No TJ-MG o MP não precisa provar acusação; lá invertem o ônus da prova
5 de fevereiro de 2015, 7h00
Mas para quem achava que já víramos tudo, tomo conhecimento, por intermédio do conjurista Felipe Soares, de um conjunto de inconstitucionalidades que vem ocorrendo em Minas Gerais. Os leitores sabem de minha denuncia acerca do concurso público para o Ministério Público das Alterosas, em que o gabarito negava a existência do princípio da insignificância (ler aqui). Pois me deparo, agora, com dezenas de julgados — recentes — contendo teses das mais retrógradas em sede de direito penal e processual penal. Vejamos algumas:
"Presume-se a responsabilidade do acusado encontrado na posse da coisa subtraída, invertendo-se o ônus da prova, transferindo-se ao agente o encargo de comprovar a legitimidade da detenção da "res furtiva", mormente se não há prova da escusa apresentada." (Processo 1.0525.12.008540-8/001.
Há dezenas de julgados com essa mesma fundamentação, verbis:
“No crime de furto, presume-se a autoria se a coisa furtada é encontrada na posse injustificada do acusado, incumbindo ao possuidor demonstrar, de forma inequívoca, que a adquiriu legitimamente, a fim de elidir eventual delito” (10016130006501001 MG).
A pergunta que faço é: A Constituição não vale para aqueles lados? Inversão do ônus da prova no processo penal? Como assim?
Não há — e não pode haver — presunção de culpabilidade no direito penal. Além disso, o artigo 5º do Código de Processo Penal (CPP) ainda vale. E não há responsabilidade objetiva. Não há inversão do ônus prova. Nem mesmo é permitido usar a tese em direito penal de que álibi não provado, réu culpado. Quem deve provar a acusação é o Estado. O réu pode permanecer em silêncio. Esse silêncio não é imoral. Não é inconstitucional. A responsabilidade é só do Ministério Público. Mesmo que o sujeito seja pego com a mão na massa, isso não quer dizer que se inverta o ônus da prova. Aliás, se alguém é encontrado de posse da res furtivae, tal circunstância não passa de prova indiciária. Não há uma relação de causa e efeito inexorável. É como o sujeito que entra em uma sala molhado. E lá fora está chovendo. Isso quer dizer que ele veio da chuva? Provavelmente. Mas não prova que, por exemplo, não possa ter sido molhado de outro modo. Simples assim.
É lamentável que ainda hoje, no Brasil, queira-se aplicar no direito processual penal uma tese do, pasmem, direito do consumidor. Sim, no CDC existe a inversão do ônus da prova porque… Por que será? Ah, sim. Porque o consumidor é a parte mais fraca. Hipossuficiente. Pois é. Inverter o ônus da prova no direito penal-processual penal é o mesmo que dizer que, no confronto entre o Estado e o réu, a parte fraca…é o Estado. Dureza. Principalmente se o réu é um acusado de furto.
É tão incrível tudo isso que no processo 1.0701.13.04572300-01 o tribunal inverte também o ônus da prova testemunhal. Explico: segundo o julgado, cabe a defesa infirmar a credibilidade dos policiais depoentes, verbis:
“Para não se crer dos relatos extremamente coerentes dos policiais, civis ou militares, necessário seria a demonstração de seus interesses diretos na condenação do apelante, seja por inimizade ou qualquer outra forma de suspeição, pois, se de um lado o acusado tem razões óbvias de tentar se eximir da responsabilidade criminal, por outro, os policiais, assim como qualquer testemunha, não tem motivos para incriminar inocentes, a não ser que se prove o contrário, ônus que incumbe à Defesa”. (grifei)
Inacreditável. Será que existem professores que ensinam isso nas Faculdades de Minas Gerais? Será que tem algum compêndio jurídico que diz isso? Ou o judiciário das Alterosas tirou isso de um “grau zero de sentido”? Queria saber de onde tiraram que “É pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que a apreensão de bens em poder do suspeito determina a inversão do ônus da prova, impondo ao acusado o dever cabal de explicar e provar os fatos que alega, com o intuito de elidir o delito ou demonstrar a aquisição daqueles”. Vou fazer um HDE (habeas data epistêmico): declinem-me em 24 horas os doutrinadores que sustentam isso.
