Remuneração de dirigentes do terceiro setor é bem-vinda
16 de julho de 2014, 15h14
O Processo de Gestão no Terceiro Setor, vale dizer, dos recursos humanos nele encontrados, apresenta várias peculiaridades, passando pelo tipo de serviço prestado, pela coexistência de diferentes atividades e pela complexidade dos desafios inerentes à sociedade civil, na medida em que é direito dela protagonizar com eficiência as tratativas que lhe dizem respeito, no âmbito social. Mas sem qualquer dúvida, o fator mais importante dentro deste contexto, é o homem, agente fundamental nos processos sociais e, ao mesmo tempo, objeto de todas as ações de tal natureza.
É fato incontroverso que o 1º e 2º Setores experimentam sensível retração e até mesmo certa crítica quanto às motivações de suas ações e grande discussão sobre seus modelos, especialmente devido ao adensamento populacional urbano e a escassez de recursos naturais que têm produzido crescente processo de exclusão social.
Nesse contexto, o Terceiro Setor tem-se apresentado como uma força viva apta a concorrer para a mitigação do largo fosso de miserabilidade que assola nosso país de forma real, para o recrudescimento da insegurança e dos alarmantes e terríveis aspectos de violência, vistos não apenas em nossas metrópoles, mas até nas mais interioranas cidades. Importante salientar que, sob o aspecto da violência ou da segurança enquanto política pública, não se pode descartar a ingente relevância das entidades do Terceiro Setor, cujas inúmeras interfaces dialogam de maneira significativa com a cidadania inclusiva, nas áreas e demandas sociais de inegável influência e, por via indireta, no próprio cenário da criminalidade e da violência.
Mais certo ainda é ser a adequada administração dos recursos humanos o fator essencial para estabelecer estratégias que aproveitem o máximo de qualificação daqueles que deslocam o amor de seus corações para o preenchimento das lacunas sociais.
Assim, no presente escopo, pretendemos gizar os principais aspectos referentes à remuneração de dirigentes estatutários e não estatutários das organizações do Terceiro Setor de assistência social, tema que recebeu permissão expressa do legislador pátrio e que concorre para suprir lacuna indesejável e tormentosa para os que atuam no setor social. Trataremos ainda, de aspectos relacionados a tal inovação legislativa, tais como a imunidade tributária em sua percepção constitucional.
Construção de uma sociedade mais participativa
O Brasil anda a passos largos, no afã de construir uma sociedade moderna e efetivamente preocupada com suas demandas sociais. No entanto, apesar da ocorrência de um considerável avanço na área social nas últimas décadas, a verdade é que a sociedade brasileira ainda convive com muitos problemas que a afetam diretamente.
O Terceiro Setor, nesse diapasão, tem sido importante para essa mutação de coisas, pois a sociedade civil organizada tem fomentado a consciência crítica de um pensamento uniforme de responsabilidade social. Mesmo porque, não há dúvida de que a construção da cidadania é uma forma de melhoria da qualidade de vida das pessoas e da sociedade vista de forma difusa.
Registre-se, inclusive, que, apesar de a democracia estar presente na maioria das anteriores concepções de Estado, o cenário atual passa por uma nova roupagem, com a participação popular não somente no processo político, mas também nas decisões do Governo e na execução de políticas públicas, especialmente na área social.
Nessa linha, o Grupo de Trabalho do Marco Regulatório do Terceiro Setor, liderado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, veio à tona e iniciou suas atividades no final de 2011, para tentar implantar uma nova realidade nas parcerias entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil (OSC).
Objetiva-se com o Marco Regulatório a construção de uma nova relação entre as OSC e o Estado, que valorize efetivamente a importância das organizações como parceiras para a construção de uma sociedade mais justa, especialmente na execução de políticas na área social.
Várias são as frentes que estão sendo trabalhadas pelo Marco Regulatório, merecendo destaque a que pretende a edição de novas regras para o repasse de recursos públicos, para a sustentabilidade e para buscar novos instrumentos de parceria que efetivamente atendam ao interesse público; a que trata do “simples social”; da problemática da sustentabilidade das entidades; do fomento à cultura de doação; dos incentivos fiscais; dos fundos patrimoniais etc.
