Responsabilidade do médico

As Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue

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  • é advogado em São Paulo sócio-fundador do escritório Araújo e Policastro Advogados e autor dos livros "Erro Médico e suas consequências jurídicas" "Código de Processo Ético-Profissional Médico e sua aplicação" "Pacientes e Médicos seus direitos e responsabilidades".

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18 de janeiro de 2011, 11h12

Tema constante de acaloradas discussões é a recusa a certos procedimentos médicos por motivos religiosos ou filosóficos. A fé merece respeito e todas as crenças têm seus dogmas. Para as Testemunhas de Jeová, a rejeição de tratamento com uso de sangue e derivados para si e aos filhos, seja qual for a circunstância, é ponto fundamental de seus preceitos religiosos.

A supremacia da liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de consentir, a liberdade de consciência e de crença, promanadas do princípio de que nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, estão firmemente asseguradas na Constituição Federal.

Consequência inevitável: ninguém pode ser constrangido a renunciar sua consciência, sua fé, seus princípios religiosos; ninguém pode ter violado o direito de livremente querer e decidir. Liberdade de livre escolha, liberdade religiosa e de manifestação de vontade são invioláveis.

Evidente que não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. Segundo o ponto de vista do constitucionalista Celso Bastos: “(…) o paciente tem o direito de recusar determinado tratamento médico, no que se inclui a transfusão de sangue, com fundamento no artigo 5º, II, da Constituição Federal. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (princípio da legalidade). (…) Como não há lei obrigando o médico a fazer a transfusão de sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião Testemunhas de Jeová, e que se encontrarem nesta situação, certamente poderão recusar-se a receber o referido tratamento, não podendo, por vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. (…) Mesmo sob iminente perigo de vida, não se pode alterar o quadro jurídico acerca dos direitos da pessoa”.

Em relação aos menores e incapazes, disse: “Quanto aos pais ou demais responsáveis, é preciso deixar certo que não há negligência ou qualquer espécie de culpa quando solicitam aos médicos que usem meios alternativos para o tratamento de sangue em seus filhos. A recusa a uma determinada técnica médica pelos pais ou responsáveis, quando não se tem algumas outras vias, que atingem até melhores resultados do que a técnica padrão (sempre presente um alto risco de contaminação por diversas doenças), não é suficiente para configurar a culpa em qualquer de suas modalidades. (…) Em verdade, o que os pais querem é salvar a vida dos seus filhos por métodos alternativos, sem que com isso tenha-se de pagar um alto preço que seria a violação de princípios religiosos que lhe são por demais caros” (Direito de Recusa de Pacientes Submetidos a Tratamento Terapêutico às Transfusões de Sangue, por Razões Científicas e Convicções Religiosas — Parecer jurídico dado à Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová — RT 787, pp. 504/ 506).

Independentemente dos méritos ou deméritos da respeitada opinião e de outras semelhantes, quando direitos fundamentais se entrechocam com o dever do médico de lutar pelo bem maior que é a vida e de usar todos os recursos oferecidos pela Medicina para restabelecer a saúde do enfermo, surgem as perguntas: qual o limite da autonomia da vontade do paciente? Até onde vai a responsabilidade médica quando o enfermo não aceita o tratamento proposto? Como lidar com o dilema: violar o livre-arbítrio da pessoa ou desrespeitar a obrigação de lançar mão de todos os meios disponíveis de tratamento, posto que o bem maior é a vida? Como o médico deixar de atender o comando do Código de Ética Médica de agir e exercer a profissão com ampla autonomia?

O Código Civil dispõe que ninguém pode ser forçado a se submeter a tratamento ou a intervenção cirúrgica. Leis esparsas, como o Estatuto do Idoso e a Lei paulista 10.241/98, garantem ao doente o direito de optar pelo tratamento que lhe for reputado mais favorável, consentir ou recusar procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados.