Tem mais: No processo 1.0024.11.2829.84-1/001, o tribunal criou outra figura jurídica: a presunção do dolo, que, aliado à inversão do ônus da prova, torna impossível a absolvição de qualquer vivente, verbis:
"A posse da res furtiva, aliada às condições da prisão, mediante denúncia anônima, bem como diante da fragilidade da versão do agente e seu envolvimento com a criminalidade, faz presumir o dolo, conduzindo à inversão do ônus da prova, cabendo ao réu demonstrar o desconhecimento".
E a tese tem várias versões. Vejamos esta:
“Inverte o ônus probatório, a teor do disposto no art. 156 do CPP, o acusado que confessa o fato criminoso perante a autoridade policial, mas muda a versão dos mesmos fatos em juízo” (1.0456.06.04.7203-6/001).
No crime de recepção, o tribunal vai na mesma linha, verbis:
“Em se tratando de crime de receptação, em que o bem é apreendido na posse do réu, compete a este provar o desconhecimento quanto à origem ilícita.”(1.0103.13.002247-0/001).
Também para o crime de posse de arma a tese da inversão do ônus da prova vinga nas Alterosas:
“Tendo sido a ré surpreendida na posse da arma de fogo, inverte-se o ônus da prova.” (1.0024.11.283464.-3/001).1
No Processo 1.0342.13.018436.-5/001, além da inversão do ônus da prova, o tribunal nega a semântica mínima do CPP, verbis:
“A forma prevista no art. 226 do Código de Processo Penal, de que a pessoa reconhecida deva ser colocada ao lado de outras, embora aconselhável, não é reputada como essencial na fase judicial”.
Gostei do “embora aconselhável”. E qual é o critério do “desaconselhável”? Haveria um “aconselhavômetro para saber em que momento se deve obedecer o CPP?
O TJ-MG chega a dar efeito ex tunc à posse da res furtivae. Querem ver? Leiam:
"A demonstração da posse pretérita da res furtiva pelo réu induz à inversão do ônus probatório, fazendo-se presumir o dolo, cabendo a ele demonstrar a ignorância da origem ilícita do bem". (Processo 1.0713.09.101347-2/001).
Não satisfeito com o efeito ex tunc dado à posse da res, o tribunal arremeta, desautorizando o STF:
“O princípio da insignificância (bagatela) não foi recepcionado pelo ordenamento jurídico pátrio”. Bingo! Binguísimo!
O que dizer disso? Sem palavras. Os acórdãos que examinei — e foram muitos — são relatados por 11 desembargadores diferentes, o que significa que a tese está disseminada no TJ-MG. Não se trata de uma tese ou atitude voluntarista isolada. Já é uma postura, que, ao que tudo indica, tem o respaldo de pelo menos parte do Ministério Público de MG (basta ver o concurso que sufragou a tese da inexistência da insignificância) e parte do próprio tribunal. Não sei a posição da Defensoria Pública de Minas. Explicações para a coluna são bem vindas.
Portanto, nem é necessário dizer muito sobre essa jurisprudência jurássica sob comento. Inconstitucional. Mas o que impressiona nesse caso é o silêncio eloquente de quem deve fiscalizar a lei e o regime democrático: O Ministério Público. Espero que nos casos em que tal tese foi aplicada pelo TJ-MG, o Ministério Público, como guardião da Constituição, tenha se insurgido. Veementemente. E recorrido ao STJ em favor do acusado. Quando eu era membro do Ministério Público, agia desse modo. Recorria em favor do acusado quando lhe eram negados direitos constitucionais. Bingo!
Um adendo: Em pequena pesquisa na internet, encontrei alguns artigos firmados por penalistas falando da possibilidade da inversão do ônus da prova, usando para tal a clássica frase de Malatesta (aquele que Mal-Atesta) de que o ordinário se presume e só o extraordinário de presume (sic). Seguramente quem sustenta isso não leu o que o Mal-atesta escreveu. Sim, porque tive a pachorra de ler o tal livro escrito no final do século XIX. De fato, reconheço que o-que-mal-atesta disse foi isso mesmo… só que duas páginas depois ele se desdiz. Na verdade, o livro é um queijo suíço. Mas como em Pindorama se lê só a orelha, dá nisso (para quem duvida, leiam coluna minha sobre a AP 470, em que enfrento essa afirmação do N. Malatesta – ler aqui).