Da possibilidade de remuneração de dirigentes – aspectos históricos e normativos
A possibilidade ou não das instituições sem fins lucrativos remunerarem seus dirigentes é, sem dúvida alguma, um dos assuntos de maior interesse e que gera maiores incertezas entre as pessoas que, de alguma forma, encontram-se ligadas às entidades do Terceiro Setor, seja na condição de dirigente, de integrante de algum órgão da pessoa jurídica, seja na condição de órgão fiscalizador. E, de fato, a matéria não é de fácil compreensão, uma vez que o seu completo entendimento exige uma análise das legislações tributária e previdenciária aplicáveis ao contexto e dos títulos e certificados concedidos pelo poder público, além de outras exigências advindas do próprio ordenamento jurídico.
Certamente, no seu nascedouro – e, particularmente no Brasil, até duas décadas atrás – essa questão não despertava maiores questionamentos, em razão da pouca dimensão ocupada pelo Terceiro Setor, fato este que lhe impunha algumas características bastante singulares, entre elas a preponderância do voluntariado e do espírito altruístico, as quais tinham – e ainda hoje o têm – grande repercussão na forma com que as organizações são administradas.
Porém, à medida que o novo modelo de Estado e a própria sociedade civil organizada imprimiram uma maior participação dessas organizações na prestação de serviços de interesse da sociedade, verificou-se, de pronto, a necessidade de se dar um perfil mais profissional às entidades integrantes do Terceiro Setor, surgindo daí a questão inerente ao assunto tratado: a necessidade de que as pessoas jurídicas sem fins lucrativos possam remunerar os seus administradores.
De fato, quase que como um senso comum, as pessoas ligam a remuneração à ideia de que as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, por terem esta natureza, não podem possuir em seus quadros pessoas contratadas para geri-las e administrá-las, mediante remuneração. Isso, contudo, é um grande equívoco, tendo em vista que no direito brasileiro não há – e nunca houve – dispositivo legal que vede o pagamento de remuneração aos administradores dessas entidades, desde que observados determinados requisitos e, principalmente, a possibilidade de se pôr em prática essa medida.
A primeira questão que deve ser observada é que a decisão de se remunerar ou não os dirigentes deve estar expressa no respectivo estatuto, ou seja, este documento deve conter artigo específico prevendo a possibilidade de remuneração ou, em caso contrário, vedando-a. Essa exigência é obrigatória em razão do que se afirmou quanto à inexistência de dispositivo legal sobre a matéria; portanto, a norma estatutária é o referencial a ser observado. É fundamental lembrar que a omissão de dispositivo portador de norma dessa natureza não permite nenhum pagamento a título de remuneração. Porém, antes mesmo dessa previsão estatutária, devem os dirigentes analisar o custo-benefício de se adotar tal medida, uma vez que ela tem repercussão direta nos benefícios fiscais e nos títulos de que é portadora a pessoa jurídica.
De um modo geral, a legislação tributária, sobretudo a federal, não permite que as entidades remunerem seus dirigentes e sejam beneficiárias de impostos e contribuições.
Contornos da novel Lei nº 12.868, de 15.10.2013
Agora, contornos legais foram implementados com a Lei n. 12.868, de 15 de outubro de 2013. Essa lei modifica o artigo 29 da Lei n. 12.101, de 27 de novembro de 2009, com o propósito de permitir, sem perda de eventuais benefícios fiscais, a remuneração dos dirigentes estatutários e dos não estatutários das organizações do Terceiro Setor de assistência social, assim definidas as reconhecidas e certificadas como entidades beneficentes de assistência.
Importante averiguar-se especialmente se a inovação legislativa, por ter sido trazida ao mundo jurídico mediante lei ordinária, não conflita com norma constitucional ou outras que lhe sejam superiores. Para tanto será necessário trazer à discussão alguns conceitos jurídicos, notadamente referentes à imunidade tributária.
No contexto da abordagem, saliente-se que somente serão consideradas como Organizações da Sociedade Civil e integrantes do Terceiro Setor as fundações privadas e as associações de interesse social, a saber, as entidades cujas atividades sejam de interesse da sociedade civil vista de forma difusa, na área educacional, assistencial, de saúde, cultural etc.
