A questão de alta indagação em sede de inventário
18 de janeiro de 2009, 8h42
Assim como a falência, também o inventário deve ser considerado um juízo universal. Tanto ali, como aqui, há a liquidação de um patrimônio. Daí advém a razão de que em tal juízo devem ser apuradas e decididas todas as questões pertinentes às relações econômicas do morto ou do falido, assevera Hamilton de Moraes e Barros[1], sejam essas questões relativas a bens e obrigações do de cujus, sejam relativas à qualidade sucessória dos pretendentes à herança[2].
Para a consecução deste objetivo, compete ao magistrado resolver toda e qualquer questão, de cuja solução dependa o julgamento do inventário e partilha, sustenta Humberto Theodoro Júnior, que completa: “Somente, portanto, quando a questão, por sua natureza, depender de um outro processo especial, ou se achar subordinada a fato somente pesquisável por meio de outras provas que não a documental, é que o magistrado do inventário poderá remeter os interessados para as vias ordinárias”[3].
É, aliás, o que determina a lei, segundo exegese do artigo 984 do Código de Processo Civil, in verbis: “O juiz decidirá todas as questões de direito e também as questões de fato, quando este se achar provado por documento, só remetendo para os meios ordinários as que demandarem alta indagação ou dependerem de outras provas”.
Questões de alta indagação, segundo Vicente Greco Filho, “são as questões que dependem de cognição com dilação probatória não documental, bem como aquelas que, por força de lei, somente podem ser resolvidas em processo com contraditório pleno, em procedimento ordinário, como, por exemplo, a anulação de casamento, a anulação de testamento depois de registrado, a investigação de paternidade, quando contestada”[4].
Há, outrossim, aqueles que interpretam o termo ‘alta indagação’ como sinônimo de questões de fato inviáveis de serem resolvidas em sede de inventário, por demandarem a produção de outras provas, que não a documental. Neste sentido: “Alta indagação é simplesmente questão de fato que não pode ser resolvida à luz das provas existentes no processo”[5]. Ou ainda: “Matéria de alta indagação é matéria probatória, é matéria que se refere a perícia, a depoimento pessoal, a ouvir testemunhas etc.”[6].
No tocante às questões de direito, por mais complexas e intrincadas que sejam, devem ser decididas pelo juiz do inventário. Não pode o juiz eximir-se de julgar e remeter a parte às vias ordinárias, alegando lacuna ou obscuridade da lei. Neste caso, incumbe ao magistrado, na ausência de normas legais, recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, determina o artigo 126 do Código de Processo Civil.
Semelhante é a posição adotada por Hamilton de Moraes e Barros. Para o autor, “o Direito se presume certo e sabido. Assim como ninguém se escusa, alegando ignorar a lei, não pode o juiz furtar-se ao seu dever de despachar e de julgar, invocando o silêncio, a obscuridade ou a sua aparente indecisão, ou contradição”[7].
Não é diferente o entendimento jurisprudencial: “Consoante a doutrina de melhor tradição, questões de direito, mesmo intrincadas, e questões de fato documentadas resolvem-se no juízo do inventário, com desprezo da via ordinária”[8].
Há quem defenda, todavia, a existência de questões de direito que demandem alta indagação. João Monteiro, em citação de Orlando de Souza[9], salienta que, embora a questão de alta indagação seja aquela cuja solução possa ensejar longa discussão, também existem questões intrincadas de direito que dependem de larga e difícil discussão.
Não é este, no entanto, o entendimento que melhor espelha o posicionamento majoritário da doutrina. Adverte Hamilton de Moraes e Barros que alta indagação não é “uma intrincada, difícil e debatida questão de direito. É o fato incerto que depende de prova aliunde, isto é, de prova a vir de fora do processo, a ser colhida em outro feito”[10]. Em igual sentido, posiciona-se Antonio Carlos Marcato, para quem a questão de alta indagação é “aquela que demanda prova a ser colhida fora do inventário, e não, como já se chegou a sustentar em sede doutrinária, uma intrincada e difícil questão de direito”[11].
Também a jurisprudência: “Questão de alta indagação, tal como estatui o art. 984 do CPC, é aquela que exige um procedimento comum, vale dizer um processo de cognição completa e plena e não a dificuldade da aplicação do Direito”[12].
Itabaiana de Oliveira assim se posiciona acerca do tema: “As questões de direito não são de alta indagação, porque o direito é invariável, e deve ser decidido logo, qualquer que seja a forma do processo. O juiz do inventário tem competência para decidir as questões de direito levantadas pelos interessados, quando elas não dependerem da apreciação e prova dos fatos, mas simplesmente da indagação dos documentos oferecidos para a aplicação do direito e suas regras”[13].
