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Tributação não perdoa nem vítimas de crimes

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  • é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

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14 de março de 2012, 10h47

Diversos Estados norte-americanos tributam a posse de drogas ilícitas. O possuidor, mediante garantia de anonimato, deve adquirir junto ao Fisco selos correspondentes à substância e à quantidade detidas e afixá-los ao produto. A quitação do tributo não o exime da pena por porte ou tráfico de entorpecentes, mas o não-pagamento sujeita-o adicionalmente ao crime de sonegação fiscal[1].

No Brasil, uma tal exação não seria concebível, seja em face do conceito de tributo, que o distingue da sanção de ato ilícito (CTN, artigo 3º), seja diante do princípio da moralidade administrativa (CF, artigo 37, caput), que veda ao Estado tirar proveito de condutas por ele mesmo proscritas[2].

No máximo, e não sem vigorosa oposição doutrinária e jurisprudencial[3], admite-se a exigência de imposto de renda sobre os ganhos oriundos de atividades ilícitas[4], já que (a) o seu confisco integral (CP, artigo 91, II, b; Lei das Contravenções Penais, artigo 1º) pressupõe a rigorosa demonstração, nem sempre factível, de sua origem espúria e que, (b) de toda maneira, esse vício dificilmente poderia ser oposto pelo contribuinte à pretensão tributária, certo como é que ninguém pode se valer da própria torpeza.

Muito bem: se é parcimonioso na tributação dos perpetradores de ilicitudes, com os quais acertadamente evita confraternizar, o Brasil já não adota o mesmo cuidado técnico no tratamento das respectivas vítimas, a quem nega qualquer simpatia.

Três exemplos o comprovam.

Primeiro, o da exigência de IPI sobre cargas roubadas no trajeto entre a indústria e o estabelecimento do adquirente.

No REsp. 734.403/RS (Rel. Ministro Mauro Campbell, DJe 6/19/2010), que cuidava do roubo de cigarros, a 2ª Turma do STJ deu ganho de causa à União, aos fundamentos de que: (a) o fato gerador do IPI é “a saída do produto industrializado do estabelecimento industrial ou equiparado, seja qual for o título jurídico de que decorra”; (b) “o roubo ou furto de mercadorias é risco inerente à atividade do industrial”; e, (c) tomando por premissa a conclusão a que queria chegar (de que há tributo devido no caso em exame), “o prejuízo sofrido individualmente pela atividade econômica desenvolvida não pode ser transferido para a sociedade sob a forma do não pagamento do tributo devido.

Pensamos que a disputa merece solução diferenciada segundo se trate de venda CIF ou FOB, visto que é a tradição que opera a transferência de titularidade dos bens móveis, e que é esta última (e não a simples saída física) o fato gerador ordinário dos impostos sobre a produção e o consumo.

Tratando-se de venda FOB, em que a tradição ocorre no estabelecimento do vendedor, o furto/roubo em rota será posterior à aquisição da propriedade pelo comprador, não tendo qualquer efeito sobre a sua obrigação de pagar o preço (res perit domino) e sobre o dever do fabricante de recolher o imposto. Correto o acórdão.

Tratando-se de venda CIF, porém (tradição no estabelecimento do comprador, por conta e risco do vendedor), a conclusão do julgado parece-nos inadequada, por impor ao industrial o pagamento de IPI em relação a fato gerador não ocorrido, exigência que será reiterada quanto à segunda carga que ele — sem novo recebimento de preço — terá de destinar ao adquirente para dar o devido cumprimento ao contrato.

Ao contrário do que pareceu à Corte, o afastamento do imposto relativamente à carga roubada não acarretaria socialização do risco inerente à atividade do fabricante.

De fato, este não busca ser ressarcido pelo Estado do custo de produção das mercadorias que perdeu por falha do aparato oficial de segurança, mas apenas — tendo já suportado sozinho tal prejuízo — não ser ainda obrigado a pagar tributo sobre ele.

O segundo exemplo é o da exigência, contra as distribuidoras, de ICMS pela energia elétrica que lhes é furtada (ou que é desviada antes de chegar ao seu estabelecimento, nas situações em que atua como substituta tributária das geradoras) por meio dos chamados “gatos”.

O argumento é sempre o mesmo: o fato gerador é a saída da energia do estabelecimento da distribuidora (ou da geradora, na hipótese de substituição), não importando se foi ou não recebida pelo adquirente.

