Tribuna da Defensoia

Defensor público pode alegar objeção de consciência?

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  • é defensor público federal especialista em ciências criminais professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”. Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

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12 de janeiro de 2016, 12h28

Concluí na coluna anterior[1] que o defensor público pode exercer a prerrogativa de deixar de patrocinar a ação (ou a defesa) quando o assistido insista para que seja sustentada uma tese contrária aos direitos humanos. Espero que o leitor compreenda corretamente esse entendimento e perceba que não estou admitindo a possibilidade de o defensor recusar atendimento a algum assistido que tenha cometido um crime grave, e sim que, em situações excepcionais, a independência funcional pode encontrar refúgio numa defesa criminal eticamente comprometida com os direitos humanos, autorizando, consequentemente, que o defensor não encampe determinada tese.

Para esclarecer ainda mais, vejamos alguns exemplos que ilustram a diferença entre recusar a defesa do assistido e recusar a sustentação de determinada tese defensiva requerida ou assumida pelo assistido: (a) o assistido é acusado de feminicídio ou de lesão corporal grave contra a sua mulher e alega que somente praticou a conduta para defender a própria honra diante da traição daquela com um vizinho. Nesse caso, não pode o defensor público recusar a defesa do assistido sob o argumento de que a violência contra mulheres é um crime grave e viola direitos humanos. A defesa deve ser exercida. No entanto, o defensor não está obrigado a sustentar uma tese que legitima a violência contra mulheres, retirando-lhes a condição de vítima; (b) o assistido é acusado de lesão corporal grave contra um homossexual e alega que somente praticou a conduta para defender a própria honra, que teria sido ameaçada por um “flerte” dirigido pela vítima. Não poderá o defensor público recusar a defesa do assistido sob o argumento de que a violência contra homossexuais resulta violação para os direitos humanos do público LGBT, mas o defensor — igualmente — não estará obrigado a sustentar a tese da legítima defesa da honra; (c) o assistido, policial, é acusado de torturar um preso e alega que somente praticou a conduta porque a vítima havia sido condenada pela prática do crime de estupro contra uma criança. O defensor, embora não possa recusar a defesa do policial, não estará obrigado a sustentar a legitimidade da tortura; (d) o assistido é acusado de cometer o crime de estupro contra a sua mulher e alega que somente praticou a conduta porque a vítima vinha se recusando há tempos a ter qualquer relação sexual com ele, desobedecendo, portanto, em seu entender, um dever conjugal. O defensor não poderá recusar a defesa do assistido, mas em absoluto não estará obrigado a sustentar a tese de que o marido não pode ser sujeito ativo do crime de estupro[2]; (e) o assistido é acusado de cometer o crime de injúria racial contra a vítima, chamando-a de “macaco” e oferecendo-lhe uma banana, tendo alegado que negros integram uma raça inferior e que não têm direito à dignidade humana. O defensor estará obrigado a transportar para a defesa técnica esse sentimento racista? Evidentemente que não, embora não possa recusar a defesa do assistido sob o argumento de que “não defende racistas”.

Uma defesa criminal efetiva não pressupõe que o defensor necessariamente legitime a conduta de seu assistido, havendo outras possibilidades para exercitar a defesa técnica, como, por exemplo, explorando a culpabilidade diminuída ou mesmo anulada do acusado diante de seu histórico de vida, questões probatórias, discussão da dosimetria da pena etc. Isso não implica concluirmos que a defesa criminal não deva estar um passo a frente da discussão jurídica travada nos tribunais em se tratando de algumas condutas cuja criminalização ofenda postulados essenciais que dizem respeito à alteridade, à vida privada, à uma política-criminal minimalista etc., no que talvez se insira a discussão da criminalização do aborto, do uso e do comércio de drogas, entre outras condutas atualmente criminalizadas.

Volto a dizer: não estou afirmando que o defensor público tem a liberdade para escolher se defende ou não determinado assistido acusado de praticar um crime grave ou atentatório aos direitos humanos. A Defensoria não pode escolher os seus assistidos. Conforme muito bem observam Binder, Cordero e Hartmann, não é aceitável discriminar entre os acusados a serem atendidos por razões morais, políticas ou de qualquer outro tipo, já que essas razões são irrelevantes do ponto de vista da função institucional da defesa. Os autores ainda advertem:

“Não é aceitável que se exclua usuários [do serviço prestado pela Defensoria Pública] por razão do tipo de delito que cometeram ou por suas qualidades pessoais. Tem ocorrido casos em que os defensores discriminam, porque se tem pretendido que não se pode defender imputados vinculados a graves violações a direitos humanos ou que cometeram delitos considerados ‘aberrantes’ (como violência ou abuso de menores, delitos sexuais, violência contra as mulheres, entre outras) (…) Todas essas medidas são inadmissíveis, pois poderiam levar a que determinada categoria de delitos ou de imputados ficasse sem atenção por parte da defesa penal pública, o que é inaceitável e contrário a normas básicas de todos os ordenamentos jurídicos da região”[3].

Podemos aprofundar ainda mais o debate e questionar: a independência funcional assegura ao defensor público a recusa de atuação sob o argumento de objeção de consciência? Convicções morais, políticas, religiosas etc., enfim, as convicções mais profundas do defensor podem autorizá-lo a não atuar em determinados casos? Apesar de o tema ser complicado, tanto no plano teórico quanto em sua repercussão prática, me parece possível avançarmos com alguma reflexão, principalmente para que a doutrina institucional esteja preparada para fornecer soluções para os casos reais que certamente já ocorrem no âmbito das Defensorias.