Serão considerados como dirigentes, outrossim, as pessoas participantes da alta administração das OSC. E estão nesse contexto os responsáveis pela gestão. Com efeito, a estrutura de poder usual das associações é composta de uma Assembleia Geral integrada por todos os associados, um Conselho Administrativo e um Conselho Fiscal (muito embora não obrigatórios pela legislação, absolutamente recomendados pelas melhores regras de governança corporativa) e uma Diretoria Executiva, esta incumbida de executar a gestão. A estrutura de poder das fundações privadas é similar, com a coexistência de um Conselho Curador, um Conselho Fiscal e uma Diretoria.
Deve-se considerar, outrossim, porque importante para a compreensão do tema, a existência de duas modalidades de dirigentes: estatutários e não estatutários.
Dirigentes estatutários e não estatutários
O dirigente estatutário é aquele cujas atribuições são definidas no Estatuto Social e faz parte do centro de poder principal da OSC. A sua autonomia de fazer ou deixar de fazer em nome da Organização é definida no Estatuto Social, evidentemente subordinada à observância do ordenamento jurídico. Em regra ele não possui vínculo empregatício com a OSC e recebe, como contraprestação aos serviços prestados, uma espécie de “pro labore”, definido pelo próprio Estatuto ou em deliberação da Assembleia Geral ou Conselho Administrativo, tratando-se de associação, ou do Conselho Curador ou órgão similar, tratando-se de fundação privada.
O dirigente não estatutário é aquele responsável pela gestão, cujas atribuições não são necessariamente definidas no Estatuto Social. Geralmente ele não faz parte do centro de poder principal da OSC e possui vínculo empregatício com a OSC, em regime celetista. Como tal deve manter contrato de emprego com a Organização, atendendo aos requisitos do referido contrato, quais sejam, a pessoalidade, a subordinação, a onerosidade e a habitualidade. Nessa condição deve ser subordinado a um dos órgãos da estrutura de poder da OSC, deve prestar os serviços pessoalmente (e não por meio de pessoa jurídica), com habitualidade, ou seja, com jornada regular de trabalho.
Imperioso considerar, também, a possibilidade do exercício de atividade profissional do dirigente, para execução de tarefas que não se confundem com suas atribuições enquanto dirigente. É o exercício da atividade da profissão daquele que ocupa o cargo de gestor.
Esclareça-se, “ab initio”, que a possibilidade de remuneração por tais serviços nunca enfrentou problemas com a legislação e nem mesmo com os agentes de fiscalização das OSC, tais como o Ministério Público, o INSS, a Receita Federal, os Tribunais de Contas, etc.
Para exemplificar o exercício da atividade profissional dos dirigentes pode-se citar exemplo de um OSC com atuação na área de saúde cujo dirigente seja médico e, nessa condição, preste serviços para a entidade. Ou ainda uma OSC cuja atividade seja educacional e seu dirigente acumule as funções de diretor ou de professor na respectiva unidade escolar. A remuneração por tais atividades, no entanto, não pode ser destoante do quanto praticado pela Organização para os demais profissionais da mesma categoria.
A possibilidade jurídica da remuneração de dirigente não é uma novidade na ordem legal, na medida em que existe essa possibilidade desde 1999, com a edição da Lei n. 9.790/99 para a OSC qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
O artigo 4º, inc. VI da Lei apontada prevê a possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes da entidade que atuem efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços específicos, respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado, na região correspondente a sua área de atuação.
A Lei 12.868.13, regulamentada pelo Decreto 8.242/14, por sua vez, trouxe a possibilidade da remuneração para os dirigentes das entidades beneficentes de assistência social, que também atuem efetivamente na gestão executiva, explicitando que a opção não importará em prejuízo à entidade para fins tributários.
E ainda, como inovação legislativa, ela não definiu um parâmetro de valor máximo para remunerar um Diretor não estatutário, mas prescreveu patamar salarial máximo para o Dirigente estatutário.
Porém, muito embora a Lei não tenha definido o valor máximo para remuneração do Diretor não Estatutário, parece óbvio que a OSC deve respeitar o padrão salarial praticado pelo mercado na sua área de atuação e um valor compatível com a política salarial da própria Organização.