Assim é que, nos termos do aludido artigo, tratando-se de questões de direito, o juiz deverá decidi-las, por mais complexas e intrincadas que possam parecer; todavia, em se tratando de questões de fato, estas só poderão ser decididas quando estiverem provadas documentalmente nos autos.
Realmente não comporta o inventário incidentes que comprometam sua celeridade, resultando em demora no alcance de sua finalidade que é a partilha de bens, até porque, pelo menos em tese, deve o processo estar concluído em doze meses, segundo dispõe o artigo 983 do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei 11.441/07.
Verifica-se, pois, que a competência do juiz do inventário para decidir questões de fato cinge-se àquelas que já se encontram provadas por documento. Ou seja, não pode o juiz decidir questões que demandem fase probatória, sob pena de serem desviados e comprometidos os estreitos limites do inventário que, como procedimento especial que é, tem objetivos certos e determinados.
E se a prova documental apresentada for impugnada? Diz a lei que o juiz poderá decidir quando a prova documental do fato não exigir a produção de outras provas. Neste caso, se a impugnação não se fundar na validade formal ou substancial do documento apresentado, será possível a decisão. Caso contrário, a questão de fato passa a depender de outras provas, hipótese em que as partes deverão ser remetidas às vias ordinárias[14].
No entanto, para que as partes sejam remetidas às vias ordinárias, “deve a dúvida ser objetiva, decorrente de controvérsia instaurada com base em prova idônea em tese, não bastando a mera alegação”, assevera Kazuo Watanabe[15]. “A contestação fútil, ou vã, a argüição impotente não infirmam os documentos hábeis e válidos.”[16]
Ao coibir a instauração de discussões que exijam, para sua solução, a produção de provas que demandem uma fase adequada, tais como a prova testemunhal ou pericial, a lei visa evitar tumultos que comprometam o regular processamento do inventário, que, como já se observou, não pode ter sua finalidade desviada, nem sua celeridade comprometida.
Não se há falar, portanto, em falta de competência do juiz. Embora competente, as questões que demandem alta indagação são remetidas às vias ordinárias tão somente para evitar demora e desvirtuamento das finalidades do inventário. Basta considerar que a mesma questão, se comprovada documentalmente, poderá ser solucionada diretamente pelo juiz do inventário. Pontes de Miranda[17], no entanto, raciocina de modo diverso. Segundo ele, se o juiz remete as partes às vias ordinárias, está declarando sua incompetência e a impropriedade do rito.
Por todo o exposto, em que pesem opiniões contrárias, tem o juiz do inventário competência para julgar todas as questões relativas ao objeto deste processo; todavia, se a questão de fato demandar dilação probatória ou se a própria lei não permitir que o juiz do inventário decida, por depender de um processo especial, devem as partes ser remetidas para os meios ordinários, consoante regramento insculpido no já citado artigo 984 do estatuto processual.
Bibliografia
BARROS, Hamilton de Moraes e. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. 9.
FISCHMANN, Gerson. Dos procedimentos especiais. In: SILVA, Ovídio Araújo Batista da (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 14.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil brasileiro. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 3.
MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. 14.
OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de Direito das Sucessões. 4. ed. rev. e atual. pelo autor com a colab. de Aires Itabaiana de Oliveira. São Paulo: Max Limonad, 1952. v. 3.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 6.
SOUZA, Orlando de. Inventários e partilhas: doutrina, jurisprudência, formulários. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 18. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 3.
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
[1] Comentários ao Código de Processo Civil, v. 9, p. 196. Em igual sentido: Gerson Fischmann (Dos procedimentos especiais, p. 39).
[2] Conforme Humberto Theodoro Júnior (Curso de Direito Processual Civil, v. 3, p. 266).
[3] Ob. cit., p. 267.
[4] Direito Processual Civil brasileiro, v. 3, p. 241.
[5] Conforme Clito Fornaciari Júnior (Ação declaratória incidental em processo de inventário, p. 167).
[6] Segundo definição de José Rodrigues Carvalho Neto (Ação declaratória incidental em processo de inventário, p. 169).
[7] Comentários ao Código de Processo Civil, v. 9, p. 199.
[8] STJ, 4ª T., REsp n.º 4.625/SP, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 16.04.1991, v.u.
[9] Inventários e partilhas, p. 29-30.
[10] Ob. cit., p. 199.
[11] Procedimentos especiais, p. 167.
[12] TJSP, 1ª Câm. Civil, AgI n.º 107.422-1-SP, Relator Roque Komatsu, j. 16.08.1988, v.u., BAASP 1567/310, de 28.12.1988.
[13] Tratado de Direito das Sucessões, v. 3, p. 778.
[14] Conforme Ernane Fidélis dos Santos (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 6, p. 323).
[15] Da cognição no processo civil, p. 89.
[16] Hamilton de Moraes e Barros, ob. cit., p. 198.
[17] Comentários ao Código de Processo Civil, v. 14, p. 27.
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