Contrariar a livre decisão do paciente, seu familiar, responsável ou representante legal, se incapaz ou incapacitado de consentir, será constranger ilegalmente e assumir o risco de responder civil e criminalmente.

Movidas pelo desejo de verem preservados seus princípios religiosos e tranquilizarem os médicos quanto à utilização de alternativas às transfusões, as Testemunhas de Jeová costumam trazer consigo um cartão de identificação ou uma declaração onde afirmam não admitir procedimentos terapêuticos que incluam transfusão sanguínea, isentando, ao mesmo tempo, o profissional da responsabilidade por qualquer resultado adverso proveniente da recusa. Sempre apresentam o documento ou assim declaram ao serem internadas em hospitais.

Porém, isso é suficiente para livrar o médico da responsabilização civil e criminal ao se defrontar com situação em que a vida do paciente dependerá inteiramente do seu agir? Há situações em que o profissional precisa fazer o que entende ser correto para salvar a vida do enfermo, mesmo contra a sua vontade ou dos familiares.

As Testemunhas de Jeová criaram uma rede mundial de Comissões de Ligações com Hospitais (COLIH), incumbidas de orientar equipes médicas sobre alternativas para evitar a hemotransfusão ou ajudar pacientes que desejam ser transferidos a hospitais que usam alternativas.

Contudo, quando a necessidade for tamanha que torne impossível retardar o procedimento para a utilização de outro meio substitutivo ou alternativo face ao risco da morte inevitável que sobrevirá ao paciente, o médico não se submeterá a constrangimentos e deve efetuar a transfusão, mesmo sem consentimento, pois, se deixar de aplicar aquele tratamento e o paciente falecer, estará sujeito a sérias consequências legais.

O Código Penal considera crime constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Ressalva, porém, que não haverá crime se a intervenção médica ou cirúrgica, embora sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificar diante do iminente risco de vida. O Código de Ética Médica, por sua vez, permite a violação do livre-arbítrio do enfermo e o desrespeito ao seu direito de decidir, quando estiver sob risco de vida tal que o perigo de morte possa ser afastado com a prática de qualquer procedimento terapêutico.

O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM 1.021/80 orientando o médico a como proceder no caso de pacientes que, por motivos diversos, inclusive de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue. As diretrizes são estas: “Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º— Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2º— Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.”

Em nome do respeito ao direito de crença, se houver tempo hábil, o primeiro caminho a ser adotado pelo profissional será encontrar tratamento substitutivo ou alternativo. Essa atitude é a que mais se compatibiliza com as regras deontológicas do exercício da Medicina e com os direitos do paciente, assegurados pela ordem constitucional. É aconselhável, entretanto, que o médico ou o hospital anotem tudo no prontuário médico e, sempre que possível, obtenham do doente, familiares ou responsáveis, uma declaração registrando a recusa ou o não querer submeter-se ao tratamento proposto.

No geral, mesmo com divergência de algumas decisões e opiniões doutrinárias, a jurisprudência tem decidido que o direito à vida se sobrepõe à liberdade de crenças, baseada no entendimento de que as convicções religiosas não podem prevalecer perante o bem maior que é a vida. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, independentemente do consentimento e mesmo contra a vontade deste, familiares ou responsáveis, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Significa dizer que, presente o perigo de morte, o médico tem o direito-dever de agir em benefício do paciente para lhe salvar a vida. É que a vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião.

Embora a questão seja delicada e complexa, o exame das manifestações doutrinárias e da jurisprudência dominantes leva a estas conclusões: (i) não sendo possível substituir a transfusão sanguínea por tratamento alternativo em razão do iminente perigo de morte, a decisão de transfusão de sangue cabe soberanamente ao médico, independentemente de consentimento de quem quer que seja; (ii) se ausente o perigo, prevalece a vontade do paciente, familiares ou representante legal.

Autores

  • é advogado, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e autor dos livros Erro médico e suas consequências jurídicas e Código de Procedimento Ético-Profissional Médico e sua aplicação.

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