Limite Penal

Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição?

Autor

  • é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

    Ver todos os posts

5 de dezembro de 2014, 7h01

O artigo 385 do CPP vem sendo há décadas aplicado sem maior reflexão e, o que é mais grave, contribuindo para a manutenção da cultura inquisitória e a desconsideração do objeto do processo penal, um tema árido, pouco discutido, mas fundamental. Partindo de Guasp[1] enten­de­mos que “obje­to do pro­ces­so é a maté­ria sobre a qual recai o com­ple­xo de ele­men­tos que inte­gram o pro­ces­so e não se con­fun­de com a causa ou prin­cí­pio, nem com o seu fim”. Por isso, não é obje­to do pro­ces­so o fun­da­men­to a que deve sua exis­tên­cia (ins­tru­men­ta­li­da­de cons­ti­tu­cio­nal) nem a fun­ção ou fim a que, ainda que de forma ime­dia­ta, está cha­ma­do a rea­li­zar (a satis­fa­ção jurí­di­ca da pre­ten­são ou resis­tên­cia). Também não se con­fun­de com sua natu­re­za jurí­di­ca — situa­ção pro­ces­sual (ou relação jurídica, para os que ainda são adeptos da teoria de Bülow).

Há um grave erro his­tó­ri­co da con­cep­ção de Karl Binding, que aponta para a “pre­ten­são puni­ti­va” como objeto do processo penal, pois trans­por­ta cate­go­rias do pro­ces­so civil para o pro­ces­so penal, colo­can­do o Ministério Público como ver­da­dei­ro “cre­dor” de uma pena, como se fosse um cre­dor do pro­ces­so civil.

É importante sublinhar que adotamos o conceito de pretensão, mas nunca na acepção civi­lis­ta de Carnelutti, senão na linha de Guasp e J. Goldschmidt, que dando um giro no con­cei­to de pre­ten­são o con­ce­be ape­nas como uma potes­tas agen­di, ou de ius ut procedatur (Gomez Orbaneja). O Estado pos­sui um poder con­di­cio­na­do de punir, que somen­te pode ser exer­ci­do após a sub­mis­são ao pro­ces­so penal (princípio da necessidade). Então, o acu­sa­dor exer­ce é um poder de pro­ce­der con­tra ­alguém, submetendo-o ao pro­ces­so penal, ao juízo cog­ni­ti­vo.

O erro da concepção da ‘pretensão punitiva’ está em pensar que o Estado com­pa­re­ce no pro­ces­so penal atra­vés do MP da mesma forma que o par­ti­cu­lar no pro­ces­so civil, como se a exi­gên­cia puni­ti­va fosse exer­ci­da no pro­ces­so penal de igual modo que no pro­ces­so civil atua o titu­lar de um Direito pri­va­do. Aqui está o ­núcleo do erro: pen­sar o acu­sa­dor como cre­dor. Se no Direito Civil exis­te a “exi­gên­cia jurí­di­ca”, pois exis­te a pos­si­bi­li­da­de de efe­ti­va­ção do Direito Civil fora do pro­ces­so civil (ao con­trá­rio do Direito Penal, que só pos­sui rea­li­da­de con­cre­ta atra­vés do pro­ces­so penal) e a pre­ten­são só nasce quan­do há a resis­tên­cia, a lide. Logo, o autor no pro­ces­so civil (ver­da­dei­ro cre­dor na rela­ção de direi­to mate­rial) pede ao juiz a adju­di­ca­ção de um direi­to pró­prio, que dian­te da resis­tên­cia ele não pode obter. Essa exi­gên­cia jurí­di­ca exis­te antes do pro­ces­so civil e nasce da rela­ção do sujei­to como bem da vida.

Isso não exis­te no pro­ces­so penal. Não há tal “exi­gên­cia jurí­di­ca” que possa ser efe­ti­va­da fora do pro­ces­so penal. O Direito Penal não tem rea­li­da­de con­cre­ta fora do pro­ces­so penal. Logo, não pré-exis­te nenhu­ma exi­gên­cia puni­ti­va que possa ser rea­li­za­da fora do pro­ces­so.

E o Ministério Público (ou que­re­lan­te) não pede a adju­di­ca­ção de um direi­to pró­prio, por­que esse direi­to (potes­ta­ti­vo) de punir não lhe cor­res­pon­de, está nas mãos do juiz. O Estado rea­li­za seu poder de punir não como parte, mas como juiz. Não exis­te rela­ção jurí­di­ca entre o Estado-acu­sa­dor e o impu­ta­do, sim­ples­men­te por­que não exis­te uma exi­gên­cia puni­ti­va nas mãos do acu­sa­dor e que even­tual­men­te pudes­se ser efe­ti­va­da fora do pro­ces­so penal (o que exis­te é um poder de penar e den­tro do pro­ces­so). Aqui está o erro de pen­sar a pre­ten­são puni­ti­va como obje­to do pro­ces­so penal, como se aqui o fenô­me­no fosse igual ao do pro­ces­so civil. Por isso, o acu­sa­dor detém o poder de acu­sar, não de penar. Logo, ­jamais pode­ria ser uma pre­ten­são puni­ti­va. Como disse Carnelutti[2], “ao acu­sa­dor não lhe com­pe­te a potes­tas de cas­ti­gar, mas só de pro­mo­ver o cas­ti­go”.

O acusador tem, portanto, a pretensão acusatória (ius ut procedatur) cujo exercício é fundamental para dar inicio e desenvolvimento ao processo. O poder de punir — que é do juiz e não do MP › somente poderá ser exercido após o pleno e exitoso exercício da pretensão acusatória. É o juiz quem detém o poder con­di­cio­na­do de punir.