Em outras palavras, a entidade não pode remunerar o seu Diretor não Estatutário em valor superior ao praticado na região para atividades similares e nem em valor excessivamente superior ao maior salário dos empregados da própria OSC, sob pena de caracterizar a distribuição de seu patrimônio de forma disfarçada.
Em relação ao Diretor Estatutário, por outro lado, a Lei n. 12.868/13 foi expressa em estabelecer parâmetros legais claros e objetivos. Com efeito, estabelece ela que, para preservar o status tributário da entidade, os “dirigentes estatutários” só devem receber remuneração inferior, em seu valor bruto, a 70% (setenta por cento) do limite estabelecido para a remuneração dos servidores do Poder Executivo Federal. Atualmente a maior remuneração praticada para os servidores públicos federais é de R$ 28.059,29. A remuneração dos dirigentes, portanto, deve ser inferior a R$ 20.623,57.
Ademais, as mesmas recomendações apresentadas para o Diretor não Estatutário valem também para o Estatutário, na medida em que, muito embora respeitados os requisitos fixados claramente pela Lei, deve observar-se o padrão salarial praticado pelo mercado na área de atuação e valor compatível com a política salarial da própria Entidade.
O dirigente também, para ser beneficiado com a possibilidade de remuneração, sem implicações tributárias para a OSC, não pode ser cônjuge parente até 3º grau (sanguíneo ou por afinidade) dos Instituidores, Conselheiros, benfeitores ou equivalentes. Nesse rol são incluídos, entre outros, os pais, avós, bisavós, filhos, netos, bisnetos, tios, sobrinhos, sogro, cunhado, enteado, etc. Trata-se de salutar regra que desestimula o nepotismo no Terceiro Setor.
A OSC também não pode pagar, a título de remuneração de dirigentes (estatutários e não estatutários) valor igual ou superior a cinco vezes o limite individual para a remuneração de seus outros empregados.
A nova Lei foi clara ao dispor que a remuneração do dirigente estatutário ou não estatutário não impede o exercício de atividade profissional cumulativa, salvo se houver incompatibilidade de jornadas de trabalho. O texto legal é importante, pois confere segurança jurídica para as entidades.
Situação da remuneração no âmbito da Imunidade Tributária
Interessante indagar, na sequência, em primeiro lugar, se a inovação legislativa traz segurança jurídica para as OSC de assistência social, especialmente para remunerar seus dirigentes sem riscos para a imunidade tributária; em segundo lugar, se as novas regras são constitucionais ou não.
Vejamos, primeiramente, a questão da imunidade tributária.
A Constituição Federal, em matéria tributária, possui a natureza analítica, na medida em que demarca competências legislativas. Nesse sentido o artigo 195, par. 7º, dispõe:
“São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”
A imunidade tributária, nesse sentido, é uma garantia constitucional dirigida diretamente ao legislador, definindo a proibição de exercício da competência tributária no âmbito do direito material permitido pela própria Constituição Federal. Em outras palavras, é uma garantia, com verdadeiro status de direito fundamental, declarando a impossibilidade do legislador tributar determinado fato.
É questão pacífica na doutrina e na jurisprudência que ao utilizar o termo “isenção” no artigo 195 da Constituição, o legislador constituinte quis dizer “imunidade”. Houve emprego inadequado do termo, posto que não se questiona tratar-se de imunidade de contribuições para a seguridade social por parte das entidades beneficentes de assistência social, atendidos os requisitos estabelecidos em lei.
A imunidade em questão é vinculante, pois alcança todas as contribuições para o custeio da seguridade social, devidas pelas entidades de assistência social que atendam aos requisitos estabelecidos em lei. É chamada de imunidade específica (na medida em que limitada a um único tributo), objetiva (posto que beneficia as entidades de assistência social) e condicionada (aos requisitos definidos em lei).
A Constituição Federal é clara ao dispor que a garantia constitucional depende do atendimento de requisitos estabelecidos em lei. A esse propósito, imperioso concluir que o artigo 146, II, do texto constitucional, prescreve que, para regulação da limitação ao poder de tributar (imunidade) deve ser feita mediante lei complementar para disciplinar a respeito do seu conteúdo.
Nesses termos:
“Cabe à lei complementar:
(…)
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.”
