estiver designado para a custódia, sem shows nem espetáculos. Simples assim.
Em caso de resistência ou de provável desfecho violento, a lei permite seja o cidadão contido com o uso de algemas, balizado por esse binômio o critério autorizativo do uso de força legal. Em não havendo ameaça de reação física ou ausente a periculosidade, diz a lei — e também o STF — o uso das algemas não resta autorizado.
Nenhuma outra imposição — sobremodo a de caráter humilhante ou degradante — pode ser feita à pessoa que se vê presa, quanto à sua postura corporal, uma vez se mostre disposta a acatar pacificamente o comando que lhe é dirigido.
Apesar de todos os normativos que tratam da exigência de se respeitar a pessoa submetida à custódia do Estado (artigo 5° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigos, 1º, inciso III, 5º, incisos III, XLIX, LXIII e LXIV, da Constituição da República, artigo 5°, 1 e 2, do Pacto de San José da Costa Rica, artigo 41 da Lei 7.210/84, Lei de Execução Penal, entre outros), o que se tem visto é que as pessoas detidas — especialmente nas célebres operações policiais, inclusive na mais notória delas, a “lava jato” —, são obrigadas a observarem postura corporal padronizada, mesmo quando não perigosas ou renitentes, qual seja, sob as câmeras da mídia descerem das viaturas e caminharem sempre em fila indiana, com as duas mãos nas costas e cabeça baixa. Essa é a determinação que recebem dos policiais, quando de sua detenção, sob ameaça de serem algemados. Por quê? É isso legal? Qual a simbologia aí figurada? Essa non scripta lex, essa praxis, é atentatória à dignidade da pessoa?
Para responder a tais indagações, vejamos o que nos informam os estudos da linguagem corporal em relação a esses comportamentos: cabeça baixa indica admissão de culpa, autorreprovação, ao passo que mãos às costas explicitam vergonha, submissão total, inferioridade, rebaixamento.
O cidadão que é detido para fins investigatórios, sem culpa formada e presumidamente inocente, como afirma nossa Lex Mater, pode ser submetido a tais vexames, verdadeira degradação pública? A resposta é não! Não há preceito ou norma legal que a tal postura obrigue. Logo, eventual insurgência contra essa ordem ilegal não parece configurar ilicitude.
Ao contrário, nosso ordenamento jurídico veda tal imposição humilhante e depreciativa, na medida em que implica tratamento que vulnera a dignidade de um presumido inocente. Aliás, incrimina explicitamente (Lei 4.898/1965) o abuso consubstanciado na dispensa de tratamento vexatório à pessoa sob custódia do Estado, punindo, em três esferas distintas, os responsáveis por tal ato.
Como, então, continuar a assistir diuturnamente, em horário nobre, ao vivo e em cores, ao escancarado descumprimento das leis? Não é possível!
Será preciso lembrar que a lei deve — e precisa — ser cumprida, necessariamente e sempre, mesmo por quem se acha investido do enforcement estatal e age em seu nome?
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