Pois bem. A objeção de consciência, entendida como a possibilidade de o cidadão descumprir uma lei (ou uma obrigação legal) quando esta lhe imponha contradições com suas convicções mais íntimas, foi tradicionalmente pensada na relação vertical cidadão-Estado. Quando se fala, portanto, em objeção de consciência invocada por um funcionário público para descumprir uma obrigação legal decorrente de seu cargo (tratando-se do defensor público, a obrigação de exercer a defesa criminal), tenho a impressão de que o instituto perde consideravelmente a sua essência, para além, ainda, de confundir o público com o privado.

Um juiz pode invocar a objeção de consciência e se declarar suspeito para autorizar um aborto permitido pela lei, alegando acreditar que só Deus pode tirar uma vida? Um membro do Ministério Público pode invocar a objeção de consciência e se declarar suspeito para exarar parecer em ação de divórcio com interesse de incapaz, alegando que o casamento é obra divina e não pode ser rescindido na Justiça?

Esse assunto ganhou notoriedade recentemente nos EUA, após a decisão da Suprema Corte americana definindo a constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a qual foi desafiada por uma funcionária pública que se recusou a emitir licenças de casamento para casais homossexuais, afirmando que atuava por “mandamento divino”[4].

Um defensor público que seja homofóbico pode recusar a defesa de um homossexual acusado de ter praticado o crime de desacato? Uma defensora pública que seja militante feminista pode se recusar a defender um assistido acusado de praticar o crime de violência doméstica contra a mulher? Um defensor público que seja extremamente religioso pode se recusar a defender uma assistida acusada de aborto? A quantidade de exemplos que podem ser apresentados é proporcional ao grau de polêmica do assunto.

Naturalmente respeitando quem pensa de forma contrária, entendo que não é aceitável, como regra, que os defensores públicos invoquem a objeção de consciência para se recusarem a atuar em determinados casos. Quando se submetem — voluntariamente — ao concurso público para ingresso na carreira, os candidatos sabem (ou deveriam saber) que inevitavelmente irão se deparar com a defesa criminal de assistidos autores de crimes graves. Neste sentido, Binder, Cordero e Hartmann ressaltam que “aquele advogado que sabe que em nenhum caso defenderá um tipo de classe de casos não deve aceitar ser defensor público e quem admita ou contrate os defensores públicos deve adverti-los com clareza”[5].

Conforme já antecipado, porém, essa conclusão deve comportar exceções, pois, do contrário estaria colocando uma pretensão de coerência absoluta acima dos interesses do acusado, inevitavelmente fragilizando o ideal de uma defesa técnica e efetiva. Assim, em casos nos quais o grau de violação de uma convicção íntima seja substancial e ainda veicule uma motivação que não se afaste dos objetivos da Defensoria Pública, entendo que, embora a LC 80/94 não contemple expressamente hipóteses de suspeição, mas apenas de impedimento, poderá o defensor público arguir a própria suspeição, invocando por analogia o artigo 135, parágrafo único do CPC, que diz respeito ao motivo ou foro íntimo, entendimento esse que também encontra amparo em todas as previsões normativas de defesa técnica efetiva.

Em que pese haver divergência no âmbito da magistratura sobre a declinação do motivo íntimo, a ocultação de uma razão invocada para não exercer a função pública não me parece se compatibilizar com o ideal republicano, para além, ainda, de afastar qualquer possibilidade de algum controle jurídico e ético sobre o argumento, como por exemplo, no caso de um defensor público que se recusa a defender homossexuais, o qual seria merecedor de punição disciplinar por conduta manifestamente incompatível com o cargo exercido (e por ele voluntariamente escolhido).

Pode não parecer, mas a defesa criminal também tem os seus dilemas e os seus confrontos éticos, que podem ser mais graves para o defensor público, pois a assistência jurídica por ele prestada não é precedida de um contrato, de uma espontaneidade. O que tem sido tratado como um tabu por alguns e como uma obviedade por outros apenas adiará uma reflexão tão necessária quanto polêmica: afinal de contas, vale tudo na defesa criminal?


[1] Ver Defensor Público pode ser proibido de sustentar alguma tese?
[2] Sobre o assunto, irretocável a conclusão de Nilo Batista, em texto no qual criticava a posição predominante na doutrina (integrada, inclusive, por Nelson Hungria) no sentido de que o marido não poderia ser sujeito ativo dos crimes contra a dignidade sexual: “A posição predominante pode assim ser sintetizada: o marido não pode cometer violência contra a mulher, salvo se for para obrigá-la à conjunção carnal. Se isto faz algum sentido, é o sentido de que a bestialidade e o desrespeito só encontram guarida no matrimônio” (BATISTA, Nilo. Decisões Criminais Comentadas. Rio de Janeiro: Liber Juris,  1976, p. 71).
[3] BINDER, Alberto; CORDERO, Luis; HARTMANN, Mildred. Manual de Defensoría Penal Pública para América Latina y el Caribe. Documento do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), p. 35.
[4] Ver PENALVA, Janaína. Kim Davis e a objeção de consciência. Disponível em: http://jota.info/kim-davis-e-a-objecao-de-consciencia Acessado no dia 07/01/2016.
[5]Manual de Defensoría Penal Pública para América Latina y el Caribe…, p. 36.

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  • é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.

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