A lei complementar, por sua vez, ao regular a imunidade tributária, não possui liberdade plena para tanto. A regulação não poderá inviabilizar a desoneração prevista na Constituição. Ela deve tratar de aspectos formais, ou seja, elencar medidas capazes de assegurar a eficácia da imunidade constitucional.
A propósito, a Lei n. 5.172, de 25.10.1966 (Código Tributário Nacional – CTN), foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar, uma vez que estabelece normas gerais em matéria tributária e regulamentar à limitação constitucional ao poder de tributar. Nesse sentido, a propósito, é unânime o entendimento doutrinário e jurisprudencial.
Atualmente a imunidade tributária garantida no artigo 195, p. 7º da Constituição Federal, é regulamentada pelos artigos 9º e 14 do Código Tributário Nacional, com as seguintes normas:
Art. 9º – É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
IV – cobrar imposto sobre:
(…)
c) o patrimônio, a renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, observados os requisitos fixados na Seção II deste Capítulo.
Art. 14 – O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título;
II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;
III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
As novas regras jurídicas são de relevância superlativa, pois conferem mais segurança para as OSC de assistência social (assim entendidas aquelas certificadas e tituladas como entidades beneficentes de assistência social), as quais, até pouco tempo, conviviam com entendimentos, muito embora equivocados, de alguns dos próprios órgãos de fiscalização do Estado, postulando que a remuneração podia significar distribuição de parcela do patrimônio ou das rendas, pois a norma se refere “a qualquer título”, podendo em tese subentender a contraprestação por atividade de diretor estatutário.
Com efeito, tanto para a OSC certificada como OSCIP como para a certificada como de “assistência social”, com dispositivos legais expressos autorizando a remuneração dos dirigentes, garantiu-se mais segurança jurídica para os administradores.
A clareza do novel texto legislativo também tem importância singular pois desmoraliza a tese – equivocada como anotado – de que a remuneração dos dirigentes das organizações sem fins lucrativos importa em distribuição do patrimônio ou das rendas. Independentemente da OSC ser certificada ou não, quer seja como utilidade pública (federal, municipal ou estadual), organização social (OS), organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) ou de assistência social, é legítima (não só sob a ótica da moral como da lei) a remuneração do dirigente que efetivamente presta serviços para a entidade, pois a contraprestação pelo trabalho prestado é valor protegido inclusive constitucionalmente.
No contexto desse exercício de reflexão jurídica, cabe avançar no debate sobre o segundo aspecto já antecipado há pouco, ou seja, se as novas regras são constitucionais ou não.
Poder-se-ia indagar se a remuneração do dirigente estatutário e não estatutário pode ser interpretada como distribuição do patrimônio, na forma prevista no art. 14, I, do CTN. Ou se, tendo em vista que a Constituição exige Lei Complementar para regulamentar a imunidade, pelo fato de ser Lei Ordinária, a Lei 12.868/13 teria poder para tratar da matéria. E por ser Lei Ordinária ela garantiria segurança jurídica para as OSC aplicarem-na sem risco de ter a imunidade questionada, especialmente pelos órgãos de fiscalização?
A esse respeito, para o dirigente no exercício da sua profissão, o entendimento é uniforme e não há divergências, nem mesmo perante os órgãos de fiscalização, quanto à possibilidade de remuneração, sem qualquer implicação para a imunidade ou a isenção tributárias. Recomenda-se, no entanto, que o Estatuto seja claro a esse respeito, estabelecendo inclusive o órgão responsável pela fixação da contraprestação pecuniária pelo trabalho profissional.
Para o dirigente não estatutário importante observar, ainda, que ele deve possuir vínculo empregatício sob a égide da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e muito embora não tenham sido fixados parâmetros pela Lei 12.868/13, é de rigor observar o quanto foi recomendado anteriormente.
Já para o dirigente estatutário, imperiosa a observância do padrão remuneratório da região e da própria OSC, além daqueles definidos pela Lei n. 12.868/13.
Ainda no âmbito do debate sobre a constitucionalidade da lei em foco, é muito importante destacar que, até recentemente, vigoravam termos da Lei 12.101/09, que em seu art. 29, inciso I, expressamente vedava a remuneração dos dirigentes. Tratava-se de uma norma de conteúdo negativo.