O equívoco é claro, pois (a) a tradição (fato gerador do ICMS) exige entrega e recebimento e (b) o substituto tributário para trás só pode responder pelo tributo incidente sobre as mercadorias que recebeu e logrou revender, sob pena de assunção definitiva do respectivo ônus econômico, contra a não-cumulatividade e o artigo 128 do CTN.

A jurisprudência na matéria é novamente desfavorável à vítima do malfeito. De fato, no REsp 110.284/SP (Rel. ministro José Delgado, DJ 10/3/97), que discutia a exigência de ICMS sobre as saídas de álcool, então presumidas mediante índice técnico a partir da quantidade de cana-de-açúcar adquirida pela usina, a 1ª Turma do STJ deixou assentado que o “furto de determinada quantidade de litros de álcool (…) não influi na caracterização do fato gerador do tributo, já ocorrido na operação anterior de saída de cana-de-açúcar do estabelecimento produtor, vale dizer, o ICM incide sobre a totalidade do material adquirido (cana-de-açúcar) e não sobre o álcool com ela produzido”.

O último exemplo diz respeito à obtenção fraudulenta de serviços de telefonia, por clonagem ou fraude de subscrição.

Tem-se a clonagem quando um aparelho é clandestinamente programado para realizar chamadas utilizando os códigos de um celular devidamente habilitado, de forma a que a cobrança recaia sobre o titular deste último.

Na fraude de subscrição, uma pessoa não-identificada, induzindo a operadora em erro (estelionato), contrata serviços de telefonia em nome e à revelia de um terceiro (uso de documentos furtados, por exemplo).

Autor dos ilícitos é o fraudador, e vítimas são o titular da linha clonada ou a pessoa cujo nome foi indevidamente utilizado e, principalmente, a operadora, a quem ao fim incumbirão todos os custos da prestação dos serviços obtidos mediante fraude.

Com efeito, esta última não poderá cobrar da primeira as tarifas correspondentes às ligações indevidamente feitas às custas desta, ou terá de devolvê-las em dobro, com juros e correção, caso as tenha recebido (Regulamento do Serviço Móvel Pessoal, Anexo à Resolução Anatel 477/2007, artigos 68, 71 e 78).

A esta altura, não causará surpresa saber que os Fiscos estaduais exigem ICMS sobre essas tarifas não-recebidas, ou recebidas mas devolvidas em dobro.

Mais grave é perceber que o STJ referenda tal pretensão no que toca à clonagem, lançando mão do sólito argumento de que “a inadimplência e o furto por ‘clonagem’ fazem parte dos riscos da atividade econômica, que não podem ser transferidos ao Estado” (STJ, 2ª Turma, REsp 1.189.924/MG, Rel. ministro Humberto Martins, DJe 7/6/2010).

Mutatis mutandis, é como autorizar a cobrança de ICMS sobre o preço das mercadorias furtadas de uma loja — o que, pelo visto no primeiro caso acima, pode não estar longe de acontecer…

Para além dos argumentos técnicos invocados em cada item — e de outros que não o foram brevitatis causa — eminentes princípios constitucionais parecem-nos ter sido violados em todas as situações, como a capacidade contributiva (artigo 145, parágafo 1º), o não-confisco (artigo 150, IV) e a razoabilidade (artigo 5º, LIV).

Em situações adversas, consola-nos afirmar que os sonhos não são tributados.

No Brasil, porém, os pesadelos já o são.


[1] TIAGO SANTOS SOARES. A tributação do ato ilícito e a sua aplicação no direito norte-americano. Monografia de graduação apresentada à UFMG em 2007. Ver também: CNN Money. America’s wackiest taxes. http://money.cnn.com/2005/02/18/pf/taxes/strangetaxesupdate/

[2] O artigo 118, II, do CTN, em nossa leitura, refere-se apenas aos atos inválidos por preterição de forma ou por ilegitimidade do agente (o condenado por crime falimentar que exerce o comércio malgrado a proibição, v.g.), mas não aos atos intrinsecamente ilícitos.

[3] IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, RT 712:118. STJ, 6ª Turma, HC nº 55217/RR, Rel. Min. NILSON NAVES, DJ 25.09.2006.

[4] STF, 1ª Turma, HC nº 77.530/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 18.09.98; STJ, 5ª Turma, HC nº 83.292/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 18.02.2008.

Autores

  • é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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