E por que, então, o juiz não pode condenar quando o Ministério Púbico pedir a absolvição?

Exatamente porque o poder puni­ti­vo esta­tal — nas mãos do juiz — está con­di­ciona­do à invo­ca­ção feita pelo Ministério Público atra­vés do exer­cí­cio da pre­ten­são acu­sa­tó­ria. Logo, o pedi­do de absol­vi­ção equi­va­le ao não exer­cí­cio da pre­ten­são acu­sa­tó­ria, isto é, o acu­sa­dor está abrin­do mão de pro­ce­der con­tra alguém. Como consequência, não pode o juiz con­de­nar, sob pena de exer­cer o poder puni­ti­vo sem a neces­sá­ria invo­ca­ção, no mais claro retro­ces­so ao mode­lo inqui­si­ti­vo. Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio. Também é rasgar o Princípio da Correlação, na medida em que o espaço decisório vem demarcado pelo espaço acusatório e, por decorrência, do espaço ocupado pelo contraditório, na medida em que a decisão deve ser construída em contraditório (Fazzalari).

O poder punitivo é condicionado à exis­tên­cia de uma acu­sa­ção. Essa cons­tru­ção é ine­xo­rá­vel, se real­men­te se quer efe­ti­var o pro­je­to acu­sa­tó­rio da Constituição. Significa dizer: aqui está um ele­men­to fun­dan­te do sis­te­ma acu­sa­tó­rio.

Portanto, é incompatível com o modelo constitucional a regra prevista no atual artigo 385 do CPP . No mesmo sentido, ainda que fazendo um caminho diferente, Geraldo Prado[3] afir­ma que “isso não sig­ni­fi­ca dizer que o juiz está auto­ri­za­do a con­de­nar naque­les pro­ces­sos em que o Ministério Público haja reque­ri­do a absol­vi­ção do réu, como pre­ten­de o arti­go 385 do Código de Processo Penal Brasileiro. Pelo con­trá­rio. Como o con­tra­di­tó­rio é impe­ra­ti­vo para vali­da­de da sen­ten­ça que o juiz venha a pro­fe­rir, ou, dito de outra manei­ra, como o juiz não pode fun­da­men­tar sua deci­são con­de­na­tó­ria em pro­vas ou argu­men­tos que não ­tenham sido obje­to de con­tra­di­tó­rio, é nula a sen­ten­ça con­de­na­tó­ria pro­fe­ri­da quan­do a acu­sa­ção opina pela absol­vi­ção. O fun­da­men­to da nuli­da­de é a vio­la­ção do con­tra­di­tó­rio (arti­go 5º, inci­so LV, da Constituição da República).”

Também não se pode admitir, por outro lado, que se presuma serem os Promotores de Justiça ou Procuradores da República despreparados, prevaricadores ou incapazes de levar a cabo a acusação, a ponto de justificar-se a figura de um juiz-inquisidor que vai substituí-los no final do processo, para condenar sem acusação. Em democracia, a distinção de papéis e poderes exige responsabilidade, ou seja, ônus e bônus.

Como consequência, não pode o juiz con­de­nar, sob pena de exer­cer o poder puni­ti­vo sem a neces­sá­ria invo­ca­ção, no mais claro retro­ces­so ao mode­lo inqui­si­ti­vo. Processualmente falando, o correto (diante de tal situação) seria que o juiz proferisse uma decisão de extinção do processo sem julgamento do mérito. Na falta de previsão legal, só nos resta a absolvição.

Concluindo, se no pro­ces­so civil o con­teú­do da pre­ten­são é a ale­ga­ção de um direi­to pró­prio e o pedi­do de adju­di­ca­ção, no pro­ces­so penal é a afir­ma­ção do nas­ci­men­to de um direi­to judi­cial de punir e a soli­ci­ta­ção de que o Estado exer­ça esse direi­to (potes­tas). O acu­sa­dor tem exclu­si­va­men­te um poder de acu­sar (ius ut procedatur), afir­man­do a exis­tên­cia de um deli­to e, em decor­rên­cia disso, pede ao juiz (Estado-Tribunal) que exer­ci­te o seu poder de con­de­nar o cul­pa­do e exe­cu­tar a pena.

O Estado rea­li­za seu poder de punir no pro­ces­so penal não como parte, mas como juiz, e esse poder puni­ti­vo está con­di­cio­na­do ao pré­vio exer­cí­cio da pre­ten­são acu­sa­tó­ria. A pre­ten­são ­social que nas­ceu com o deli­to, é ele­va­da ao sta­tus de pre­ten­são jurí­di­ca de acu­sar, para pos­si­bi­li­tar o nas­ci­men­to do pro­ces­so. Nesse momen­to tam­bém nasce para Estado o poder de punir, mas seu exer­cí­cio está con­di­cio­na­do à exis­tên­cia pré­via e total do pro­ces­so penal.

Se o acu­sa­dor dei­xar de exer­cer a pre­ten­são acu­sa­tó­ria (pedin­do a absol­vi­ção na manifestação final), cai por terra a pos­si­bi­li­da­de de o Estado-Juiz atuar o poder puni­ti­vo, sob pena de grave retrocesso a um sistema inquisitório, de juízes atuando de ofício, condenando sem acusação, rasgando o princípio da correlação e desprezando a importância e complexidade da imparcialidade.


[1] “La Pretensión Procesal”. In: Estudios Jurídicos, pp. 593 e ss.
[2] Derecho Procesal Civil y Penal, p. 301.
[3] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, pp. 116-117.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!