Observação: peço desculpas pela ironia, mas, do modo como se apresentam os tais julgados, o Ministério Público — pelo menos o que atua nessas Câmaras — deve ter sua vida facilitada nos processos criminais junto ao judiciário de Minas Gerais, mormente os de furto e estelionato. Não precisa provar nada. São os acusados que devem provar que não forem eles os autores! Se a moda pega… Ora, se é possível inverter o ônus da prova no crime, não precisamos mais de processo. Basta que esteja provado “o fato”. Se o acusado não conseguir provar o contrário, bingo! A “justiça” estará feita…! Mutatis, mutandis, isso não difere tanto assim daquilo que se chamava de ordálias ou “prova do demônio”. Aliás, poderíamos aprovar uma emenda ao CPP, dizendo: toda vez que a res furtivae é encontrada com alguém e este não provar que não é dele, estará dispensada a instrução criminal. Ou “se preteritamente o acusado esteve na posse da res, é ônus dele provar que não era produto de crime”. Talvez: “se o acusado disse algo no inquérito e depois muda a versão, é ônus só dele provar que aquilo que disse na delegacia não era verdadeiro” ou, ainda “cabe ao acusado infirmar a palavra dos policiais que efetuaram a apreensão da res furtivae; a presunção é de que os policiais falam a verdade”. “Nos crimes de furto, encontrado o acusado na posse da res, o juiz sentenciará de plano, não havendo o acusado demonstrado tese contrária no inquérito”. Boas sugestões para o novo CPP. Quem sabe também: “não cabe alegar insignificância”. Pouparíamos recursos da combalida Viúva.
Numa palavra final: não é implicância minha. Apenas defendo a Constituição. E tenho a mania de contar para todos aquilo que a maioria quer esquecer ou esconder (aqui parafraseio Hobsbawn sobre o papel do historiador). Por isso a Coluna se chama Senso Incomum.
Post Scriptum: para quem tem dúvida, o STF não admite a inversão do ônus da prova (HC 107448; HC 97.701; HC 70.274 e HC 88.344 — vale a pena a leitura desses acórdãos). Portanto, Minas está na contramão da Suprema Corte. Só falta avisar o TJ-MG (pelo menos parte dele).
1 Antes que leitores que usam epítetos esquisitos e que costumam fazer epistemic discourses of hatred (que são contra sempre o que o colunista escreve, independentemente do assunto e por isso estão se tornando extremamente chatos) venham com quatro pedra (sic — sem “s”) na mão, digo: não desconheço que no EREsp 961.863-RS (2010) o STJ entendeu que, para caracterizar a majorante prevista no roubo não é necessário periciar ou apreender a arma de fogo. Errou, mas o que fazer? (vejam o Post Scriputum desta coluna). Sim, sei também que há outros Estados da federação em que é comum, mormente nos casos de furto, adotar a tese da inversão do ônus da prova. Sim, sei também que somente em revisão criminal é que o ônus é do réu-autor-da-revisão (HC 68.437-STF). E sei muito bem que já em 1990 o ministro Assis Toledo (RHC 782-PE) dizia que não se podia presumir maus antecedentes contra o réu. Bingo! E há decisões peremptórias contra o uso da tese, como esta: Apelação APL 15021220078260201 SP 0001502-12.2007.8.26.0201. (TJ-SP). Sei também que — infelizmente — até no TJ do Rio Grande do Sul existem decisões invertendo o ônus da prova no furto, como no processo 70060430394. E recomendo bons textos sobre o assunto, como a coluna de Alexandre Morais da Rosa (ler aqui), que cita a monografia de Gregório Camargo D’Ivanenko, apresentada no Cesusc, sob o título A inversão do ônus da prova no processo penal Brasileiro e sua incompatibilidade com a Constituição Federal (Florianópolis, 2012).
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