Destaca-se que, a inovação legislativa trazida pela Lei 12.868.13, de forma diametralmente oposta, autoriza expressamente a remuneração mediante uma norma de conteúdo positivo.
Em outras palavras: enquanto antes se proibia a remuneração, hoje se permite expressamente. E mais: enquanto antes a opção do legislador era por uma norma negativa (proibitiva), hoje ela é positiva (com conteúdo de permissão).
Nesse contexto, muito embora o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha se pronunciado definitivamente, pela composição integral de seus Ministros, da possibilidade ou não da Lei Ordinária regular imunidade tributária, o texto constitucional é claro nesse sentido e é certo que já há um posicionamento parcial da Suprema Corte que permite concluir a respeito da constitucionalidade da Lei em comento.
A esse propósito, o STF pronunciou-se neste sentido:
– os requisitos para constituição e funcionamento das entidades imunes podem ser regulados por Lei Ordinária.
– os limites e requisitos da imunidade devem ser regulados por Lei Complementar.
Na mesma linha, a orientação firme da doutrina.
Portanto permite-se concluir que, enquanto a proibição de remunerar os dirigentes das OSC seja um requisito para usufruir da imunidade tributária e, portanto, deve vir ao mundo jurídico por meio de Lei Complementar, a permissão para remunerar é mero requisito de funcionamento de entidade imune e, como tal, pode ser tratada em Lei Ordinária.
Há, pois, segurança jurídica, atualmente, para a remuneração dos dirigentes das OSC tituladas como OSCIP, por força das disposições da Lei 9.790.99, assim como para as OSC tituladas como “entidades de assistência social”, ante a autorização expressa contida na Lei 12.868.13.
Trata-se, pois, de importante e salutar norma jurídica que veio à realidade por meio do Marco Regulatório do Terceiro Setor, como instrumento de conformação das OSC como parceiros imprescindíveis do Poder Público para execução de políticas sociais.
Permite-se verificar, nesse contexto, que há segurança jurídica para a remuneração dos dirigentes, estatutários e não estatutários, para as OSC certificadas como de assistência social, sem que a iniciativa possa ensejar prejuízos à imunidade e à isenção tributárias.
O Terceiro Setor vivencia no Brasil uma fase de grande e significativo crescimento, assumindo papel de relevo na construção de uma sociedade mais participativa. Essa mutação em verdade vem sendo verificada especialmente nas últimas três décadas, mas de forma acentuada na última.
Esse processo de mudança, por sua vez, tem exigido das OSC um novo perfil de gestão e, consequentemente, a possibilidade de angariar gestores profissionais que necessitam da pertinente remuneração.
No contexto da construção de um Marco Regulatório do Terceiro Setor e dentre inúmeras outras iniciativas em discussão e construção, a possibilidade de remuneração dos dirigentes, estatutários e não estatutários, das OSC certificadas como entidades de assistência social, sem prejuízo às imunidade e isenção tributárias, é instrumento que veio em boa hora.
Ademais, trata-se de importante passo na senda positiva para que as OSC e seus dirigentes comecem a ser mais valorizados e identificados como vetores relevantes da desobstrução dos entraves que as têm posto em situação de insegurança jurídica e social.
Tal situação é absolutamente equivocada e inapropriada, notadamente quando se pensa na extrema necessidade de se fortalecer vínculos para a construção de uma sociedade, de fato, menos injusta e mais solidária, não apenas como retórica vã, mas como anseio sincero e impostergável.
Referências Bibliográficas
PL 7.168, de 2014, originado do PLS 649/2011 e apensado ao Pl 3.877/2004;
PL 4.663/2012, de autoria da Deputada Bruna Furlan;
PAES, José Eduardo Paes Sabo – Fundações, Associações e Entidades de Interesse Social – Rio de Janeiro : Ed. Forense, 8ª edição, 2013;
Lei nº 12.868, de 15.10.2013;
Lei n. 12.101, de 27 de novembro de 2009;
Decreto n. 8.242/14.
BOTTALLO, Eduardo. Imunidade de instituições de educação e de assistência social e lei ordinária: um intrincado confronto. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Imposto de renda: alterações fundamentais. V. 2. São Paulo. Dialética, 1998, p.58.
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